lllucas ressignifica a forma de se conectar com a sua nova mixtape em meio ao caos

Lançar um registro seja ele um single, álbum ou mixtape é um momento por si só. Porque não envolve apenas lidar com a sua gravação, e um tempo eternizado nas ondas sonoras, mas sim lidar qualquer tipo de possível interferência externa. Sempre lembro dos artistas que iam lançar discos ou excursionar globalmente na época do 11/09, um fato completamente fora do controle mudou os planos de muitos. Com o coronavírus não foi diferente e para o lllucas isso até ressignificou de alguma forma a simbologia do novo trabalho.

As vezes o externo bate tão forte como o interno. As vezes temos que permitir com que a experiência se transforme sob os olhos dos outros. Seja de quem consome, curte, comenta, critica e acaba abraçando aquela obra.

Se lidar com o outro já é uma experiência por si só, lidar com um mundo passando por uma pandemia e um período de insegurança política, sanitária, social e moral é um capítulo a parte. Tudo isso acaba adentrando até mesmo na experiência de relacionar o que consome. Seja um livro, seja um filme, seja um artigo. Tudo gira e conta com um background próprio mas o momento muitas vezes é um elo dentro da linha imaginária do tempo x espaço.


lllucasFoto Por: Alessa Berti

lllucas KIT/processo (2020)

Hoje o duo lllucas, formado por Lucas Rocha (vocalista e guitarrista) e Caio Campos (baixista), lança sua segunda mixtape. KIT/processo sucede Creme Azedo (2018) e como eles deixam claro em entrevista para o Hits Perdidos revela um novo momento estético.

Este que traz de certa forma como conceito o desapego na hora de compor como relembra Lucas, ele mesmo diz que algumas foram compostas em 5 minutos e outras tinham que ser fechadas no dia que a ideia surgia. Detalhes estes que passam muitas vezes despercebidos em releases mas que fazem toda a diferença na hora de tentar entender mais sobre diferentes tipos de processos criativos.

Quem ouve aqueles acordes delirantes e lo-fi de psicodelia mal consegue imaginar como o trap acaba entrando como maior parte da influência do projeto. E isso não é algo que acontece apenas com eles, em recente entrevista para a Rolling Stone, Rubel revelou ao jornalista Pedro Antunes que o que ele mais ouve nas mais diferentes situações na vida é o rap. Digo isso porque isso quebra qualquer estereótipo ou caminho sobre como fazer algo. Acaba por si só mostrando uma outra visão e agregando esteticamente de outras formas do que ouvir um som do Led Zeppelin e querer fazer uma banda cover.

O Processo

Embora nem pudessem imaginar que o mundo inteiro ficaria recluso em casa em isolamento por meses sem perspectiva ou cenário de quando poderia sair de casa, eles optaram por largar o caos de São Paulo e se isolar no interior de São Paulo para agregar a experiência.

“O nome KIT/processo surge antes do coronavírus e isolamento social. Mas, por ironia do destino recente, recebeu um ressignificado tragicômico.”, conta lllucas

Foram para Caçapava (SP) onde puderam experimentar tanto a calmaria, como se afastar da pressão de um estúdio convencional. Não inventaram a roda mas buscaram um meio. Um meio que por si só permite um desapego e abre um leque maior de possibilidades. Um desapego que pode agregar até mesmo nas pequenas imperfeições.

“Então eu montei um mini set de estúdio (um amplificador, alguns microfones, monitoração) e decidimos ir. Gravar em casa sempre me pareceu uma coisa muito mais natural, íntima.”, conta Lucas.

A Experiência

Após o período de imersão e gravações o disco foi mixado por Carlos Bechet e sai hoje através do novo selo independente paulistano, o Orelha Muda. A Mixtape conta com 6 faixas, sendo “Azul” e “Meias Novas Esquentam Mais do Que Abraços” já sendo conhecidas de quem acompanha o lllucas justamente por terem ganho videoclipes lançados recentemente.

Entre as referências além do trap de Travis Scott eles citam a psicodelia delirante do neo-zelandês Connan Mockasin que acaba novo lançamento volta a impressionar pela maneira orgânica que constrói suas canções. Os beats e as guitarras acabam traduzindo por si só esses polos feito uma pilha com suas energias opostas.



“Metroid” que tem nome de franquia de videogame da Nintendo serve como introdução a estética e ao desprendimento. Liberando por si só sensações e abrindo caminho para “Azul”, primeiro single da Mixtape. Nela a tristeza cinza da megalópole ganha contornos psicodélicos e novos tons distópicos feito uma reação em cadeia.

