Nacional

Siso revisita o indie brasileiro de 2000 a 2010 em “Vestígios”

O cantor, compositor e produtor mineiro, Siso, está radicado em São Paulo já há algum tempo e após lançar um álbum com todas as características minimalistas pandêmicas ele apresenta um disco que pode também ser identificado como um projeto jornalístico de resgate cultural da memória do indie brasileiro. Mais precisamente o recorte que Vestígios, seu terceiro lançamento de estúdio, traz são pérolas musicais esquecidas da cena rock/underground dos anos 2000 e 2010. Entre eles nomes importantes como Los Porongas, Negro Leo (leia entrevista) e Paralaxe ganham releituras interessantes e contextualizadas para a sonoridade dos dias de hoje.

Além do detalhe de selecionar oito faixas, o músico foi atrás de apresentar em Vestígios canções com direito a produção de produtores e engenheiros de som envolvidos na produções homenageadas, desta forma ajeitando arrestas e entendendo mais sobre os processos, visto que Siso anteriormente assinou suas próprias produções. “O Homem-Pássaro”, canção original de Paralaxe, ganhou de surpresa a trilha de um vídeo da influencer Bela Belinha e isso chamou a atenção de um público mais novo.

Cor de Jasmim”, originalmente gravada pelo projeto mineiro Umrio em sua versão teve a co-produção de João Victor Santana Campos (Carne Doce); “Lanny”, do duo greco-brasileiro Os Amantes Invisíveis, contou com Carina Renó (etrusca, Letrux) assinando com Siso a produção da nova versão; já “Nada Além”, da banda acreana Los Porongas, ganhou produção conjunta de Siso e Patrick Laplan (Duda Beat, Gabriel Ventura, Los Hermanos), para citar algumas.

“Várias das gravações originais dessas canções ainda não estão presentes nos serviços de streaming como os conhecemos hoje, e as que estão, desempenham de uma maneira que não dá pra ter ideia da relevância delas, o que torna difícil para uma geração posterior entender e resgatar essas obras”, revela Siso sobre a ânsia de realizar o projeto


Capa de Vestígios, terceiro álbum de estúdio de Siso – Foto Por: Mauro Figa

Entrevista: Siso sobre Vestígios

Conversamos com o Siso para saber mais detalhes sobre o projeto de releituras, Vestígios, e todo panorama que fez que com ele revisitasse o indie nacional de 2000 a 2010 com tanto detalhe.

No projeto Siso também não deixa de reverenciar de certa forma a cena de música independente que ajudou ele em seus primeiros dias como músico – visto que desde os anos 2000 ele está produzindo. Tendo estado à frente de bandas como Spooler e As Horas, o cantor/compositor e produtor lançou-se em carreira solo no início dos anos 2010.

No disco anterior você escolheu um caminho mais pop e eletro para se comunicar e testou uma estética mais pistinha. Agora você coloca este projeto no mundo reverenciando a memória de uma geração da música independente de uma era do começo da popularização da internet. Como foi realizar as escolhas e como sentiu que aquelas músicas eram o resgate necessário para alcançar uma nova geração indie?

Siso: “Foi tudo muito intuitivo. O “S2” foi, de várias formas, muito um reflexo de pandemia: além de ter sido de fato produzido dentro do meu quarto, longe de todo mundo, ele tem uma sonoridade minimalista que também mimetiza de alguma maneira um certo isolamento. Por restrição de recursos, quase não tem instrumentos acústicos ali, então virou meio que uma suspensão no espaço-tempo. É muito sobre os sonhos pós-pandêmicos de estar com as pessoas, dançando, celebrando, vivendo a vida como era possível antes, mas também sobre encarar esse vazio, a coisa da morte batendo na porta das pessoas e encarar a própria sombra na falta do contato com o outro.

Já a ideia de fazer um álbum de releituras era uma coisa que estava no fundo da minha cabeça havia vários anos, justamente por ter tomado contato em primeira mão com várias coisas incríveis feitas nesse recorte histórico e depois perceber que elas haviam perdido contexto e atenção. Parte significativa desse material não estava acessível depois de todos esses anos, com as trocas tecnológicas e as mudanças na forma de consumir música. Me pareceu um desperdício de muita coisa bonita, então foi um pequeno gesto buscando trazer uma luz para um fragmento daquilo, usando minha memória afetiva como filtro. O momento não foi muito pensado, só pareceu certo naquela hora.”

