Dersuzalá viaja nas ondas cibernéticas do lo-fi em “Longe, Longe, Longe”
No fim de setembro o duo Dersuzalá, duo composto pelo compositor, produtor, arranjador e baixista pernambucano, Matheus Dalia e Bruna Almonda (Abacaxepa) – que assina as vozes, composições e arranjos vocais. Produzido durante a pandemia à distância, é um lançamento do selo paulista Cavaca Records e conta com a produção de Benke Ferraz (Boogarins).
A poesia do cotidiano, inclusive, é um dos elementos do material pandêmico, onde o artista se viu distante da beleza de sua cidade durante o período de reclusão.
“Eu costumo brincar que esse EP foi feito no modo EAD”, brinca Dalia. O artista mora em Recife, mas contou com a colaboração intensa de Bruna Alimonda, que vive em São Paulo. Para encurtar distâncias, o processo de ensaiar e definir melodias vocais foi feito e debatido online.
Para agregar ao processo eles convocaram para a produção o Benke que assina ela ao lado de Matheus e foi o responsável por incrementar elementos atmosféricos às músicos como o próprio duo reitera. Até por isso a ambientação é bem viajante e permite muitos elementos novos para agregar a estética lo-fi do material.
“Acredito que a forma com a qual contemplamos e descrevemos objetos e paisagens, se feita com a técnica correta, pode ser forte o suficiente para expressarmos nossas emoções”, comenta Matheus Dalia.
Quando o assunto é sonoridade, a estética lo-fi transparece dentro do modo de produção de baixo orçamento com estrutura de canção, do rock, e expandindo os timbres para o revival do R&B e Neo Soul. Trazendo para si uma complexidade que permite por si só uma grande viajem no momento da escuta.
Entrevista Dersuzalá sobre Longe, Longe, Longe
Conversamos com o duo que contou mais sobre o processo de concepção à distância.
Como surgiu a ideia do projeto? Como veem que esse momento de isolamento contribuiu para o processo e como foi o “encontro de vocês” e a natureza de encurtar a distância física?
Dalia: “No início de tudo, o projeto era uma banda imaginária da minha cabeça. Logo após o decreto da pandemia, quando a vida foi suspensa, aproveitei o tempo para gravar pequenas ideias em casa e criei o hábito de mandá-las para Julia Moreira, a responsável pelas artes lindonas do single e do EP. Ela é uma grande amiga com a qual eu possuo um grande elo de confiança em me expor e escutar suas sugestões. Com comentários gentis, ela me incentivou a transformar as pequenas ideias em músicas, que foram se acumulando, retrabalhadas e filtradas até se tornarem um EP.
Na época, tudo que eu criava tinha intenção de se transformar em canção. Ironicamente, eu não tenho absolutamente nenhuma qualidade vocal para dar vida às minhas ideias. Por esse processo pouco intuitivo, desenvolvi o instrumental de todas as músicas e compus letra e melodia de boa parte. Essas faixas passaram um bom tempo guardadas até que, em um determinado momento, as mostrei para Bruna, que ouviu e, quase que no mesmo instante, improvisou uma melodia/letra por cima de uma delas, mostrando que a nossa mistura tinha potencial. Conheço Bruna desde a adolescência e ela sempre foi uma referência musical para mim. A primeira lembrança que eu tenho de quando a conheci é dela tocando violão.”
Bruna: “Conheço Dalia há uns bons anos e sempre tivemos em comum a música, mesmo quando não tínhamos a menor ideia de que levaríamos isso como ofício pras nossas vidas. Desde então, acabamos nos afastando fisicamente quando eu fui morar em SP há 7 anos atrás. Porém, sempre existia esse flerte musical entre a gente. Sabíamos que em algum momento a gente ia se juntar pra fazer acontecer algum som. No auge da pandemia, acho que passamos por processos bem parecidos em relação ao autoconhecimento e a conseguir transformar esse momento em criatividade. Acho que isso ajudou a gente a se encontrar nas ideias.
Quando Dalia me mostrou as loucuras musicais dele, eu consegui trazer pra muito perto de mim e do meu processo de composição durante a quarentena, quase como se fosse um diário musical, fez todo sentido já que eu também estava compondo incessantemente ao longo dos longos dias de isolamento. Acabou que nossa troca foi fluida. Nos encontrávamos virtualmente e debatíamos sobre os sons, sobre as vozes e melodias. Só depois, como cereja do bolo, é que chegaram as letras, o que é uma perspectiva extremamente oposta à maneira que costumo compor. Na maioria das vezes, eu parto de um texto ou de brincadeira com as palavras. Foi gostoso pensar na contramão.”
