ÀIYÉ entrelaça ritmos, frequências e o lado profano em “Transes”
“Cara eu cheguei a conclusão que esse disco é uma encruzilhada mermo, é um altar de todos os santos e a mistura do Brasil com o Egito, queridas.” é desta forma que Larissa Conforto, sob o codinome de ÀIYÉ, apresenta logo na introdução o seu segundo álbum solo, Transes.
Após lançar Gratitrevas via Balaclava Records em 2020, poucos dias depois do lockdown, no dia 20/03 (o início do lockdown no Brasil aconteceu no dia 11/03), o que fez com que muitos planos e shows fossem adiados e mexesse com todo um planejamento.
“Feito entre Brasil e Portugal, a imersão na Umbanda, a mudança de país, a parceria e estudo dos instrumentos e sua conectividade com parcerias dão luz a Gratitrevas, que mesmo em tempo de trevas, se mostra cintilante. Podendo até mesmo iluminar a caverna do “Mito” (de Platão). No EP Larissa Conforto exorciza traumas e traz luz em meio as trevas. De forma ritmada, misturando uma diversidade de estilos, acasos, encontros e poesia. Ela traz para dentro do lançamento vivências, transformações, memórias, desconforto e aprendizados.”, definimos na época do lançamento
Agora sob um novo contexto e uma gama de referências que aproximam a sua sonoridade e expressividade ainda mais próxima do pop contemporâneo, a carioca traz o simbolismo da encruzilhada. Sendo a encruza, símbolo de uma ponto de força, como uma estrada que une todo e qualquer caminho. Essa estrada sendo literal e simbólica, o álbum tendo o ponto de partida e chegada a vivência umbandista da artista que é filha de ogum. Até por isso os tambores e encantarias diaspóricos continuam presentes, assim como no primeiro trabalho, mas agora com um approach mais caliente da latinidade. Uma prova disso é a quarta faixa do registro, “Diablo XV”, que flerta com o reggaeton a música urbana e o rap, assim como a Rosalía faz com maestria.
ÀIYÉ Transes
Transes foi produzido pela artista em parceria com Diego Poloni, na Casa da Bruxa (apartamento na Barra Funda, em São Paulo, onde a artista vive atualmente) e conta com 13 faixas ao longo dos pouco mais de 41 minutos de duração do disco. Entre as referências a artista cita nomes bastante distintos como Clara Nunes e Rosalía mas sua pesquisa também vai para trabalhos como o do galego Rodrigo Cuevas, Flying Lotus, Alcione e Djavan, mostrando como a intersecção de estilos e vibrações conduzem seu caldeirão vivo e pulsante.
No campo das temáticas ela conta que discorre sobre perspectivas distintas sobre amor, espiritualidade, futurismo e beatmaking. Entre as participações o material reúne artistas como a portuguesas SÚS (em “Oração), Alejandra Luciani [Carabobina] (em “Flui”), 4RT [ATABLOCO] nos atabaques (em “Xangô” e “Oxumaré”), Fabio Sá [Gal Costa] no Baixo acústico (em “Xangô”), Ronaldo Pereira no Saxofone [sampleado] (em “Bad Omen”).
A Capa
Ainda na parte técnica somam na concepção da capa do disco uma série de artistas visuais em um processo de colagem colaborativo, entre os elementos estão: uma pintura original por PAES, foto editorial por Caike Molina, com beleza e produção por Jessyca Tommasi, ilustrações digitais por Vallada, fotos e prints feitos por Larissa durante todo o processo, e design final de Rafael Rocha.
A Transe de Transes
Depois da intro conceitual que mistura o profano, a pista, as texturas e mil e uma possibilidades de frequências quem abre o disco já homenageando os ritmos brasileiros como o samba indo de encontro com o reggae é “Onda” que tem todo o embalo do verão de Salvador. A própria artista relata que ela foi composta durante uma viagem para uma festa de Iemanjá atípica.
Embalada por uma Onda de Amor
Esse samba-reggae eletrônico conta a história de uma paixão de verão que acaba sendo atrapalhada por jogos de amor.
“Antes de tudo, tinha que ser um samba-reggae. O ritmo eternizado pelos tambores do Olodum, Ilê Aiyê, e outros tantos movimentos das ruas de Salvador é a expressão pura dessa magia que a cidade carrega, que me embalou e segue embalando toda a gente. Misturar essa essência baiana com humor, distorção e synths, é algo que permeia”, reflete a artista
“Desligar o projetor é uma piada interna entre amigues, que acabou se tornando uma máxima: “Respira, desliga aí teu projetor, e me liga de volta pra gente resolver” – Um jeitinho fofo de dizer pra amiga criar menos castelinho na cabeça, deixar de idealizar situações, e calar a boquinha de lixo da nossa mente pensante, às vezes.”
Já para o clipe ela trouxe o olhar de uma carioca sobre viver em São Paulo de maneira bem humorada em situações como a busca pelo ângulo perfeito de sol, a fézinha improvisada dentro e fora de casa, idas frequentes ao minhocão em busca de ar puro, treino de kung fu em todos os espaços possíveis.
“No fundo, estou interpretando uma personagem no clipe, uma macumbeira-poligâmica-LGBT. É quase uma entidade exacerbada de tudo aquilo que tem em mim”, explica sobre o clipe que foi pensado para ser filmado em um dia, na casa e vizinhança da própria Larissa.
“Contamos com o improviso, o inesperado e o que mais fosse surgindo no dia”, conta Larissa sobre a proposta sugerida pelo parceiro Anderson Freitas, que assina Direção, Fotografia, Edição e Colorização.