Como enxerga essa constante renovação de bandas ao longo do tempo? Bandas realmente foram feitas para acabar? Como vê que a falta de profissionalização acabou fazendo com que boas bandas não decolassem?

Siso: “Não sei dizer se bandas foram feitas pra acabar. Na real, tudo feito pelo ser humano foi feito pra acabar em algum momento (risos). Mas tem muita gente que consegue manter uma dinâmica saudável e um interesse artístico ao longo de muitos anos, então não tem uma resposta que caiba pra todas elas. Ao mesmo tempo, é essencial que surjam novos artistas o tempo todo.

A falta de profissionalização é um ponto que machuca diversas bandas pelo caminho, mas o não-decolar é uma coisa que tem muitas variáveis: pode ter a ver com as relações interpessoais, má gestão, falta de recursos pra investimento, falta de oportunidades, de conhecimento, timing, falta de formação de uma comunidade, de saúde mental das pessoas envolvidas… “dar certo” como chamamos não é só uma questão de talento e competência, mas também um tanto de sorte e estrutura.”

Teve alguma faixa que acabou ficando de fora que depois pensou: essa entraria numa segunda parte? (Ou mais de uma…)

Siso: “Tem várias outras que eu havia pensado pra esse disco, mas essa seleção das oito músicas se estabeleceu muito rapidamente, tanto que não foram gravadas outras canções pra esse projeto. Essas ideias vão ficar pra algum outro ponto no futuro.”

Um detalhe curioso foi o fenômeno viral “Belle Belinha” usar “O Homem-Pássaro” em um vídeo dela. Mesmo ela sendo uma influencer controversa, você até sofreu críticas nas redes por agradecer a divulgação. Como descobriu que ela tinha usado? Isso ajudou a aumentar os plays e construir um novo público que você nem imaginava, conseguiu ver isso nos números de streaming? E o que achou disso? Chegou a cogitar um clipe com ela por conta disso?

Siso: “Meu produtor foi quem me disse que ela tinha usado a música num vídeo. Foi tudo muito surpreendente. Essa postagem dela acabou levando meu trabalho para um público mais jovem, que nunca tomado contato com minha música, o que achei positivo.

O vídeo em si é caótico, mas a juventude é caótica por definição. Não vejo nada de errado ali, porque é todo mundo maior de idade e não há crime nem pornografia, então não entendi a reação de algumas pessoas. Trocamos mensagens com ela depois disso, mas não há a intenção de fazermos um clipe pra essa música.”

Como foi poder trabalhar com tantos produtores – que acabam sendo seus ídolos de tabela – neste registro?

Siso: “Foi muito interessante. Primeiro, fiz questão de trabalhar nesse projeto só com produtores, músicos e engenheiros de som que tiveram experiência de primeira mão na cena independente nesse período 2000s-2010s, porque eles entenderiam outras camadas da coisa. E acabei formando um time muito maravilhoso, com artistas que admiro muito e também são ótimas pessoas, de cabeça aberta, dispostas a experimentar.

Estou acostumado a produzir muita coisa sozinho ou junto de só um produtor ao longo de um projeto, e foi muito massa perceber que cada um tem seu jeito de fazer as coisas, seu tempo, sua abordagem. Enriqueceu o resultado, mas também fez com que eu ganhasse mais repertório de processo criativo ao longo da feitura do disco, além de me ter colocado no lugar de harmonizar os sabores trazidos por todos eles em um resultado coeso enquanto álbum.”

Conte mais sobre sua relação com esse universo pré-internet como conhecemos com TramaVirtual e Myspace dando espaço para bandas que estava começando a se autoproduzir em casa com baixo orçamento e como isso de certa forma te inspirou a seguir o mesmo caminho.

Siso: “Minhas primeiras bandas autorais, no início da adolescência, foram quase todas montadas a partir de uma seção de classificados que o Cifra Club tinha. Não havia muitos músicos na minha escola, mas tentei montar bandas com todos eles. No início a gente andava meio em círculos, gravando ensaios em estúdios baratos, queimando CDs caseiros com essas gravações e tentando a esmo fazer circular.

