Tangolo Mangos “Zipa” em disco referências de vaporwave, jazz e lofi hip hop
Irreverentes, novos e conectados. A jovem banda de Salvador (BA), Tangolo Mangos, assim como todos nós tivemos que lidar com a pandemia e suas consequências. Prestes a gravar seu segundo EP, o grupo se viu no meio de um dilema: Gravar um compacto como gostariam ou abortar a missão?
Por questões técnicas e para respeitar o isolamento social, o grupo optou por adiar, porém decidiu começar um outro projeto do zero. Dessas experiências e composições criadas direto de casa vieram ideias que se materializaram no que viria a ser o EP tngl_mngs.rar.
Tangolo Mangos tngl_mngs.rar
Um registro que conta com 5 faixas inéditas e que mergulha pela cybercultura, da Vaporwave, passando pelo lo-fi e até mesmo mergulhando na cultura do jazz desértico. Linguagens, expressões e gêneros musicais de uma geração conectada, atenta ao novo e que não vê limites até onde sua arte pode chegar.
No registro anterior o grupo baiano já mostrava interesse pela psicodelia brasileira e isso também transparece em referências como os goianos do Boogarins e os australianos do King Gizzard & the Lizard Wizard mas que também se conecta ao moderno jazz do Saara, de projetos como Mdou Moctar e Tinariwen.
Tangolo Mangos e As Pastas .ZIP
O EP tambem conta com participações especiais de Zé Neto (Colibri) com voz e sintetizador na faixa “FUJI[富士山].rom”, e do saxofonista André Becker na faixa “mofi_zip_zop_radio_-_batidas_
Já a produção é assinada pela própria banda e a masterização por Ayze Buy e a Tropicasa Produções, formada por Carol Morena Vilar e Tais Bichara, entra como apoiadora.
Aliás não estranhe, as canções realmente tem este nome todo compactado. A Tangolo Mangos resolveu brincar com isso das centenas de pastas compactadas entre as trocas de material entre os integrantes. Foi a forma de transportar a realidade da gravação para o nome do projeto e de certa forma deixar uma espécie de brincadeira interna ganhar novas narrativas conceituais.
A Narrativa Transmidiática
Aliás a aproximação com a cultura do vaporwave e open source acontece nos extras do disco. Afinal de contas o EP não acaba em suas faixas e ganha uma nova narrativa como a própria banda afirma.
“Simultaneamente ao lançamento nas plataformas de streaming, tngl_mngs.rar será disponibilizado como uma pasta zipada na nuvem, através das redes sociais da Tangolo Mangos.
O download livre e gratuito da pasta dará acesso, além das cinco faixas, a ficha técnica, áudios e vídeos exclusivos, spoilers de próximos lançamentos e outros elementos que dialogam com a atmosfera do disco. O resultado é uma miscelânea digital que expande a dimensão auditiva e delimita um pequeno universo transmidiático.
Ouça: Tangolo Mangos tngl_mngs.rar
Esses recortes e fragmentos que fazem com que a viagem e as conexões criem uma narrativa toda particular. Brincando com clichês da web, viagens cibernéticas, texturas e mixagens variadas. As sobreposições encontradas ao longo das faixas mostram como o rock psicodélico, consagrado de várias décadas, pode entrar em uma espécie de caldeirão em ebulição e evoluir para além dos limites do som e da imagem distorcida.
Feito um ciborgue, o andamento da música produzida por eles se confunde com uma mixtape, o universo dos videogame e outros formas de expressão, dos Millennials, se fundem com muita naturalidade.
Os delírios coletivos também são abordados, por exemplo na faixa “hipoteses_telhas_pandas_ovelhas“. Pop e chicletuda em sua essência, ela foi composta há dois anos e nos fazem lembrar até mesmo “Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?”, romance por Philip K. Dick. Aliás, dialoga com um Brasil que parece viver tempos obscuros onde enxergar uma luz para o fim do túnel parece a cada dia que passa um sonho mais distante.
Sem Fronteiras
“le_paSsarin.exe”, por exemplo, sobe no tapete em direção ao deserto da Saara e é cantada em francês com direito a beats pulsantes, recortes que nos levam para o universo dos videogames e para uma tarde ensolarada à beira mar. Tudo isso ao mesmo tempo, que loucura!.
O cruzamento de ritmos também se faz presente nas outras faixas que dão toda uma dinâmica experimental, divertida e astral ao EP. As vibes e texturas aliás fazem parte da narrativa do registro onde cada faixa tem sua aura e que não importa muito a ordem que você ouvir o disquinho. Experiência parecida com a de consumir vídeos e playlists no Youtube, não é mesmo?
