PAES mergulha nas profundezas em álbum experimental produzido por Benke Ferraz (Boogarins)
Nostalgia de um alter ego sem freios. Seria uma ótima maneira de discorrer sobre o novo registro do pernambucano PAES. Wallace foi produzido por Benke Ferraz (Boogarins) e passeia pela infância, amores, política, questionamentos mundanos, reflexões entre dissonâncias e beats experimentais.
Feeling de sobra que ganha vida nas suas pequenas estranhezas. Liberdade não sobra dentro e fora da sua narrativa. São muitos flertes, camadas e um processo bastante artesanal.
As Gravações
O EP foi gravado em apenas dois dias em uma residência artística que Paes e Benke fizeram no Glândula Lab, em Gravatá (PE). Lá eles gravaram três músicas já compostas e pré-produzidas anteriormente, sendo duas delas parcerias com Marcelo Campello e uma de José Duarte.
A mixagem foi feita por Guilherme Assis no Estúdio Zelo, em Recife (PE), e a masterização é de Adriano Leão, do Casa do Kaos, João Pessoa (PB).
Entre as referências não é difícil associar a nomes como Radiohead, Talking Heads, synth pop oitentista, minimalismo, lo fi hip hop e até mesmo a boa e velha MPB brasileira. Com muita liberdade para criar, co-criar, remixar e procurar novos caminhos. É desta cumbuca experimental que vem seu fervo.
Para Colecionar!
O sexto trabalho de PAES, Wallace está lançado também nos formatos Digital e K7, fabricada e distribuída pelo selo próprio Abismmo.
Em sua discografia você encontra: Paulo Paes (EP/Independente/2007), Brisa (EP/Independente/2008), Paes (EP/Independente/2011), Sem despedida (CD/ Independente /2013) e Mundo Moderno (K7/ Abismmo/2018).
Com a Palavra: Benke Ferraz (Boogarins)
O músico que também atua como produtor e guitarrista no álbum conta um pouco mais desta nova experiência dentro de sua trajetória como músico – e produtor.
“Fazia tempo, acho, que não aprendia a tocar uma música. Estou acostumado a produzir a partir da mixagem ou a compor junto com os artistas.
Então, aprender os acordes e decorar a música foi um processo que se aliou ao meu lado guitarrista. Tanto que nas faixas “Fala”, “4Paredes” e “Lembra”, que foram as músicas que Paes me apresentou logo no começo, o que tem meu é a guitarra e beats.
Esse foi o primeiro trabalho fora dos Boogarins em que atuei como produtor e guitarrista. Não mixei a maioria das faixas, somente “Espelhoz” e “8bitBlues”, que foram músicas que compomos juntos.
Então, é isso, tem um pouco do meu lado guitarrista e também de beat maker, aproveitando as ideias que tivemos nesses dois dias no estúdio”
O Mini Doc: 4Wall4ce
Além do disco o pernambucano preparou um mini doc com direito a imagens das gravações. Este que é dividido em duas partes de 5min, e contou com a direção de Victor Giovanni.
“Paes me convidou para trabalhar no projeto no final de 2018 e, como a gravação aconteceu em abril do ano seguinte, tivemos bastante tempo para discutir ideias. Assim, quando ele me trouxe as referências, conseguimos chegar em um lugar comum onde o filme traria a sua personalidade e o meu olhar.
O curta foi gravado ao longo de dois dias em Gravatá (PE), no Glândula Lab, durante a produção do disco. Foi tudo muito corrido e na medida em que as coisas iam acontecendo, fui resgatando as referências e as encaixando dentro daquele processo frenético.
Scotch Mist de Radiohead, o clipe “Bombay” de El Guincho e o “Pepperoni Playboy” de Mac DeMarco foram algumas das principais referências trabalhadas. Com todos envolvidos no projeto, a convivência foi ótima e o lugar, cercado por verde, inspirador, o que fez do processo fluído e prazeroso”, lembra Victor.
Paes abre o coração para falar sobre os nuances, processos, produção e curiosidades a respeito do disco. Com a mesma liberdade que trilhou na obra. Vale a pena a leitura tanto para entender mais sobre como funciona seu processo, assim como os recursos e como enxerga a intertextualidade de sua obra com nossos dias atuais.
Sendo assim, quem assume o comando e o texto a partir daqui é o músico pernambucano.