Vendendo em shows, entregando a muita gente e mandando por correio para imprensa, selos, festivais, casas de shows e quem mais julgássemos que pudesse se interessar. No meio-tempo, tocávamos em bares, calouradas e o que mais a gente conseguisse. O MP3 era uma realidade, mas o que fazer sendo uma banda nova nos programas de compartilhamento, onde as pessoas buscavam pelos nomes dos artistas que já conheciam? Criar público era um enigma, um labirinto.

No meio dos anos 2000, houve uma mudança de paradigma com o surgimento do MySpace e o TramaVirtual. Em ambas as plataformas, você podia criar uma página customizável para o seu projeto e subir sons que poderiam ser ouvidos em streaming ou baixados gratuitamente em MP3. As estruturas dos dois portais também eram baseadas em comunidade, de modo que vários artistas puderam se conectar mais facilmente e falar direto com seus fãs, o que nos aproximou da realidade “horizontalizada” que temos hoje na internet, em que todo mundo é possível de contatar por DM.

Antes qualquer coisa que parecesse respeitável também parecia inacessível. Nessa mesma época, começou a ser mais barato produzir em casa, com boas interfaces de áudio de preço acessível surgindo no mercado e as pessoas começando a explorar mais livremente os recursos das DAWs. Então sai o estúdio baratinho e entram as gravações caseiras, reduzindo custo. De repente, percebeu-se: pra que selo? Pra que gravadora? Vamos lançar tudo nós mesmos, com essas plataformas a nosso favor. Começaram a surgir os coletivos de bandas, para viabilizar turnês e eventos pelo país, e a coisa foi caminhando.

Foi uma época de quebra de estruturas, o que foi muito amedrontador pra quem já estava circulando, mas absolutamente liberador e inspirador pra quem estava começando e via que a indústria da música era pela primeira vez uma folha em branco, em que qualquer um poderia rabiscar e criar sua realidade. E essa liberação abriu as portas para muita gente nos anos seguintes, que pode começar a monetizar seus trabalhos na internet (o que não rolava nesse primeiro momento), até chegarmos na realidade de agora, em que os artistas mais novos sequer tiveram contato com esse modelo antigo e operam sob uma lógica totalmente própria.”

Como foi para você abraçar as versões trazendo a sua estética e revisitar tantas músicas roqueiras e não óbvias para quem acompanha seu trabalho?

Siso: “Foi muito natural. Nos meus trabalhos anteriores sempre fiz questão de incluir, no meio das canções autorais, uma releitura mais obscura de algo que gostava muito ou de um colega de meio musical de anos atrás. Sempre trazendo a canção para o meu mundo, para o meu ponto de vista. Então, no fim das contas, foi um desdobramento disso.

Não sei sobre a expectativa das pessoas, mas vejo que quem me ouve sabe que eu gosto de experimentar com diferentes estéticas e respeita isso. Tenho essa coisa de buscar algo diferente sempre – para mim é difícil abraçar a expectativa dos outros e ali ficar. Sinto necessidade de me movimentar. E é sempre legal trazer para as pessoas algo que possivelmente elas não conhecem. É um ampliar de visão de mundo.”

Teria curiosidade de produzir um volume 2, de 2010 a 2020 convidando outros artistas para regravar e ser uma espécie de continuação?

Siso: “Não por enquanto. Meu próximo projeto será inteiramente autoral. Quase metade do meu repertório é de outros autores neste momento, acho que chega por agora (risos).”

Como sente que essas bandas que lançaram discos durante a pandemia serão lembradas no futuro? E quão importante vê preservarmos a memória do indie em um país que historicamente luta para preservar a sua própria memória cultural e identidade?

Siso: “É difícil dizer. Tem gente cujo trabalho artístico foi amplificado durante a pandemia, mas também tem gente que afundou no maremoto de informação que virou a vida das pessoas depois do distanciamento social. Cada artista vai seguir um caminho, não tem jeito. Preservação da memória em um país como o nosso é uma tarefa inglória, mas que alguém precisa fazer, diante das sistematizações que sempre buscam apagar as coisas pra vender uma história fácil, simplificada, pacificada, inofensiva.

A cultura independente, bem como todas as outras culturas, é sintoma de uma sociedade, e é sempre bom a gente se debruçar sobre elas todas pra entender melhor quem somos, onde estamos e pra onde vamos.”


SISOFoto Por: Mauro Figa

Faixa a Faixa: Vestígios por Siso

Com exclusividade para o Hits Perdidos o Siso preparou um faixa a faixa comentando cada uma das versões, das inspirações, passando pelo seu envolvimento e produção. Saiba mais!