O beat fica ainda mais intenso em “Bala”, que tem um vocal a la Boogarins em sua fase lo-fi. O entorpecer pode ser ressignificado dependendo das experiências e traumas vividos pelo ouvinte. Pode ser um relacionamento, a luta contra uma doença, uma superação de um conflito ou uma desilusão. Fato é que os átomos se expandem em seu universo particular deixando o sentimento equalizar através dos seus acordes em delay.

O interessante da mixtape é justamente pelo conceito de uma faixa se interligar no fim da outra. “Que Bad, Pô” ainda tem um resquício da anterior e os sintetizadores reverberam no horizonte ainda sentindo as consequências dos devaneios da faixa anterior.

A Queda Livre

O lado literal de “Meias Novas Esquentam Mais do Que Abraços” em sua composição ganha a esperteza do emprego das metáforas. Dependendo do dia que você ouvir a canção, ela pode ressignificar. Como a mixtape permite, e se faz permitir, as experiências pessoais ganham capítulos a parte no enredo. E pense bem…um abraço hoje em dia está vetado e vivemos o dia todo de meias – alguns outros de pijama – devido a situação atual do mundo. Tudo se transforma dependendo de quando você parar para ouvir as canções – ou até mesmo ler este texto.

Feito o rebobinar de uma fita VHS em slow motion a Mixtape se encerra com “Seus Olhos Guardam Dois Pequenos Rios”. Segundo os músicos a canção “é uma valsa sintética com matizes de nostalgia e melancolia. O eu lírico imerge na sua percepção de amor e solidão, tratando a incapacidade e fracasso ao tentar omitir sentimentos. Os olhos sempre entregam.”.

Os sentimentos confusos acabam reverberando nas camadas do som que transforma toda a energia em pequenos rios que passam pelos córregos: negação, incompreensão, solidão….com a última parada em “superação”. Um caminho que pode durar muito ou pouco dependendo da correnteza. E assim o EP se esvai no horizonte.

Entrevista

Contem mais sobre é como lançar uma mixtape tão contemplativa – e sensível – em tempos de tanta informação, reclusão e reavaliação como seres humanos? Como é para vocês lançar um material sem ter a certeza de quando vão poder tocá-lo ao vivo?

lllucas: “É doido, ao mesmo tempo esquisito. Porque muita gente a quem mostramos KIT/processo, disse ter tido a impressão de que escrevemos e gravamos pós pandemia e isolamento social, mas essas músicas vêm sido escritas desde 2018. Parece uma ressignificação trágica de algo que pra gente já era bastante trágico.

Pra gente, particularmente, aconteceu num momento bem triste. Porque sempre tocamos em formato de duo: beat, Caio no baixo e eu na voz e guitarra. Logo quando começamos a pensar em formatos diferentes, como uma banda completa, isso aconteceu. Isso tudo agravado por uma turnê com a Cidade Dormitório que tivemos de cancelar.

Por outro lado, a gente sabe o quão importante esse momento é, e a necessidade de reflexão sobre. Pensando no âmbito artístico, um momento de incerteza. A provável saturação das lives, descaso quanto aos lançamentos, são coisas difíceis de prever, sabe? A gente ainda tá absorvendo a forma como sentir, lidar com isso.”



Aliás vocês foram para Caçapava (SP), antes mesmo dessa loucura toda, para exercitar justamente esse desprendimento. Além de já terem o hábito de gravarem as canções organicamente em casa. Como foi esse processo?

O Nirvana mesmo gravou faixas em uma fazenda longe de Seattle e muitas outras bandas tem o hábito de gravar as prés longe do agito da cidade grande…como acreditam que ajudou a criar a atmosfera que queriam?

lllucas: “Caio é mais desprendido dessa vivência urbana, sempre gostou dessa coisa de reclusão no campo, então ele meio que já fazia isso esporadicamente. Eu não.

Gosto muito de viver esse negócio da megalópole. Pegar ônibus da madrugada, andar com um pé atrás pelo Anhangabaú, observar a correria cotidiana (mesmo que inserido nela). Me sinto confortável utilizando esse cenário pra  imprimir esse cenário, em formas de letras e texturas, nas composições. Como uma espécie de relação tóxica que tenho com a cidade de São Paulo.

Em Contrapartida…

Por outro lado, acho que depois do momento que você colocou tudo pra fora, a própria correria da metrópole te atrasa. Preocupação com pegar metrô, trabalho, faculdade. Foi daí que surgiu a ideia (se eu não me engano partiu de Caio) de montarmos o estúdio nos chalés da família dele, no interior. Pensar o material que tínhamos e botar aquilo em prática, desprendidos de tempo, atormentações.

