King Krule vai da anarquia ao lirismo em apresentação única no Brasil

 King Krule vai da anarquia ao lirismo em apresentação única no Brasil

King Krule no Terra SP, em São Paulo – Foto Por: Rafael Novak (@novakfotografia)

Músico, compositor, rapper e produtor inglês, King Krule, fez seu primeiro show no Brasil

Tem shows que sinto que temos que ver no tempo certo. Às vezes ele é no começo da carreira onde o artista está com o sangue nos olhos querendo provar tudo que está no primeiro disco. Aquele onde não tem apenas referências de um curto período de tempo, mas de toda uma vida. Até por isso até existe a tal “maldição do segundo disco” como um disco “maldito” quando o sucesso vem relativamente cedo.

Já outros você agradece por ter a oportunidade de assistir um bom tempo depois. Seja por maturidade artística, seja por desenvolvimento dos tentáculos de sua identidade e narrativa, ou por poder ver uma maior compreensão, e diálogo, do público com a obra. Algo que vai além de um tiro certo e engrandece toda a complexidade de uma discografia em sua totalidade. O casamento entre o poder da obra e o encontro com o interlocutor.


King Krule - Terra SP - Foto Por Rafael Novak (@novakfotografia) - Perfil
King KruleFoto Por: Rafael Novak (@novakfotografia)

O espírito D.I.Y do King Krule

Lembro até hoje quando assisti a Gaía e o Chuck comentando sobre este (até então) novo artista incrível que tinha acabado de lançar seu primeiro disco. Na época, aquela estética estranha, mas acessível, era algo que conseguia fazer um elo entre a poesia, a estética do post-punk e o niilismo juvenil.

Só de pensar que em 6 Feet Beneath the Moon (2013) já tínhamos músicas como o hit indie atemporal “Easy Easy”, “Ceiling” e “Baby Blue”, era de fato um futuro promissor. Mas como tudo promissor é incerto, as dúvidas sobre para onde a capacidade de Archy Ivan Marshall (King Krule) ia evoluir era um terreno a se observar. Justamente por sua versatilidade e múltiplos caminhos que poderia ter seguido.

Afinal de contas, ele explora uma gama de sonoridades que vai do punk jazz com hip-hopdark wave ao trip hop. Mas mais do que isso, seu lirismo e construção das canções, muitas vezes soam como pequenos curtas-metragens com direito a plasticidade de detalhes que vão muito além de um microfone, pedais e abstração.

As escolhas dele que engrandecem o processo, desde o espírito D.I.Y., o respeito pela arte e de saber até onde é possível subverter que fazem dele um artista não somente único, mas que se desafia a cada nova composição que coloca no mundo.

Redescobrindo o Punk

Para mim, conhecer o som do King Krule naquele momento, meados de 2014, foi de certa forma redescobrir possibilidades do que era ser punk. Do ponto de vista que se o gênero naquele ponto parecia ter parado de evoluir em estética, ele vivia na ideia. De ressignificar de que punk, na verdade, é linguagem, quebra de regras, contestação e não ter medo de mostrar sua personalidade. Archy por sua vez, era um garoto rebelde desde a infância, daqueles artistas que o sistema ou as regras do que tem que fazer ou não, não se encaixavam.

E não é para pouco, de uma criação rígida a traumas com os pais, ele teve que fazer seu próprio caminho. Não é por acaso que em suas letras ele se despe e fala abertamente sobre problemas de saúde mental, como depressão e insônia. Isso se traduz nas diferentes formas de criar. Até por isso sua mente inquieta deu origem a projetos com nomes diferentes, algo meio Fernando Pessoa, com seus alter egos. Entre eles Zoo Kid, King Krule, Archy Marshall e Edgar the Beatmaker.

De 2013 para cá ele lançou três discos, The Ooz (2017), Man Alive! (2020) e o mais recente Space Heavy (2023). Mostrando como o tempo para ele foi como um vinho para maturar ainda mais as composições e universos oníricos presentes sua narrativa. Chegar ao Terra SP e se deparar com um sexteto em sua formação para mim foi algo empolgante somente por pensar em todas as possibilidades, e ambiências, que poderiam ser emuladas na recriação ao vivo dos discos.


King Krule - Balaclava Records - Foto Rafael Novak (@novakfotografia)
King Krule faz show de 2 horas em São Paulo. – Foto Por: Rafael Novak (@novakfotografia)

King Krule em São Paulo

Por volta das 21:16h sob luzes roxas e fumaça, o sexteto subiu ao palco sem grande alarde e logo tratou de conduzir a cerimônia a sua maneira. Abrir com a romântica “Perfecto Miserable” de forma mais tímida e acuada, dá o tom do que estava por vir. Um show recheado de momentos sentimentais, soturnos, quebradiços, confessionais, caóticos e de intensa troca. O que inclui no pacote também seus momentos propositais de anti-clímax e de consternação – tudo isso devidamente calculado.