1- Cor de Jasmim

A ideia desse álbum de releituras já vinha fermentando na minha cabeça havia alguns anos, mas sempre deixava de lado por pensar que não era o momento. Tinha algumas canções em mente que gostaria de fazer, mas nada muito organizado, até que, no fim do ano passado, criei uma playlist no SoundCloud com essas canções, praticamente na ordem em que estão. Pensei, “este é o álbum. Agora que olhei na cara dele, tenho que fazer”.

“Cor de Jasmim” é uma composição do Leo Onerio, amigo de Belo Horizonte que conheci há uns 10 anos, pouco depois de ter ouvido pela primeira vez o Umrio, projeto musical dele. As composições do Leo sempre me marcaram pela simplicidade tocante – ele é capaz de fazer coisas muito bonitas com poucos acordes, com letras e estruturas também simples, mas nada triviais. “Saudade”, que eu já tinha gravado no meu primeiro álbum (“Saturno Casa 4”, de 2017), também tinha essa característica.

E, pra mim, “Cor de Jasmim” tem essa coisa dentro dela de que o amor pode ser leve e bonito, mas nem sempre é só leve e bonito. Sempre existe na estrutura dele alguma dose do que não se quer, seja relativo a uma questão pessoal ou estrutural da sociedade. É o reconhecimento de uma certa complexidade no encaixe entre os amantes, e de que o amor de verdade talvez passe pelo reconhecimento disso. E, conhecendo Leo por todos esses anos – também compusemos juntos uma outra música no meu primeiro álbum -, sempre achei um crime que as canções dele não fossem mais reconhecidas.

Como queria colaborar com mais artistas depois de ter feito um álbum todo trancado no meu quarto em 2020, chamei João Victor, do Carne Doce, para produzir comigo essa faixa. Eu já havia colaborado com a banda em um remix de “Passarin”, e aí fiz o convite. Esqueletei o arranjo com uma bateria eletrônica simples, violão e timbres de um sintetizador que me evoca a época que eu começava a mexer com música – um Korg Poly 800, dos anos 1980, que um cliente do meu pai entregou a ele como pagamento de dívida e acabei ganhando de presente quando tinha uns 10 anos. O som desse sintetizador está em quase todas as faixas do álbum, por essa ligação afetiva.

Mandei essa demo e João Victor me entregou com camadas e mais camadas de guitarras e efeitos, que levaram a música para outro lugar. Depois disso, senti falta de um som mais de banda, mais orgânico: baixo de verdade, algumas guitarras mais power-chord em alguns lugares, e uma bateria acústica. Então, gravei baixo e guitarra no Estúdio Aurora e chamei Gabriel Bruce, que toca com o Graveola e vários outros artistas, pra colocar sua assinatura rítmica, o que rolou de maneira remota, gravando no estúdio que ele tinha em BH na época.”

2- Lanny

Conheci o trabalho d’Os Amantes Invisíveis em 2009, acredito que primeiro por uma matéria no site da TramaVirtual. Li esse texto que apresentava um duo baseado em Londres que era formado por uma mineira e um grego, fazendo um som que era uma mistura de tropicalismo com o indie rock da época, e era uma sonoridade muito nova, muito fresca. E algo que me impactou muito é que senti uma identificação grande com eles enquanto compositor – a construção musical, as melodias, uma busca por tornar as coisas acessíveis, mas ainda assim intrigantes.

Conheci Marina (Ribeiro) e Alexis (Gotsis) pessoalmente pouco depois disso, talvez no mesmo ano ou no seguinte, quando eles resolveram migrar pro Brasil. Fizemos shows juntos em Belo Horizonte, eles lançaram um outro EP em 2014, depois passaram um tempo na Grécia e se mudaram pra São Paulo, onde eu já estava vivendo. Nessa época, Alexis e eu fizemos “4 de Ouros”, que está no “Saturno Casa 4”. Pouco depois disso eles se realocaram mais uma vez, para Barcelona, onde estão até hoje. Marina tem feito vários projetos de música brasileira por lá e se prepara pra lançar sua carreira solo, enquanto Alexis tem feito trabalhos como produtor e engenheiro de som.