Focamos principalmente em experimentar a parte orgânica do som: vozes, guitarras, baixo, teclas. Muita coisa que não havíamos planejado saiu daí. Músicas que gravaríamos em 3 horas, levamos 3 ou 4 dias, e é muito massa ser permissivo quanto aos erros nessas horas. A nossa relação também fluiu muito a partir das experimentações. Papo de entender o outro, não só como músico, mas em uma rotina íntima.”

Em relação a estética e proposta musical, como foi a concepção, consolidação do discurso e as texturas que buscaram explorar em Kit/Processo?

lllucas: “Imagino que KIT/processo, diferente da primeira mixtape lançada em 2018, Creme Azedo, tenha uma proposta muito mais sensorial. Creme Azedo é simples, intimista, não vai muito além do que sugere, o que, pessoalmente, não acho ruim.

Porém, KIT/processo vem é carregado de textura e espacialidade, com uma onda bem mais sci-fi. É algo que a gente precisava expressar, e essas texturas mais trabalhadas surgiram como forma de inserir quem ouvisse à proposta.

Por isso, acredito que a primeira faixa, “Metroid”, seja a que melhor represente o conceito da mixtape: Um clima distópico, psicodélico e, de certa forma, melancólico. É uma onda em cima do imaginário cyberpunk: a cidade demasiadamente cidade e o quanto isso causa impacto no indivíduo inserido.”


A Capa é assinada pelo Caio

Nomenclaturas são um caso à parte quando falamos de música. Porque optaram por chamar de Mixtape? E qual acreditam que seja o conceito que amarra as seis faixas? O que andam ouvindo que ajudou direta ou indiretamente a consolidar a estética do novo lançamento?

lllucas: “Chamar de mixtape com certeza veio por influência do trap (risos). A galera do trap faz muito isso. Talvez seja pela dificuldade que se tem de hoje em dia dizer se é álbum, EP, compacto. Adotei isso quando lancei Creme Azedo e acho que vai ser assim até se lançarmos 20 músicas juntas.

Imagino que o conceito principal que amarrar KIT/processo tenha provido de alguma leitura de Bauman, das discussões sobre pós-modernidade e, por fim, da melancolia transmitida nas faixas. Usar texturas sintéticas como cola também me pareceu algo tão sutil quanto satisfatório. Como por exemplo, algum sample que existe início em “Metroid”, perpassa por “Azul” e tem seu ápice em “Meias Novas Esquentam Mais do Que Abraços”. Acho que esse tipo de coisa ajuda a situar quem escuta, faz a pessoa sentir que todas as músicas fazem parte de uma unidade.

Em relação às influências, a gente acaba ouvindo muita coisa e isso reflete sempre na sonoridade. Astroworld, do Travis Scott, já é antigo, mas tem estruturas que me marcaram muito. Jassbusters, do Connan Mockasin, os riffs de guitarra que propõe uma repetição, mas é sempre algo com uma sonoridade bem solta, com micro-variações de pitch. Sinto que a gente junta tudo isso e coloca de uma forma simples.

Já Caio tem pirado muito em Man Alive (King Krule). Transa do Caetano (já ensaiamos “Mora na Filosofia” em alguns shows mais intimistas), Anima do Tom York. São coisas que quando a gente percebe, já estamos reproduzindo. Na forma de cantar, tocar, expressar.”



Em relação as composições, comentem as vivências, nuances, histórias, referências e experimentações por trás das faixas.

lllucas: “Num contexto geral, as músicas saíram rápidas. Não lembro de nenhuma que levou mais de um dia pra ter a base e letra prontas. Não gosto de dormir com música incompleta na cabeça, porque sei que no dia seguinte a chance de achar o que eu escrevi horrível é grande.

Gosto de pensar meus sons como um recorte curto de algo que vivo no momento, e com “momento” quero dizer coisa de 5 minutos.

“Meias Novas Esquentam Mais do Que Abraços” é um bom exemplo disso. Ela é uma sequência de frames que, ao fim, tem um desfecho tosco: “Calcei um par de sapatos / O som que a chuva faz batendo na porta da frente me entristece / Faz tanto tempo a roupa atrás da geladeira / As traças do meu quarto tem seus objetos de desejo / Meias novas esquentam mais do que abraços.” São frases totalmente literais, como uma sobreposição de coisas que, dependendo do sentimento que você é capaz de imprimir, se torna uma música sensível.

Por fim, quando a melodia e letra já estão bem fixadas na cabeça, levo essa base pra Caio colocar um baixo em cima, discutirmos e finalizarmos o som.”

This post was published on 24 de abril de 2020 11:42 am

Rafael Chioccarello

Editor-Chefe e Fundador do Hits Perdidos.

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