Ouça o Wallace enquanto Lê
Decifrando o Wallace
INTRO (JOSÉ DUARTE)
Engraçado, começando a escrever agora este “faixa a faixa” mais livre, sem forma definida sugerida pelo Rafael (Obrigado!) percebo que o Wallace já começa na parte do disco que mais me emociona.
Esta “Intro” é a segunda metade da música “4Paredes”, composta pelo meu amigo José Duarte, que originou todo conceito e encerra o disco. Toda vez em que ouço este trecho, na maioria das vezes sozinho, eu choro de alegria. Não sei ao certo, mas tenho certeza que tem vários motivos e não só um (risos).
Benke tem muita culpa nisso, quando mostrei e ele tirou os acordes, no fim entra nesta parte mais viajada e por cima da minha linha de baixo ele criou essa melodia linda na guitarra e virou o mote. Me veio esse coro na minha cabeça.
Lembrei de Clube da Esquina e ele fechou com essa batera louca processada entrando no feeling das cordas numa mix perfeita. A letra em mantra revela a mensagem do todo, “o que é que essas paredes mal pintadas têm, além de um quadro velho?”.
Eu interpreto que as paredes são vários aspectos da vida, a cidade, as relações com você mesmo e o outro, algo específico que se represente neste arquétipo e mal pintadas porque estão conflituosas, e o quadro velho ou novo é a forma como lido com tudo isso. Não associando o velho ao ruim, pelo contrário é importante, mas a mudança é transformadora. Simboliza para mim não ter medo, enfrentar algo que parece enorme como um muro mas não se abater e descobrir como atravessá-lo.
A Vinda para SP
Também deve ser por parte de associações com o que vivo na vida pessoal/profissional, a mudança para São Paulo, sair de Recife depois de 30 anos, 13 deles trabalhando com música lá, tudo que deixei pra trás, o que carrego comigo, pode ter relação com todo momento de transformação na minha carreira com este novo álbum.
Mas eu acho que vai além de tudo isso. É como se você percebesse que existem alguns momentos num disco, show, música, recorte, na vida! Onde algo extraordinário acontece, como sintetizasse magicamente toda a coisa e você se sentisse vivo e que a existência faz sentido, que a banda conseguiu expressar da melhor forma além da sua melhor expectativa aquilo que compôs sabe?
É algo difícil de se explicar, mas muito fácil de perceber. Quando eu ouvi pela primeira vez, mandei um áudio pra Benke dizendo: “É isso, a gente conseguiu”.
FALA (PAES / MARCELO CAMPELLO)
Eu sempre falei demais e escutei pouco os outros. De uns anos pra cá fui aprendendo com eles a ouvir mais. Prestar atenção na vida do outro, se interessar, aprender, entender os questionamentos e os problemas do outro e estar disposto a ajudar a decifrar, solucionar, ou simplesmente ouvir, que já é ótimo pra quem está precisando ser ouvido.
Desta forma passei a enxergar a relação a oralidade, da fala, comunicação em geral. Os vários tipos de ruídos, formas de comunicação diferentes, verbal, escrita, virtual e como todas essas transgressões tecnológica e importante afeta nas nossas relações. E dentro deste contexto de que estamos todos trabalhando para pagar contas, correndo contra o relógio, os anos passando em segundos, não há tempo para ouvir, falar, o que dirá ser ouvido.
Estamos sempre querendo agarrar o amanhã e não nos desapegar do passado. O agora, o presente é um hiato. Um buraco negro. Um abraço, um filho que chama a atenção dos pais e quer falar algo importante, um desabafo, um amigo em depressão precisando ser ouvido e ajudado, uma declaração de amor, uma carta, um poema, um adeus, até logo, uma confissão.
O Videoclipe
Esta faixa, que é uma parceria minha com Marcelo Campello, é o single e a primeira a ganhar um videoclipe. Quem filmou e dirigiu foi Gabriel Rolim com sua sua câmera VHS e edições maluquinhas.
Eu só conhecia ele de internet, dos trabalhos anteriores com outras bandas mas a gente se deu bem logo de cara. Desde que procurei ele para fazer parte, tudo se desenrolou muito rápido.
São muitas referências musicais e visuais em comum né, estéticas que tem bastante a ver. E a forma que ele ressignificou a música nas imagens, captando e dando forma a toda essa reflexão com a multidão, e a falta de comunicação entre as pessoas foi genial.