Em termos de estética o trabalho é bastante fluido passando por estilos que vem cada vez mais sendo resgatados mas também olhando para o contemporâneo, como foi escolher e trabalhar os timbres? Como vê que a produção e mixagem de Benke contribuíram no processo?
Dalia: “Benke foi uma contribuição incrível para o trabalho, não só pelo lado técnico de mixar e masterizar, mas pelas colaborações de arranjo, ambientação e concepção das músicas. Quando o apresentei às músicas, toda a parte instrumental estava pronta. Porém, ele conseguiu aprimorar ainda mais os beats, deixando o ritmo mais fluido e adicionando ambiência nas transições.
Eu tive meu primeiro contato com o estilo de produção dele durante uma oficina chamada “Mapeando Pernambuco“. Nessa oficina, Benke convidou vários músicos da “terrinha” a mandar sons gravados em celular para, em uma call de zoom, ele fazer músicas com as ideias enviadas. Eram sessões de produção e composição em tempo real, com o uso de recursos razoavelmente acessíveis, o que me influenciou fortemente a fazer um disco dentro de casa.”
Como foi a experiência do desafio de fazer uma das faixas, “Detetives Selvagens”, soar meio Gorillaz? Já que é uma banda que não coloca muitos limites criativos e estilos que abraça ao longo da discografia. Como vê o impacto da banda no campo criativo no lançamento?
Dalia: “Não sei se realmente a nossa sonoridade se aproximou à do Gorillaz em “Detetives”, mas a referência surgiu durante um impasse em relação à música. Tínhamos o instrumental pronto, mas não sabíamos bem como encaixar as vozes nos espaços vazios.
Então, Benke lançou a ideia, meio brincando, de que Bruna poderia fazer uns vocais “meio Gorillaz” por cima do som. Estávamos no meio de uma gravação de vozes no Estúdio Estelita e, depois que gravamos todas as canções do dia, Benke deu play em Detetives Selvagens e Bruna começou a improvisar um monte de ideias melódicas sobre o beat.”
A literatura e o lado visual, são preocupações tanto no campo estético como na sensibilidade das melodias. Foi algo natural para vocês? Pensam em trabalhar o lado visual e poético em futuras produções audiovisuais ou pretendem deixar o campo imagético para o ouvinte escolher a viagem que quiser?
Dalia: “De minha parte, não tem nada muito natural no processo de composição. É um trabalho cerebral e de muita persistência. Eu busco, antes de tudo, a estrutura da música, harmonia, melodia, ritmo e timbres. Só depois de tudo isso é que consigo pensar em letra, que tem como função enriquecer a musicalidade da obra. Tratando-se de canções, nas músicas em que escrevi, sinto que o processo foi extremamente laborioso. Ainda mais que eu, enquanto cantor, não consigo cantar nem “Parabéns pra você”. Já para Bruna, que é uma grande cancionista, sinto que o processo é mais fluido. Uma das minhas melodias preferidas do disco é a de “Cadeira de Praia”, que foi algo que ela compôs em apenas alguns dias, com letra e camadas de vozes completas.”
Bruna: “Diferente de Dalia, a estrutura harmônica e os timbres chegam depois no meu processo de composição. Eu costumo sempre partir da literatura e, daí, encontrar a melodia que ela me traz. A estética da vida sempre me encantou, então costumo dizer que tudo que parte de mim tem um cuidado estético.
Eu amo a beleza nas pequenas coisas e, quando digo beleza, não se engane por esse significado padronizado no qual a gente tá acostumado a referir essa palavra. Estou falando sobre tudo que soa intrigante. O visual sempre anda junto da minha construção artística, então muitas vezes enxergo cores, imagens e objetos nos sons. Sou super a favor de brincar com a visualidade do som e espero que a gente explore mais esse caminho. Inclusive, eu ouço algumas músicas do EP e me percebo criando clipes inteiros em mente.”
Aliás o campo estrutural brinca com várias canções e backgrounds de vocês, agora pronto, como enxergam isso e as influências que para vocês soam muito latentes? O que andaram ouvindo na época das composições que sentem que direta ou indiretamente está ali?