Ouça no Spotify enquanto lê a entrevista
Entrevista: Tangolo Mangos
Conversamos com os integrantes da Tangolo Mangos que responderam a entrevista coletivamente e falaram mais sobre o processo todo diferente e extras planejados para lançar um disco em tempos de isolamento.
Vocês estavam perto de gravar um álbum no modo tradicional e daí veio a pandemia onde optaram por gravar um novo material não relacionado ao que iriam gravar. Como foi essa tomada de decisão? E como foi o desenvolvimento e conceito central desta mixtape feita à distância?
Tangolo Mangos: “Com o início da pandemia, percebemos como a distância dificultava a produção do disco que vínhamos produzindo, o EP Mangas a Caminho da Feira nº2. Chegamos a realizar algumas poucas gravações, mas estava sendo complicado re-adequar às nossas dinâmicas de produção, ainda mais se tratando de um projeto em que os encontros e o “estar tocando junto” eram peças fundamentais da sua confecção.
Por mais que já fôssemos habituados com um modus operandi caseiro/DIY de produção fonográfica, nunca nos vimos num contexto em que as limitações se localizavam, justamente, nessa impossibilidade de se encontrar e testar ideias, e não nos costumeiros poucos recursos técnicos para gravação de áudio. Somado a esse choque e ao contexto de isolamento, a gente ainda decidiu que precisaríamos regravar algumas bases e baterias, o que nos fez ter certeza de que seria inviável terminar o disco no tempo em que gostaríamos.
Estávamos neste limbo em que falávamos e discutíamos sobre esse futuro EP, apenas no campo das ideias, sem muita produção prática, quando fomos pegos de surpresa por um convite para participação numa coletânea. Era um compilado que objetivava fazer um apanhado de faixas que dialogassem com o contexto do COVID-19, ao mesmo tempo que levantava fundos para os artistas envolvidos, numa proposta de “demo” caseira mesmo, a ideia era enviar músicas feitas de casa.
A Opção por um novo EP
Resolvemos nos arriscar com a composição hipoteses_telhas_pandas_ovelhas.wav, que gravamos e produzimos em cerca de 20h. Distantes, cada um gravou o que podia de casa.
O resultado ficou bem diferente do que todos esperavam e do que vínhamos fazendo – num bom sentido, na verdade. Testamos beats eletrônicos e efeitos de mixagem mais experimentais, vocais gravados com menos minúcia e mais descontração, instrumentos acústicos que não costumamos usar ao vivo…
A partir do sucesso desse “episódio piloto” a gente achou que seria conveniente e estimulante unir o útil ao agradável, começando um novo disco quase do zero e pausando definitivamente a produção do outro. Como a despretensão foi um norte da criação e conceitualização do disco, seu processo de elaboração foi leve e nos permitimos brincar e testar mais possibilidades.
Pensamos “poxa, podemos usar aquele enxerto de áudio daquela jam daquele show e criar uma faixa”, “podemos pegar um áudio com uma velha ideia melódica e criar um loop”, “por que não procurar umas coisas mais antigas? Que composições fazem sentido neste EP e no som que o contexto o impõe?”.
Por fim, o fato de estarmos sempre juntos neste elo virtual, por trocarmos materiais, ideias, imagens e sentimentos, sempre mediados por bytes, dados, zeros e uns, nos fez abraçar o conceito cibernético e batizar o disco como tngl_mngs.rar, uma brincadeira entre discos homônimos e as pastas compactadas que tanto trocamos e extraímos durante o processo.”
Como foi o processo de incorporação do lo-fi hip hop, trap e outros ritmos dentro da sonoridade psicodélica que já existia dentro da banda? Abriu novas possibilidades? O que vocês estiveram ouvindo que ajudou a levar o som para esse lado?
Tangolo Mangos: “Bem, inegavelmente, o contexto de produção do EP foi muito propício para a exploração desses novos territórios musicais. O fato de estarmos impossibilitados de gravar um kit de bateria completo, por falta de estrutura, nos levou a abusar das drum machines e beats eletrônicos. Isso, somado a uma afeição já existente dos membros da banda por estes gêneros, resultou nessas experimentações com ritmos, sem deixar outras características e elementos de fora, como a canção popular e o rock psicodélico, que já exploramos há mais tempo.
O Baú de Referências
As classificações de gêneros musicais não nos soam como etiquetas que se segregam, mas sim como um grande baú de brinquedos diversos, que são escolhidos, trocados e rearranjados a cada brincadeira. Temos um forte apreço pela velha ideia da antropofagia cultural e, considerando nosso contexto geracional pós-moderno de grandes quantidades de referências disponíveis, nos é muito natural querer investigar essas misturas.