A faixa foi escolhida como single pela cachorrinha de Benke e Ana Garcia, chamada Nina. Nos ensaios ela mordeu três vezes o papel da mesma cifra. Eu falei “é o single”. E ela, a real produtora musical (risos).
LEMBRA (PAES / MARCELO CAMPELLO)
É nossa “Imagine” (risos). Eu e Marcelo Campello, amigo de longa data, com quem tenho uma banda (ano que vem quem sabe lançamos algo), começamos a compor essa música a quase dez anos atrás e fomos terminar no início deste ano.
Ela fala para todo mundo numa mensagem de coletividade, de unir forças contra as dificuldades de se viver num mundo moderno e destrutivo, “Juntos vamos resistir, uma força irá nos unir, liberdade entre nós”.
É uma declaração de amor mas que também pode ser entendida de uma forma mais ampla, “Lembra que um dia fomos um, sinta o meu abraço no teu corpo. Siga os teus passos sem olhar para trás”, daí veio o nome da música.
O Cotidiano & Os Timbres
Casa perfeitamente com o que venho refletindo sobre a vida e também com o atual momento em que estamos vivendo politicamente, socialmente no mundo todo, com esse crescimento do poder pela extrema direita e as consequências do impacto disso na vida de todos, no planeta, mas como falei, foi composta em 2010, por aí.
Os timbres são todos analógicos, o que reforça a sonoridade vintage e endossa a nostalgia presente na letra e melodia. O beat (algumas partes usamos um filtro apenas), órgão, baixo e piano são de um Casiotone 80’s bem foda que usamos emprestado do amigo Ciro (Obrigado!). Fala de amor e de luta. E um não funciona sem o outro.
8 BIT BLUES (BENKE FERRAZ / PAES)
Quando escuto essa mix final de Benke, eu me sinto dentro de uma fase de algum videogame dos anos 90. Esse tema surgiu da nossa primeira jam juntos no Glândula Lab.
Eu fiz baixo e vocal e ele guitarra encima de uma base rítmica que criamos também no Casiotone. Surgiram três temas mas esse foi o que escolhemos pra compor o álbum. No momento que estávamos criando ele, percebemos que tínhamos uma música dali.
Ficamos por volta de uma hora tocando até achar esse mote e bolar uma parte B. E quando formulamos a estrutura, ficamos trabalhando nela mais uma hora. Foi meio espantoso como fluiu rápido e nos demos bem musicalmente fora da esfera da pré-produção das outras três faixas que levamos já estruturadas e arranjadas.
A Residência
A “oficina”, ou residência deu muito certo. Nos desafiamos a explorar um lugar novo pra ambos. Benke de compor algo na guitarra ao vivo pra um projeto diferente do Boogarins e pra mim de compor através desse método de processamento de sons que ele tem, de modificar os canais de instrumentos reais no softwere e adicionar plugins, efeitos, filtros até chegar num outro universo mais eletrônico e experimental.
Essa provocação que fizemos levou o álbum pra outro lugar E isto permeia todo ele, em outras faixas e acabou conduzindo a mix geral.
[alert type=white ]Pausa para a Capa[/alert]
A CAPA
“Foi um processo muito bacana, escutei as músicas do álbum e junto com as ideias de Paes a gente foi desenvolvendo juntos todo o imaginário visual. Conversamos muito sobre cores, acho que foi o pontapé para pensar a vibe da pintura, os tons em pastel.
Casou muito com minha produção essa relação da cena se passar em um quarto, gosto de pintar espaços internos e acredito combina muito com as músicas, esse momento de reclusão e parar para escutar, na fita cassete e tal. Além das referências que ele já tinha me mandado, busquei alguns artistas que acompanho pelo Instagram mesmo como, por exemplo, o Alan Fers”, conta Marcela Dias
O Design
“Procurei traduzir visualmente essas sensações através da paleta de cores utilizada nas ilustrações, do minimalismo e de fontes geométricas e marcantes.”, lembra a designer Diana Lins
[alert type=white ]Continuando com o Faixa a Faixa[/alert]
ESPELHOZ (BENKE FERRAZ / PAES)
Lá no vale dos arco-íris, no sítio onde gravamos o disco, onde fica localizado o estúdio Glândula Lab / O Criatório em Gravatá (PE), tínhamos a liberdade de planejar o cronograma de gravação da forma que queríamos, afinal, era uma imersão, uma vivência num lugar maravilhoso que é a casa dos meus amigos.