“Lanny” é uma faixa presente no primeiro EP d’Os Amantes Invisíveis. É uma canção marcante e agitada no contexto original, que reverencia um cara genial da Tropicália. Lanny Gordin e sua guitarra são elementos essenciais de várias gravações clássicas de Gal, Gil, Caetano e outros, mas ele precisou sair de cena por um tempo a partir dos anos 1970 pra tratar de sua saúde mental, depois de uma experiência com LSD desencadear um surto psicótico. É muito curioso que, nesse meio-tempo, um trabalho tão importante como o de Lanny tenha caído em um certo “esquecimento” junto ao público da música popular brasileira, tendo sido necessária uma recontextualização – e essa própria história se conecta com toda a ideia do “Vestígios”, de recontextualizar certas obras e artistas que não estão muito longe de nós historicamente.

Pra produzir a versão dessa música, chamei Carina Renó. Já a conhecia por causa do mercado da música, uma vez que ela havia trabalhado alguns anos como assistente do Carlos Freitas, que é um engenheiro de masterização muito respeitado no Brasil e no mundo, mas só fui conhecer o trabalho dela como produtora a partir de “I’m Trying to Quit”, da Letrux. Ao ouvir etrusca, projeto solo dela, achei que haveria uma boa liga pra fazermos algo juntos pra esse álbum. Dei um alô, mostrei a gravação original d’Os Amantes e ela ficou um tempo pensando, testando coisas.

Certo dia ela me retorna com a produção já quase toda definida, levando essa coisa eufórica da versão original pra um lado mais lento, melancólico e evocativo, mas ainda assim dotado de alguma leveza, o que achei perfeito. Acrescentei umas pequenas coisas de bateria eletrônica e synth e fomos gravar voz, violão e guitarras definitivas no Estúdio Aurora – depois descobrimos que Lanny já havia gravado por lá. Foi muito bonito enxergar essa canção pelo olhar dela e encontrar esse outro lugar de fazer “Lanny” brilhar.”

3- O Homem-Pássaro

O Paralaxe é um duo de BH que começou suas atividades nos anos 2000, misturando rock e eletrônica, referências de cinema, poesia de vanguarda e elementos da cultura pop, com a criatura genial que é Fred HC como pessoa de frente.

Fred é um amigo querido há dez anos, que virou da família desde então. Temos várias parcerias ao longo dos anos, como “Eclipse” (do “Terceiro Molar”, 2016) e “Corpo pra Amar” (do “S2”, de 2020), além de eu já ter regravado outra faixa do Paralaxe antes, que é “Clubber do Milharal”, também no “Terceiro Molar”.

Fora a relação pessoal e a minha relação com a obra do Paralaxe, existe uma coisa peculiar também da história musical de Belo Horizonte com essa estética eletrônica que experimenta com o pop, que é uma narrativa da qual vejo que Fred e eu fazendo parte. Existe uma linhagem que vai desde Divergência Socialista, nos anos 1980, e passa nos 1990 por Pato Fu e Tetine, com um braço resultando no techno de Anderson Noise e deriva na house/EDM de FTampa, enquanto outro braço deriva em gente mais “esquisita”, como o Paralaxe, o Anvil FX e o Digitaria, que é a linhagem que entendo que chega em mim – somada à eletrônica de periferia, que é a cena funk que criou a coletânea “Fábrica Ritmos” nos anos 1990 e tava geograficamente ali à minha volta, nas quebradas da zona leste de BH. Tem também uma outra corrente que desemboca em gente da minha geração ou mais nova que eu, como o pessoal do Rosa Neon, BAKA, Dedé Santaklaus, a cena em volta da festa Masterplano e outros. Não é uma coisa exatamente linear, é rizomática. E nem sempre essas pessoas têm consciência umas das outras. É um fenômeno interessante que se repete geracionalmente. Enfim.

“O Homem-Pássaro” é uma faixa do segundo álbum do Paralaxe, “Under Pop Pulp Fiction”, e originalmente ela contrasta a densidade da letra com uma leveza instrumental eletrônica, que me remete ao som dos primórdios do Hot Chip. E eu sabia que minha versão dessa faixa tinha que ser intensa e sublinhar a loucura dessa letra, que descreve uma infância vivida numa linha tênue entre imaginação e paranoia, tendo um desenho animado (o que dá nome à música) como um símbolo de projeção de várias coisas imaginárias e reais, e mostrando reflexos dessa experiência infantil na idade adulta. Isso tudo numa rede semântica muito rica, cheia de referências. E aí me veio a ideia de produzi-la com Pfink.

