Inspirado pela dramaturgia e o luto, Godasadog abre o coração para falar de saudade em “Gaivota”
As conexões que a arte e a vida podem fazer muitas vezes vão além do nosso consciente. Quando isso acontece as linguagens se misturam em nosso inconsciente e podem se materializar em novas narrativas. Podendo emprestar suas nuances para contar novas histórias. Muitas vezes através de diferentes simbologias. Mas se você já leu o livro “Roube como um artista – 10 Dicas Sobre Criatividade”, do escritor Austin Kleon, você irá entender. No novo single do Godasadog, Victor Meira (Bratislava), consegue conectar uma peça de teatro do dramaturgo russo Anton Chekhov (1860-1904), “Gaivota”, ao luto pela perda do pai, mais uma vítima da COVID-19.
Godasadog “Gaivota”
Diferente de outros projetos para eles compor a distância foi um dos menores empecilhos. Visto que Adam vive em Londres e o processo criativo já acontecia assim bem antes da pandemia. Como Victor cita, a canção “Gaivota” teve um processo criativo pautado na sinergia e alinhamento
A canção foi gravada nos home studios de cada músico. Para o single, o duo contou com as participações especiais da francesa Agathe Max e da japonesa Yoshino Shigihara, assim como Adam, ambas vivem em Londres.
“Gaivota é uma canção que fala sobre ausência e saudade. Sobre a pessoa amada que se foi e o vazio que ela deixou. Exprime um sentimento que muitos estão tendo em tempos de pandemia – ficamos, a cada dia, mais e mais íntimos da ausência.”, define Meira
Pautada na emoção, e carregada pelas águas do mar das memórias dos álbuns de fotografia da família que permeiam sua introdução, Victor expande os horizontes das suas memórias ao lado do seu pai e faz a conexão com a narrativa poética da peça na primeira parte da música.
As pontes se cruzam em sua segunda parte quando Yoshino canta (e recita), com a emoção de seu idioma nativo, sobre as memórias da passagem também recente de seu pai. Mesmo sem entender uma palavra de japonês, você se sente imerso em meio a uma tormenta de emoções. O violino de Agathe Max entra já na parte final como elemento crucial. Ao lado das teclas, catalisa as emoções e permite com que o ouvinte entre de vez neste oceano de saudade.
Ficha Técnica:
Teclas, vozes e baixo por Victor, em São Paulo; batidas, sintetizadores, efeitos, mix e master por Adam, em Londres; violinos por Agathe Max, em Londres; e vozes por Yoshino Shigihara, também em Londres.
Entrevista: Victor Meira (Godasadog)
Conversamos com o Victor Meira para saber mais sobre as histórias e narrativas por trás desta canção que une música, dramaturgia e um álbum de fotografia de memórias.
Como foi o processo criativo da letra, a coisa de encontrar inspiração no luto e na peça do Chekhov?
Victor Meira (Godasadog): “O luto é um processo longo e muito particular. Pra mim foi muito difícil no começo, nos primeiros dias. Com o passar do tempo a gente vai aprendendo a conviver com a ausência.
Mas o processo criativo da letra de “Gaivota” começou pela peça. Quando compartilhei com o Adam a primeira sementinha da canção, ele se lembrou dessa leitura que havia feito há tempos e compartilhou a peça do dramaturgo russo Chekhov comigo, sugerindo a obra como fonte de inspiração para a criação da letra.
Ao ler a peça, um trecho específico no segundo ato me marcou sobremaneira. O protagonista, Treplev, é um jovem dramaturgo apaixonado por Nina, uma jovem atriz que protagoniza uma peça de teatro escrita por ele no primeiro ato.
A cena que me marcou se passa no campo, dias depois, quando Treplev alcança Nina em uma caminhada e a presenteia com uma gaivota que ele acabou de alvejar. Ela fica confusa e horrorizada com o presente e na sequência surge Trigorin, um escritor mais experiente, intelectual pelo qual Nina está apaixonada. Treplev sabe dos sentimentos dela pelo escritor mais velho e se retira enciumado. Trigorin e Nina começam a conversar sobre as dificuldades das carreiras que escolheram seguir na vida e Nina fala sobre o sonho dela de ser uma grande atriz.
Vendo a gaivota que ela recebeu de presente, ele se diverte ao improvisar uma história curta – um enigma que ele resolve deixar para a jovem sonhadora. A história fala sobre uma menina que vive uma vida feliz na margem de uma lagoa, assim como a gaivota. Um dia, um homem surge com uma espingarda e, por puro tédio ou esporte, atira na menina, como atirou na gaivota.
