Nacional

Giallos faz ode à cultura afro-brasileira em “Atravessou o Ebó”; disco foi lançado no Dia da Consciência Negra

“Atravessou o Ebó” é o quarto álbum da banda de Santo André (SP)

De tempos em tempos temos pessoas perguntando, por onde andam as bandas de rock? Certa vez Lee Ranaldo, do Sonic Youth, disse para o jornalista Lucas Brêda durante entrevista para a Folha de S. Paulo a seguinte frase “A maioria do rock mainstream soa cansado, velho e nostálgico. O que há de interessante está no underground.”

O músico estadounidense ainda continua: “O rock hoje é uma forma de arte velha. As pessoas estão trabalhando com batidas eletrônicas e computadores. O R&B e o hip-hop estão substituindo em popularidade. Mas, enfim, quando o Sonic Youth foi à Europa nos anos 1980, a pessoas já diziam que guitarras eram ultrapassadas.”

Por esta razão acompanhar bandas que escolhem fugir de tudo que os coachs musicais dizem que “se deve fazer” atrás de argumentos como “é imprescindível”, “você precisa ter em mente” ou “é impossível produzir música hoje em dia sem…” acaba também sendo um ato transgressor por si só.

Em 2016, em um momento intenso na política brasileira (tem coisas que não mudam, né?) o Giallos lançou o disco Amor Só de Mãe e escrevemos na época. Eles inclusive participaram da coletânea homenageando os Titãs, “O Pulso Ainda Pulsa” que organizamos naquele ano produzindo uma versão para a emblemática “Nome Aos Bois“.

No Dia da Consciência Negra (20/11) foi a vez de apresentar para o mundo o quarto álbum de estúdio da banda do ABC paulista, Atravessou o Ebó.

O disco foi produzido, gravado, mixado e masterizado por Marcos Maurício (Nômade Orquestra) entre dezembro de 2022 e novembro de 2023, nos estúdios 74 e Morning Birds, e traz consigo uma série de novidades.


Giallos “Atravessou o Ebó” – Capa Por: Flávio Lazzarin / Foto Por: Maristela Raineri

Giallos Atravessou o Ebó

Atravessou o Ebó é o primeiro lançamento com a nova formação do quarteto. Ele marca oficialmente a entrada de Mabu Reis, que desde 2021 integra a formação com seu trombone. O produtor do disco, Marcão, também assinou alguns baixos e teclados presentes no álbum. O registro conta com participações de Carol Cavesso (Abacaxepa), nos vocais, Marco Pablo (Projetonave), slide guitarra, e Marian Sarine (Deafkids/Sarine), na percussão.

O vocalista Claudio Cox toca theremin e maracas, completam a formação do GiallosFlávio Lazzarin (bateria), Luiz Galvão (guitarra) Mabu Reis (trombone). O disco reúne ao todo 13 canções.

‘”Atravessou o Ebó” é uma ode à cultura popular, principalmente a cultura afro-brasileira, a gafieira, as crenças, os ditos. Tudo isso somado a já característica sonoridade e  linguagem que a banda construiu ao longo dos seus 13 anos de (r)existência, que vai do cinema explotation ao free jazz.’, conta Claudio Cox 

O punk rock, o cinema, as subculturas, a miscelânea cultural à brasileira e free jazz são entidades imutáveis na obra do Giallos. O grito de resistência sempre esteve ali, o grande adendo do novo material é justamente trazer toda força dos ritmos da diáspora africana para o primeiro plano. O niilismo, a raiva guardada, as injustiças, a ironia, a força de existir e os contrastes sociais do país reverberam através das letras ácidas com um humor bastante sarcástico, provocador e peculiar.

O garage rock, o blues, a improvisação, o spoken word entram como recursos para dar a dramaticidade e o campo gravitacional das apresentações da banda que aliás faz show de lançamento em São Paulo na Associação Cecília Cultural no dia 06/12 ao lado do Sky Down, também do ABC paulista.

O que seria Ebó?

A palavra Ebo (Ebó) vem do idioma yorùbá e significa oferenda, sacrifício ou troca de elementos com os Orixás. O principal objetivo do Ebó é transformar ou equilibrar dificuldades, seja na saúde, trabalho, família, amor, justiça ou em outras situações da vida. Para os yorubás, tudo que é realizado como trabalho ou oferenda aos Orixás é chamado de ebó.

Atravessou o Ebó: Uma Ode a Resistência Negra

A cultura negra e árduas lutas diárias pela sobrevivência aparecem desde o primeiro suspiro do disco com “Um Encouraçado Não Aguenta Iemanjá” deixando tudo com uma cara de filme de bang bang à brasileira em um blues sanguinário.

“Um Encouraçado não aguenta Iemanjá
O que era seu já estava guardado
E nem foi tão difícil de achar
Uma arma no armário
13 balas no casco
Agora vai pro fundo
Enquanto você esperava ele descer
Nem um vazio se deu no seu peito cassado”

A ira contra o capitalismo aparece nos versos de “Matem Todos” que tem um coro gospel para acompanhar deixando claro para quem é a mensagem.