Acaba que o disco trouxe um contexto propício pra gente expressar ideias artísticas que vão além das fronteiras que estabelecemos em nosso primeiro trabalho, e que pretendemos expandir cada vez mais. A ausência da preocupação em como as músicas iriam funcionar ao vivo também nos deixou mais relaxados e “sem papas na língua” na hora de aplicar efeitos, técnicas e recursos mais complexos de se executar no formato live/show.
As Influências
Pensando em influências e referências, é impossível não falar de Potsu, beatmaker de lo-fi hip hop e jazz que melhor intersecciona e representa o gosto da banda pelas batidas lo-fi/chill. Além dele, o grupo consumiu King Gizzard and The Lizard Wizard de maneira massiva e exagerada (risos). Os australianos se mostram como importante referencial tanto do ponto de vista da produção faça-você-mesmo como no ímpeto de exploração e pesquisa de novas sonoridades.
O Crumb, banda americana liderada pela cantora-compositora Lila Ramani, também entra como referência forte no que se diz respeito à integração do clima do lofi hiphop ao jazz rock tocado com instrumentos orgânicos.
O Calor do Deserto
Dá para citar também o impacto que conhecer o tishoumaren (também conhecido como “blues do deserto”) via selo Sahel Sounds e artistas como Mdou Moctar e Tinariwen teve no nosso som. Dedicado à artistas do desertos do Sahel e Saara, o selo dispõe de um incrível catálogo que traz fortemente a presença da guitarra elétrica, baixo e bateria, instrumentos já conhecidos e muito usados na música ocidental, porém, tocados de maneira muito única.
O mais louco é fazer paralelos entre as escalas usadas por eles e as escalas sertanejas, bem como entre escalas do oriente médio, dentre outros vocabulários melódicos orientais. Cada uma tem seu sabor próprio mas é possível relacioná-las e, talvez até por isso de já ter uma relação de identidade e intimidade com essas notas, tenhamos simpatizado tanto com o som do deserto – para além das coincidências geográficas que existem na aridez do clima do sertão nordestino e do deserto norte-africano.”
O celular também fez parte do processo como foi o aprendizado com a tecnologia e o que vem como positivo da experiência?
Tangolo Mangos: “O celular se fez presente como importante possibilidade de captação de áudio. Embora tenhamos gravado a maior parte do material por meio de microfones conectados a interfaces em notebooks, smartphones foram essenciais na construção da maioria das faixas.
A terceira, le_pasSarim.exe, por exemplo, foi totalmente elaborada a partir de uma gravação voz e violão feita em celular. Ele não foi o meio técnico principal do projeto, mas seu uso representa um pouco do abraço às diferentes possibilidades sonoras e à despretensão lo-fi que o EP carrega.
Além da ideia de que se pode gravar de qualquer forma, do jeito que for possível em cada momento, de ver o microfone do celular mais como uma oportunidade e não como obstáculo. Algumas referências nossas trabalham com isso, como é o caso dos Boogarins e do King Gizzard (que, inclusive, gravou o seu disco de estreia com mics de celular).
As Participações Especiais
As participações de André Becker (no saxofone) e de Zé Neto (voz e synth), do projeto Colibri, seriam impossíveis de serem gravadas sem o uso do aparelho – em especial, no caso de Zé, que, para além do distanciamento social, estava geograficamente distante, morando em São Paulo na época.
Na verdade, além da captação, na faixa FUJI[富士山].rom Zé também gravou sintetizador via smartphone, por meio de um app que emula o instrumento.
Do ponto de vista técnico e logístico, gravar áudio com o celular pode ter algumas complicações, você não tem um sistema de retorno efetivo como em softwares de computador, você às vezes grava, exporta aquele áudio e só descobre que existiu algum erro na execução quando reproduz o fragmento dentro do projeto no PC, dentre outras questões. Mas cada caso é um caso, sempre encontramos alguma solução, depende muito do que será gravado.”
“telhas_pandas_ovelhas” é bem pontual com o momento tenso do país e as noites mal dormidas. Aliás a cibercultura e o vaporwave acabaram virando pontos chave até mesmo para os nomes e estética do EP, como veio isso? Comentem também sobre as mensagens ao longo das 5 faixas.
Tangolo Mangos: “hipoteses_telhas_pandas_ovelhas, que foi inclusive single prévio do EP, é uma canção que, embora tenha sido majoritariamente escrita há dois anos, representa muito do que temos vivido nos últimos meses.