“Oxumaré” busca uma solução sonora que une os batuques dos terreiros, a energia da vida e o minimalismo dos beats eletrônicos em uma faixa que brinca com as texturas e clichês do pop contemporâneo. A conexão entre o sagrado, os destemperos humanos, o elo entre a beleza e o movimento dos corpos num clima propício para a sedução – e coreografias.
El Diablo
“Diablo XV” também foi lançada com direito a videoclipe que acabou na lista de Melhores Clipes Independentes de Março (2023) do Hits Perdidos. A latinidade e o ritmo frenético marcam a experimentação do single. A artista comenta: “Já são anos viajando e pesquisando ritmos latinos, e senti que chegou a hora de mesclar mais os idiomas que permeiam minha vida. No disco tem canções em português, inglês, espanhol e yorubá. São línguas presentes na minha trajetória”.
Sobre a comparação a Rosalía, uma das referências que logo que ouvimos o som fica impossível não trazer para a roda Larissa diz: “Se a Rosalía pode colocar um tamborim no reggaeton, por que eu não posso colocar o reggaeton dentro de um bloco de carnaval?”.
Já a temática passa pelos relacionamentos tóxicos. A carta XV no tarot representa a tentação, as obsessões, a dependência – sentidos que ÀIYÉ vira de cabeça pra baixo pra contar uma história sobre as relações que te sugam a energia (sejam elas românticas, profissionais ou amizades) que acabamos por alimentar sem perceber.
“É pra invocar o nosso poder interno de dizer CHEGA”, explica Larissa sobre “Diablo XV”
O videoclipe que evoca toda a simbologia distópica do céu e inferno numa relação foi produzido por Matheus Fractal.
Abaixando a frequência
“Flui (feat. Alejandra Luciani)” abaixa a frequência e mostra o lado mais vulnerável do ser humano, entre as ondas sonoras, as correntezas e os perigos da vida. As texturas e colagens dos beats e synths deixam ela ainda mais flutuante e a direcionam para o campo energético da cura. Uma faixa bastante descritiva que permeia os horizontes em que ela pode conviver ao longos dos anos.
“Cores de Oxum” vai do tradicional ao eletrônico em uma canção mais celestial homenageando Oxum. É interessante como os sintetizadores são sobrepostos como se fossem uma espécie de trilha sonora para videogame…se contrastando com as cordas e a pluralidade rítmica que a canção canaliza.
“Saci” tem no místico, na malemolência e na esperança a sua aura. Uma fusão de referências que homenageia a música e a ancestralidade brasileira com requintes da estrutura cadenciada do samba e da bossa, entre a ginga e a identidade. Daquelas feitas para cantar o refrão “roda roda moinho, gira, abre o meu caminho, num balanço de um pé só”.
“Xangô (Clariô)” eletriza frequências e chama o sopro para a roda, entre bases eletrônicas e cantos para Xangô. A sua progressão eletrizada e a delicadeza dos arranjos fazem da sua parte rítmica o grande destaque. Já “Pomba Gira (Ela Reina)” tem um trabalho especial na mixagem e usa dos recortes e camadas como uma espécie de extensão da sua narrativa.
Experimentação eletrônica e minimalismo multicultural
“Exú (Tenho Fome)” se aproxima do lado épico dos sintetizadores dos anos 80, entre sopros, analogias e alegorias a Exú. O minimalismo eletrônico vai te fazer lembrar a estética do primeiro disco de Billie Eilish, When We All Fall Asleep, Where Do We Go? (2019).
Já se encaminhando para o trecho final, “Oração”, feat com a portuguesa Sús, vai para o campo da experimentação eletrônica e o estranhamento para falar sobre a pulsação envolta em um emaranhado de sentimentos e sensações. É até interessante como entra a participação da artista europeia que adiciona seu estilo cadenciado em meio a ondas eletrônicas que servem como anticlímax.
“Bad Omen”, em inglês, que significa em português literalmente “mau presságio” serve como um alerta sobre as ciladas da vida. Os metais deixam ela como uma balada jazzística torta com o adendo eletrônico, algo que artistas como Fiona Apple ou Nick Cave com certeza usariam como recurso para mostrar todo o sofrimento.
Quem fecha o disco é “Ori”, uma canção que mistura inglês e yorubá, ORI ENI LAWURE ENI, inclusive significa “Feliz sua cabeça” no idioma. Na canção eletrônica com beats pulsantes de pouco mais de 2 minutos, Larissa pede proteção e que envie sinais durante a caminhada da vida. As energias espirituais emanando do começo ao fim do disco (Transes).
O Parecer
O interessante do disco é justamente ver a evolução estética e as possibilidades que a música eletrônica quando se funde a outros universos sejam eles sonoros, espirituais ou de encontros. O que serve como um adendo que deixa a atmosfera de Transes extremamente contemporânea e o faz dialogar com a música do seu tempo. Reflete sim o mundo acelerado, das paixões desenfreadas, muitas vezes avassalador e impiedoso…mas sem esquecer das origens, afetos, quereres e da proteção divina. Em relação ao primeiro disco, ela abre todo um novo universo de possibilidades para construir uma carreira inventiva e cada vez mais global.
Shows de Lançamento
Transes será lançado através de uma série de shows pelo Brasil durante o mês de abril: em Sorocaba (22/4), Goiânia (29/4), Brasilia (30/4) e nos meses seguintes em Ribeirão Preto (SP), Uberaba (MG), Buenos Aires, Rio de Janeiro e Europa.
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