Dalia: “Como eu disse outro dia, o lasca de falar sobre referências é que, muitas vezes, você mira numa coisa e acerta em outra. Acho que o modo de produção acabou sendo a minha maior influência para compor o instrumental. Por se tratar de um disco quase que inteiramente gravado em casa, com exceção das vozes e da bateria de uma das músicas, eu busquei referências de gravação e produção de baixo orçamento.
Eu sou muito fã dos beats de JDilla, por exemplo, e sampleei vários timbres de bumbo, caixa e chimbau das músicas dele para construir a parte rítmica de “Longe, longe, longe”. As guitarras, por outro lado, orbitaram nessa sonoridade limpa e dedilhada por ser o único jeito que eu conseguia gravar com qualidade em casa. Eu até queria fazer umas coisas com distorção ou com pegadas mais rítmicas, mas a saturação do programa e a guitarra de 500 conto não entregavam muita versatilidade.”
Como veem que o projeto funcionará no modo offline? Pretendem fazer shows explorando as possibilidades estéticas imersivas e o lado onírico do projeto?
Dalia: “Por sermos um projeto feito à distância, a logística para que façamos shows dificulta um pouco. Não havíamos conversado de fato sobre a possibilidade real de apresentação até que recebemos um convite interessante para um show em novembro. Para mim, a primeira exploração a ser feita é sonora, transportando as músicas feitas, em sua maioria, à base de beats programados para um arranjo de banda. No futuro, quem sabe, a gente consiga explorar ainda mais o lado visual do projeto e agregue isso à performance.”
Faixa a Faixa “Longe, Longe, Longe” por Matheus Dalia
1 – “Margem”
“Inspirada no conto ‘A Terceira Margem do Rio’, de Guimarães Rosa. Esse texto, por sua vez, foi o que inspirou Caetano Veloso e Milton Nascimento a comporem a música homônima. Resumindo objetivamente, o conto fala sobre um pai que abandona a família para viver num barco à deriva em um imenso rio. Existem inúmeras interpretações sobre o texto, mas minha abordagem foi de resgatar elementos desse conto para focar no sentimento de abandono que ele me remete. A música fala sobre abandono parental, em suma.”
2 – “Cadeira de Praia”
“É uma música de veraneio, de imagens quentes e coloridas. É completamente solar, ao mesmo tempo em que é imbuída de uma atmosfera sonora onírica, quase psicodélica. Do EP inteiro, é a que possui melodia e letra feitas inteiramente por Bruna.”
3 – “Picolé”
“Assim como ‘Cadeira de Praia’, ela evoca cores quentes e melodias cantaroláveis. As frases solfejadas e assoviadas evocam uma alegria infantil. Não à toa, tínhamos uma ideia inicial de incluir coros infantis em algumas partes dela.”
4 – “Máquina de Lavar”
“Lembrei de duas coisas que me chamam atenção em textos literários: Quando o texto é muito imagético e quando a descrição detalhada de um objeto é suficiente para causar emoção. Portanto, tentei basear o meu tema em cima de alguma coisa que me chamasse a atenção, que, no caso, foi a máquina de lavar. Nos versos, a letra passa por frases subjetivas e letárgicas, que sugerem a sensação de um tempo preso em si mesmo, circular, em que tudo se movimenta, mas nada acontece. No refrão, a máquina de lavar é descrita de forma objetiva enquanto serve de metáfora à sensação de se estar vivendo suspenso no tempo.”
5 – “Detetives Selvagens”
“É claramente inspirada em Neo Soul e R&B. A gente tava sem ideia do que fazer em cima do instrumental, até que Benke sugeriu que fizéssemos uma música meio “Gorillaz“, com Bruna improvisando melodias que depois seriam sampleadas e picotadas por cima do beat. Considerando que o maior sucesso comercial do Blur, “Song 2”, é um suposto pastiche do Grunge, achei irônico fazer o mesmo com o outro projeto de Damon Albarn.”
6 – “Ascensorista”
“Existe uma música de Tom Zé cuja letra é aquele aviso clássico de porta de elevador ‘Aviso aos passageiros: Antes de entrar no elevador, verifique se o mesmo se encontra parado neste andar’. Inspirado nela, escrevi uma letra que abre com referência a essa frase, mas personificando o tal do “mesmo”: É o ascensorista, o eu lírico da canção, narrada em primeira pessoa. Na letra, o ascensorista descreve a realidade de seu dia a dia de maneira claustrofóbica, tensa e solitária.”