Quando fui escrever a canção eu estava imerso na leitura da peça. Foi quando eu percebi que o que eu estava fazendo era quase um exercício de transposição midiática, trazendo a narrativa da obra do Tchekhov para a canção do Godasadog. Fiquei incomodado com a percepção (ou a realização), porque me pareceu que eu estava usando a peça como uma tampa no ralo de uma pia cheia, um artifício para não lidar com o luto no qual eu me encontrava e que implorava, dentro de mim, para se transformar em expressão.
Então me liberei do rigor de fazer da canção uma releitura da obra do dramaturgo russo e passei a derramar nela o que eu estava sentindo na época. Mantive algumas figuras da peça, trazendo também figuras das minhas memórias de infância, dos álbuns de fotografia que minha mãe guarda, das fotos dos meus pais jovenzinhos, abraçados no Farol da Barra, em Salvador.
A fotografia mental que eu tenho dessa canção é essa: meus pais abraçados, curtindo o pôr do sol no parapeito do farol, aquela vibe bem 1985 nas roupas e na qualidade do filme revelado. E no fim das contas, “Gaivota” é uma canção sobre ausência.
Na segunda parte da canção, a cantora japonesa Yoshino Shigihara também explorou o tema do luto paterno, momento pelo qual havia passado recentemente, coincidentemente. Quando o Adam mostrou a canção pra ela e contou sobre o que as letras em português falavam, ela se sensibilizou muito e se viu ali, se reconheceu na música.
Para mim, é evidente a dor e a saudade que ela sente no modo como ela vocaliza os versos que escreveu para o trecho, mesmo que eu não entenda a língua dela. A música tem esse poder de unir experiências, de fazer a gente se enxergar na realidade do outro, de fazer a gente falar a mesma língua.
Como foi fazer um som com essa galera de tanto lugar diferente no mundo?
Victor Meira (Godasadog): “Yoshino e Agathe são artistas baseadas em Londres, assim como o Adam.
O encontro do Adam com a Agathe se deu em um show dela em que o Adam estava trabalhando como engenheiro de som. O show foi em uma catedral – ela se apresenta como artista solo e o trabalho dela mistura o violino com pedais de efeito e elementos eletrônicos. Desse show em diante, passaram a trocar bastante sobre música e hoje são grandes amigos.
Agathe Max é uma violinista francesa baseada em Londres, ativa principalmente na cena de música experimental da cidade.
Além dos trabalhos lançados como artista solo, tem parcerias com artistas como Rhys Chatham, Carla Bozulich, Jonathan Kane, Alexander Tucker, Lucio Capece, David Daniell e Yoko Higashi, e já se apresentou em festivais e projetos importantes como Supersonic Festival, Roadburn, ISSUE Project Room e Electron Festival.
O encontro do Adam com a Yoshino se deu no Café Oto, importante casa de música experimental na Europa, local onde Adam trabalha também como engenheiro de som e curador. Se conheceram em uma apresentação solo dela na casa e passaram a acompanhar os trabalhos um do outro.
Yoshino Shigihara, que também se apresenta sob a alcunha Yama Warashi, é uma artista japonesa que se mudou para Londres em 2019, em busca de novas fontes de inspiração. Suas maiores referências são a dança tradicional japonesa, o free jazz, a música tribal africana e a psicodelia. As letras de suas canções têm um certo encanto e uma estranheza que se fundem nas melodias míticas e viciantes de suas composições. Atualmente ela faz residência no Total Refreshment Centre e trabalha no terceiro álbum de sua carreira.
Em 2021, Agathe mora com Adam, são roomates, e Yoshino mora bem perto deles em um barco, na costa.”
Quais são os planos para o futuro do Godasadog?
Victor Meira (Godasadog): “Rafa, o futuro é uma folha em branco. Em 2021 eu estou bem imerso no processo criativo do 4º disco da Bratislava, que está com formação nova e tá vindo com uma proposta que vai deixar bastante gente surpresa. Adam também está mergulhado no lançamento de seu novo projeto, Glynmoog, que vai ser lançado agora no dia 13 de junho, no formato de um álbum-filme – uma animação feita por ele mesmo na estética 8-bit que vai aquecer o coração de toda uma geração que cresceu jogando Zelda e Chrono Trigger, não tenho dúvida.”