Na realidade, a gravação da faixa foi fruto de um convite de uma gravadora que estava elaborando uma coletânea tematizada, justamente, na quarentena e no isolamento social imposto pela pandemia. A composição estava na gaveta mas caiu como uma luva no tema do concurso. Porém, por mais que as questões que a música traz pareçam intensamente ligadas à atual conjuntura, a faixa retrata reflexões ansiosas que há muito estão presentes na vida urbana.
A Cybercultura, os Videogames e o Vaporwave
O uso de simbologias da cybercultura, bem como de referências do vaporwave, nos veio de maneira muito fluida. Crescemos consumindo informática, somos de uma geração que chegou a acompanhar as mudanças e evoluções dos computadores e das tecnologias digitais, o que faz com que a gente se sinta em casa no ambiente virtual ao mesmo tempo em que somos tocados e afeiçoados (de maneira quase saudosa) pelas simbologias e iconografias dos antigos sistemas operacionais e consoles de videogame.
Para além de vaporwave, a gente gosta de glitch art, pixel art, enfim, dentre outras referências que trazem o digital como forte possibilidade artística e criativa. No campo auditivo, algumas dessas referências entram em forma de samples de efeitos sonoros (como sons de moeda do Super Mario Bros ou gravações de calculadoras), outras vem a partir da música em si, como é o caso do lo-fi hip hop e dos samples de anime presentes em mofi_zip_zop_radio_-_batidas_pra_viaja/chaparzao_1000grau.mp3, gêneros artísticos fortemente presentes na cybercultura contemporânea. O próprio nome da faixa é referencial a maior rádio de lo-fi hip hop da internet.
As Órbitas das Faixas
Apesar de estarem unidas pelo contexto de produção caseiro e digital do EP, cada uma das 5 pistas do disco acaba indo por um caminho bem diferente, se tratando tanto de som quanto de mensagem.
A primeira é instrumental, originada da gravação de uma jam realizada durante a passagem de som do nosso último show ao vivo, em março, mais tarde misturada à samples e ambiências; a terceira é uma faixa francófona de letra bucólica, que brinca com atmosferas quase cinematográficas que lembram “música de pirata”, interrompida com uma seção eletrônica fortemente influenciada pelo trap e por escalas ibero-árabes; a quarta é uma canção existencialista e imagética que transita por diferentes ambientes dentro do arranjo, bebendo muito da música regional nordestina, da polirritmia e da exploração de sonoridades com diferentes instrumentos musicais; a última faixa também é instrumental e consiste num lo-fi hiphop baseado em dois temas musicais previamente compostos, experimentando diferentes estruturas e caminhos dentro dessas duas sequências de acordes. A segunda faixa é a já citada, hipoteses(…).wav.”
Aliás a experiência do disco não vai para na audição e sim terá vários extras e materiais secretos. Contem mais sobre esses extras.
Tangolo Mangos: “A ideia de expandir o EP como uma pasta zipada na nuvem nos veio quase como uma brincadeira metalinguística. A brisa de ter uma pasta que “é”, também, o disco nos pareceu atraente. Muitos artistas têm feito obras que superam a linguagem da música e abraçam outros campos, ampliando os sentidos daquela obra, como é o caso dos álbuns visuais, produto popularizado por Beyoncé. Já tínhamos visto artistas levando essas expansões de sentido para a internet, por meio de sites interativos ou jogos de browser que se ligavam ao disco em questão.
No entanto, nunca havíamos conhecido um disco que também é pasta. Com isso em mente, fomos elaborando esses arquivos. Basicamente, a pasta funciona como o CD físico/encarte e embalagem do EP: dentro dela você encontra as 5 faixas em .mp3, capa e ficha técnica em arquivo .txt.
A Pasta
Mas não para por aí, afinal numa pasta as possibilidades são quase tão infinitas quanto numa embalagem de papel couchê. Então além de algumas fotos e vídeos, lá tem spoilers de futuros lançamentos, samples que utilizamos, versões prévias/alternativas de algumas faixas, memes e até um mini-game bobo mas que pode arrancar sorrisos de alguém.
Acho que é mais legal fuçar a pasta por conta própria. Mas, no fim das contas, é só uma pasta mesmo, que nem as outras que tem no seu computador, no meu, enfim. É um conteúdo mais ou menos ordinário numa roupagem mais ou menos ordinária, o barato tá na soma de tudo isso com o EP em si.
Também pretendemos investir num universo audiovisual do disco, para além da identidade visual que a gente já vem explorando.
A ideia é lançar um vídeo para cada faixa e, ao final, com o somatório desses clipes, ter uma espécie de ”mixtape visual” do tngl_mngs.rar, expandindo esse mini-universo-transmídia dele, apresentando para cada faixa novas narrativas. O primeiro clipe, de hipoteses(…).wav já está no ar.