Os Encontros
Isso nos proporcionava confraternizar de várias formas nosso encontro, celebrar a sorte e o privilégio de ter tudo que precisamos pra viver, trabalhar com o que amamos e curtimos. E usar esse privilégio pra um lugar de reflexão e criação e multiplicação de ideias.
No segundo dia, depois do almoço, Benke tava passando por mim e ouve um áudio do meu celular que Victor Giovanni (diretor do filme realizado no retiro) havia mandado pra mim mais cedo.
Era “Oi véi” e parava porque o telefone dele tocou na hora e o ringtone saiu no áudio. Benke disse “mando isso pra mim?” Daí, ele jogou no Live e começou a trabalhar uma base rítmica, melódica encima deste recorte. Em meia hora tinha metade da música e disse pra mim “agora escreve uma letra aí”.
A Verve Eletrônica
Essa foi a segunda vez que compus uma letra e melodia sob demanda urgente assim, a primeira foi com o duo Nascinegro, de Recife (duas faixas do me álbum anterior, Mundo Moderno), também eletrônicas.
Em duas horas no máximo tínhamos a base da faixa pronta. Era dia ainda quando terminamos a estrutura dela. Da mesma forma que “8 Bits Blues”, Benke mixou e a cada versão ele ia explorando ainda mais timbres, colagens, espacialidade no panorama e filtros na voz.
A letra apesar da melancolia onde fala “Espero que não seja espelho, esse meu desespero” ou “atrás do que esqueci, no rastro das horas escuras, no rio de água turva” mas também é esperançosa “sinto que estou mais forte, vou lutar pra te ter mais perto ” e “não há por que chorar, não chora, tudo muda de lugar”.
É faixa mais diferente do Wallace e a que talvez sintetize melhor a nova sonoridade que meu trabalho aponta a partir de agora e afirma esta transição.
4PAREDES (JOSÉ DUARTE)
Eu estava no Rio de Janeiro em 2013, numa mini tour com shows no Sesc Tijuca e numa casa na Lapa e fiquei mais algumas semanas aproveitando as férias. Numa das noites, bebendo cachaça de gengibre numa cachaçaria clássica (esqueço o nome) na Marquês de São Vicente, acabei trocando ideia com uns músicos que tocavam, muito bem diga-se de passagem, alguns sambas e chorinhos.
Um deles era José Duarte, compositor e instrumentista incrível que acabou se tornando amigo. Em nossos encontros ele mostrou algumas coisas suas e quando voltei a Recife ele mandou por áudio de celular, duas faixas.
Umas delas era “Ossos do ofício”, que acabou dando nome e conceito ao meu disco anterior (ela abre o Mundo Moderno) e a outra era esta, com o nome de “Viagem mal pintada”. Durante estes seis anos, vez por outra eu ouvia mas nunca com a pretensão de grava-la. Eis que decido “do nada” gravar um novo pra lançar exatamente um ano depois do anterior e revisito o áudio feito num mp3.player da época.
O Norte
Através de uma brincadeira interna minha e de Benke com o nome da faixa, surgiu o nome do álbum, o alter -ego Wallace, o nome do filme “4Wall4ce”, etc. Estava ali mais uma vez o norte. Mas não de forma premeditada, natural. As músicas que falam, pedem coisas, não nós.
É como se José fosse um integrante da minha banda e está sempre presente, sinto e canto como se fossem minhas também. Não à toa, ele me “deu” ambas para gravar.
Veja só, elas são responsáveis pela base de todo discurso dos meus dois últimos trabalhos. Essa parceria ainda vai render muito. Procurem, vocês precisam conhecer José Duarte!
4PAREDES – DEMO (JOSÉ DUARTE)
Essa é a versão demo da faixa, o mesmo áudio que ele me enviou lá atrás. Fiz questão de encerrar o disco com essa faixa como um “special bônus” porque simboliza os ciclos, e as transformações.
A faixa inicia o álbum (Intro) e termina em duas versões distintas. Decidi isso um dia antes da master e Benke topou. Acho que encerra bem porque ela tem essa pegada simples de bossa nova como João Gilberto, numa interpretação em tom confessional, com a pureza de um ser iluminado e bom como meu amigo José.
Não poderia estar mais feliz com o resultado disso tudo. Espero que vocês também fiquem ao ouvir. Um beijo!