“Matem todos!
Todos os dias da semana
Domingos e feriados
O descanso custa caro
Deuses e demônios custam caro, baby”



A aristocracia, o domínio do agro e a exploração da classe trabalhadora é ponto central dos questionamentos em “O Futuro Pertencia a Jovem Guarda”. Aliás, que ótimo nome para uma música, dava um bom título de disco até. Seu instrumental tem uma força macabra por si só.

As críticas ao ufanismo cego, a apropriação cultural e o indústria de consumo dos símbolos da cultura negra aparecem acompanhados de melodias e experimentações do free jazz ríspido em “Tranca Rua”.

Em “A Lei da Vadiagem” a história da música onde os brancos roubam o protagonismo dos negros aparecem em versos como “Tira da mão desses preto / Bota o Elvis”, frisando o apagamento histórico. A opressão policial, o projeto de estado de extermínio e a invisibilidade social também ganham versos fortes ao longo de uma canção que toca em marcha.

A ilusão e as armadilhas dos 15 minutos de fama perante a quem é excessão a regra em um sistema mortífero e ceifador de sonhos reverbera em “Ebó (Reprise). Versos cortantes aparecem ao longo da faixa como: “Não esquece que somos um projeto bem-sucedido de mão de obra / E que toda vírgula fora de lugar era resistência / E a gente nem sabia ler e escrever, porra! / E a gente só entrava pela porta dos fundos / E não saia mais. “Sete Flecha” marca a passagem para a segunda parte do disco.

Cinema, Violência, Exploração e a Carne Mais Barata

O lado cinema aparece com mais força em “Risca Faca” que ganha um lado western com analogias ao último vagão da sua vida e uma espécie de crônica de uma morte anunciada. O trombone faz uma espécie de prenúncio de que o fim está próximo.

Respira em seu instrumental tem um lado caótico do Rage Against The Machine e das experimentações que o próprio Tom Morello costuma fazer, seja com o grupo, ou em sua carreira solo. “O refúgio dos canalhas é bem melhor que o nosso Que não tem carne, só o osso” é um verso que faz uma ótima analogia a notícia que durante o governo Bolsonaro viralizou na mídia onde ossos estavam sendo ofertados no mercado já que o preso da carne estava nas alturas. A mão invisível do mercado de políticas neo liberais, de engravatados como Paulo Guedes, também aparece em trechos mais ríspidos como “A mão do mercado batendo palma pra nossa desgraça”.

Já na parte final do disco em “Maria Mulambo” discorre sobre a violência enfrentada pelas mulheres negras em que a música de Elza Soares, “A Carne” (“a carne mais barata do mercado” e “a carne negra”), evidencia. A faixa parece em seu título fazer um trocadilho com a “Lei Maria da Penha”.

“Gira a baiana nessa colônia pós-moderna
Defende só o que é seu
Acima de qualquer lei de porta de cadeia
Quem julga os teus atos
Não morreu na porta de casa esperando o próprio carrasco com um prato de
comida quente na mesa
Já era tarde demais
Era como se você não tivesse escolha, baby
E fizeram você acreditar”

Caixão e Vela Preta

“Caixão e Vela Preta” é uma das canções mais potentes do disco justamente por ir contra a hipocrisia do discurso predominante, onde a letargia e o desânimo perante a mudanças significativas ainda parecem um sonho distante enquanto muitos deixam seus ossos estendidos ao longo do campo de batalha.

O desrespeito, o questionamento, o sangue nas mãos, a culpa, a falta de virtudes, o descolamento da realidade e a agressividade equalizam junto dos batuques são destrinchados na narrativa de “Atravessou o Ebó”. Daquelas para fechar o show devido a toda a sua escalada.

Quem fecha o disco ao som de um trombone soturno é “Malvadeza” que varre os ratos de volta para o esgoto (mas não os que deveriam). É a derrota sistêmica de tudo isso. Um manifesto sonoro pela iminente necessidade de mudança de quem está cansado de lutar contra o sistema.


This post was published on 27 de novembro de 2023 9:00 am

Rafael Chioccarello

Editor-Chefe e Fundador do Hits Perdidos.

Posts Recentes

Renata Swoboda lança clipe apolítico para “Meu Dengo ♥️” às vésperas do segundo turno das eleições

Após lançar na sexta (18) o single "Meu Dengo ♥️", a artista catarinense Renata Swoboda…

23 de outubro de 2024

C6 fest anuncia line-up da 3ª edição com Nile Rodgers & Chic, Air, Wilco, Pretenders, Gossip, The Dinner Party, English Teacher e mais

C6 Fest chega a sua terceira edição com line-up de peso Após a primeira edição…

22 de outubro de 2024

Paul McCartney encerra passagem pelo Brasil em Florianópolis

No sábado (19), Paul McCartney fez a última apresentação da atual passagem da Got Back…

21 de outubro de 2024

Fin Del Mundo mergulha nas profundezas em “Hicimos crecer un bosque”

Que a cena de rock argentino é bastante prolífica não é nenhuma novidade. Após lançar…

18 de outubro de 2024

Maria Beraldo reflete sobre identidade de gênero e explora timbres em “Colinho”

Não parece, mas já se passaram 6 anos do lançamento de CAVALA (RISCO), álbum de…

18 de outubro de 2024

Dora Morelenbaum explora as curvas sonoras em “Pique”

Após o fim do ciclo ao lado da Bala Desejo, os músicos têm retomado suas…

18 de outubro de 2024

This website uses cookies.