Pfink não é estranho a sonoridades incomuns. Produtor eletrônico de Feira de Santana, ele foi, antes de seu trabalho solo, o arquiteto sonoro em volta de Marli, que foi um fenômeno de popularidade no YouTube nos anos 2000 com suas músicas atonais, vídeos surreais e letras repletas de humor bizarro. Os nove álbuns que criaram juntos levou alguns a chamarem Marli de “a Björk brasileira”, e também a torná-la uma das primeiras celebridades virtuais dessa cultura de meme que temos hoje. Como conhecíamos a música um do outro, fiz o convite ao Pfink e, depois de algumas experimentações, chegamos nesse lugar meio punk/industrial, que sai da minha zona de conforto e da dele, dá outra forma de vazão a essa letra tão potente e conecta várias coisas de uma maneira inusitada.”

4- Não Sabe (O Que É O Amor?)

“Não Sabe” é parte do repertório do primeiro álbum do Minimalista, projeto solo do Thales Silva, que conheci na cena de Belo Horizonte há mais de 10 anos, com a banda que ele tinha na época, A Fase Rosa. Também chegamos a colaborar com o Cabezas Flutuantes na mesma época, durante a feitura do disco “Experimental Macumba”, de 2016.

A faixa se conecta tematicamente com trabalhos anteriores meus, que discutem a postura problemática do homem na sociedade e a estrutura psicológica em torno disso, como, por exemplo, em “Homem” (presente no “Terceiro Molar”) e “Quando o Amor de 1 Homem é 1 Revólver” (do “S2”). No caso dessa música, enxergo que ela trata da postura infantilizada/impotente que vários homens têm diante de expressões de afeto e demandas de transformação no mundo de hoje – e como essas questões, quando mal resolvidas, podem descambar para comportamentos tóxicos.

A produção e a instrumentação nessa nova versão acabaram sendo inteiramente minhas, e levei a canção intuitivamente pra um lado mais dub, mas também com guitarras de influência punk.

5- Marcado de Lutas

Conheci o pessoal da Banda NÃ em 2016, às vésperas do lançamento do primeiro álbum do grupo, “Farpa”. Pessoas sempre muito calorosas e amistosas, já com uma respeitável estrada na cena paulistana, e munidas de canções muito afiadas politicamente. Estávamos naquele momento vendo Dilma Rousseff ser deposta em uma farsa e um desmonte de muita coisa começando a acontecer na estrutura do país, e a agudeza das canções de “Farpa” me marcaram muito naquele contexto.

“Marcado de Lutas”, composta por Michel de Moura (que assina como Micha em seu trabalho solo), é um destaque desse trabalho e é uma constatação de como somos frutos de processos históricos, mas que podemos usar das construções que vêm com a gente como ferramentas de transformação.

A produção é assinada por Christopher Mathi, que produziu comigo o “Terceiro Molar” e o “Saturno Casa 4”, e também tocou comigo ao vivo entre 2015 e 2018. Depois desses trabalhos, ele passou a dedicar-se ao Hyglu, projeto eletrônico dele com o Stan Gilman, e depois mudou-se para o interior da França. Com a pandemia, vimos que a distância não era uma questão para voltarmos a fazer coisas juntos, e essa versão para “Marcado de Lutas” é nossa primeira colaboração a ser lançada desde então. O arranjo novo traz a canção para conversar com o hip hop e a música eletrônica, mas sem deixar de ter um pé na estrutura do samba e agregar também uma guitarra fuzz, que remete à sonoridade de Lanny Gordin nos tempos de Tropicália.

6- Isso Tudo É Como Um Rap

A mistura de música brasileira com spoken word contemporânea sempre foi um chamariz muito forte sobre a obra do Sol na Garganta do Futuro, banda brilhante do Espírito Santo que tem Fabrício Noronha, hoje secretário de cultura do estado, como frontman. Conheci o trabalho do grupo provavelmente em 2010, quando o grupo foi a Belo Horizonte se apresentar em uma das edições do festival BH Indie Music.