Não é por acaso que nem mesmo o público por parte do show sabia como reagir em diversas horas. Se era difícil se mover por condições de lotação da pista, o que mais se via das tribunas era um público hipnotizado pelas narrativas invisíveis que o espetáculo evoca. Como se cada um estivesse em seu universo particular, revivendo memórias de Archy como se fossem as suas próprias. Ou até sendo de certa forma, já que música é uma conversa profunda entre artista e interlocutor.

Embora o show tenha sido calcado em Space Heavy (2023), com dez músicas do álbum dentro do set, ele não deixa de trazer os primeiros singles para a apresentação. Bastante generosa, ela ao todo contou com 24 músicas e um pouco mais de duas horas de duração.

Além do vocalista, é importante valorizar não apenas o entrosamento entre os integrantes, mas também como a individualidade agrega para o resultado. Dois me chamaram bastante a atenção em especial. O tecladista com seu instrumento customizado que lembra até mesmo um computador antigo e o opera feito um DJ, criando ambiências e possibilidades para cada canção ganhar lastro.


King Krule por Rafael Novak (@novakfotografia)
King KruleFoto Por: Rafael Novak (@novakfotografia)

A catarse coletiva

Como também o saxofonista Ignacio cZ Salvadores. Natural de Buenos Aires, ele não deixa mentir sua latinidade durante a apresentação. Feito um garoto punk, enquanto não está com seu instrumento, ele corre por toda a extensão do palco, faz dancinhas irônicas, sobe nas estruturas, vai ao público e canta cada uma das canções como se fosse o primeiro da fila do show.

O que naturalmente faz com que seja fácil se identificar com a euforia e o despertar de sentimentos que as músicas cheias de angústias trazem consigo. Até ouvi por lá que ele parecia estar alterado, mas se conectar com a música muitas vezes é “coisa de doido” mesmo.

Um dos momentos mais “inusitados” da apresentação é justamente quando Archy pede para o público imitar o miado de um gato a cada comando, o que o público fez questão de responder.

A apresentação tem, sim, os momentos onde o público vai à loucura como “Easy Easy”, “Seaforth”, “A Lizard State” e “Rock Bottom”, mas não é um show daqueles sobre tal música ter que estar presente para valer o ingresso. É uma apresentação íntima sobre conseguir se conectar de forma genuína.

Olhar para esse show como fã de música é uma experiência a parte, pois tem momentos de desconforto, momentos de querer subir no palco e tocar guitarra com raiva, momentos de se deixar levar e outros de apreciar apenas a estética.

O poder da música ao vivo

Seria difícil tentar explicar esse emaranhado, e talvez isso diga muito sobre como a música ao vivo é um dos momentos máximos da arte dos encontros. E foram muitos ontem. Pessoas de gerações diferentes, com backgrounds diferentes, mas com o sentimento de que vale, sim, a pena permitir se conectar nem que seja por um par de horas. Olhar para aquele estranho do lado e com apenas um olhar dizer “sim, eu te entendo”.

Sintetizar em poucos caracteres é um desafio, e logo após sair da casa localizada na zona sul de São Paulo, escrevi em um tweet:

O show do King Krule consegue ser bonito, caótico, plástico, poético, torto, punk, jazzy, romântico, anárquico e vanguardista ao mesmo tempo.

King Krule - Terra SP - Foto Por Rafael Novak (@novakfotografia)
King Krule no Terra SP, em São Paulo – Foto Por: Rafael Novak (@novakfotografia)

Setlist @ São Paulo – 02/03/2024

Perfecto Miserable
Alone, Omen 3
Dum Surfer
Pink Shell
A Lizard State
Space Heavy
Flimsier
Seagirl
Cadet Limbo
Tortoise of Independency
Empty Stomach Space Cadet
Flimsy
Airport Antenatal Airplane
Easy Easy
Stoned Again
Seaforth
From the Swamp
Underclass
Baby Blue
Rock Bottom
Half Man Half Shark
If Only it was Warmth
It’s All Soup Now

Encore
Out Getting Ribs


Terra SP - King Krule - Novak
King KruleFoto Por: Rafael Novak (@novakfotografia)

Guerrinha - Foto do Novak
GuerrinhaFoto Por: Rafael Novak (@novakfotografia)

Guerrinha abrindo show do King Krule - Foto Novak
Guerrinha abrindo show do King KruleFoto Por: Rafael Novak (@novakfotografia)

 

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