Esse evento/movimento (o BH Indie Music), do qual eu fazia parte, era capitaneado pela Malu Aires, que ficou conhecida nacionalmente ao trabalhar com o Sagrado Coração da Terra na trilha da novela “O Clone”. Foi com o BH Indie que comecei a me profissionalizar dentro da cena independente. Nas várias edições do festival, que juntava gente de todo o país, assisti a coisas muito brilhantes de novos artistas daquela época, e uma das apresentações que ficaram marcadas em mim foi a do Sol na Garganta do Futuro, com aquela mistura que parecia ser de poesia slam, Quinteto Violado e Patti Smith.

Ao pensar minha versão, queria que não fosse muito no caminho do arranjo original, que já tem uma estrutura muito bonita, marcada por violão, baixo, bateria e flauta. Como as guitarras já estavam presentes no decorrer do álbum e também na letra dessa canção, decidi que essa interpretação seria só com voz e guitarra, o que acabou ressaltando a estrutura blues dela. Contei com o apoio de Yantó na preparação vocal desse álbum e essa canção foi um ponto muito interessante do nosso trabalho. Yantó me mostrou que, como acontece em várias obras do Luiz Tatit, por exemplo, a letra não estava sendo jogada em qualquer nota ao ser entoada. Havia uma melodia escondida ali, mascarada como voz falada, e o meu trabalho seria primeiro desencavar essa melodia original para depois integrá-la na minha própria voz falada.”

7- Nada Além

Quis que o fim do álbum fosse marcado pelas canções mais conhecidas dessa seleção, e “Nada Além”, do Los Porongas, marcou toda uma geração da música independente brasileira. Aquela poesia rasgada naquela estrutura lenta e passional deixou um rastro pela juventude do país na época, e aí meu trabalho foi pensar um outro caminho para a canção a partir do que a letra colocava.

A narrativa apontava para um encontro romântico entre duas pessoas que tinham nessa relação um frágil refúgio diante de toda a turbulência do cotidiano, marcada por trabalho, expectativas e toda a angústia de viver em sociedade. Decidi abordar de outra maneira, focando no lado da angústia e da fragilidade, do sentimento de estar à mercê das situações externas e precisar de proteção emocional, e pensando como isso pode ser um elemento que mina as relações. Nisso serviu o ritmo incessante da disco no arranjo, que pode simbolizar tanto uma busca de leveza e distração, como existe na ideia da pista de dança, quanto um entorpecimento emocional e um martelar incessante da angústia na cabeça de alguém.

A produção foi feita com Patrick Laplan, com quem fiz contato depois de ouvir trabalhos muito marcantes e muito diferentes que ele havia produzido com artistas como Duda Beat, Gabriel Ventura e Franque. Foi um trabalho feito com muita sensibilidade e escuta, levando o tempo natural das coisas. Primeiro enviei uma demo com sintetizador e programações, e ele me devolveu com baixos muito interessantes e vários detalhes sonoros. Então, foi acontecendo essa troca livre e solta, em que acabei colocando violões e piano, e ele gravou bateria acústica e fez um solo de sintetizador. É a única música do álbum com uma pegada mais synthpop, estética que conversa muito com trabalhos anteriores meus, principalmente o álbum de 2020.

8- Jovem Tirano Príncipe Besta

Um clássico da música popular brasileira contemporânea – e a única faixa que já havia recebido uma releitura antes. Presente no disco “The Newspeak”, de 2012, “Jovem Tirano” é uma composição de Negro Leo já tinha sido regravada pela Trupe Chá de Boldo alguns anos depois.

Quis trazê-la pro disco primeiramente para celebrar a obra de Negro Leo, que vem fazendo um trabalho incrível na música brasileira ao longo da última década, tensionando-a em lugares novos e interessantes. Mas também quis fechar o disco com uma canção que virou uma espécie de profecia. Ainda que várias interpretações sejam possíveis, não se pode negar que Negro Leo viu dez anos atrás que o Brasil estaria entremeado em uma disputa de poder político envolvendo desejos autoritários e base dogmática religiosa, e que isso iria destruir muita coisa. Como hoje se trata de uma constatação, quis fazer no álbum um momento de catarse destrutiva, com um arranjo que começa em um sintetizador que emula um órgão de igreja e desemboca em barulho, violência e caos.

O álbum termina em um rebobinar de fita e um despertador, na intenção de fazer um loop – depois da tempestade viria a bonança representada por “Cor de Jasmim”, e assim o ciclo pode se refazer.

Siso Vestígios


This post was published on 18 de agosto de 2022 11:00 am

Rafael Chioccarello

Editor-Chefe e Fundador do Hits Perdidos.

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