OZU mergulha em mares profundos para criticar à pós-modernidade em “Burnout”
Em tempos onde temos muitos discos sendo lançados trazendo um pouco dos traumas inerentes ao período de isolamento social, Burnout, da OZU, de Cotia (SP), nos mostra que o problema pairava o ar muito tempo antes da pandemia. Tudo isso de forma harmônica, cintilante, reflexiva e naturalmente anti-sistêmica – tendo também seus momentos de caos e fúria. O dia a dia do trabalho, a natureza perversa das relações, o inquietismo e a raiva muitas vezes enclausurada no peito: reverbera nos acordes leves e contemplativos da estreia. Até por isso, Francisco Cabral, tecladista e compositor do trio deixa claro em seu desabafo.
“Estágios avançados do capitalismo neo-liberal diluíram e terceirizaram as desigualdades de nossa sociedade a tal ponto que nos foi privado a percepção de reconhecer os males macroeconômicos que nos assolam. Assim, desorientados, seguimos atribuindo nossos problemas financeiros e emocionais a nós mesmos, desenvolvendo então uma constante sensação de culpa, preocupação e ansiedade, nos exaurindo estruturalmente todos os dias.
Por essas e outras, nenhum título, que não Burnout, poderia ser melhor para esse registro. Guerras e conflitos distantes servem como respiro para achar um “culpado” externo e desafogar a responsabilidade de nós mesmos. Porém, o mecanismo segue sendo o mesmo – ignorar os fatos e terceirizar as faltas. Filmes de heróis nos distraem, incessantes conteúdos de redes sociais nos entorpecem e assim seguimos em frente. Será que está tudo bem?”.
Além dele, compõe a atual formação da OZU, Juliana Valle (voz) e Sue-Elie Andrade-Dé (guitarrista), o que faz do disco minimalista e trazendo para Burnout um emaranhado de referências que vão de Neo-Soul, Hip-Hop e Jazz passando por Lo-Fi Hip Hop a Trip Hop. Ou seja, o universo que contempla artistas como Erykah Badu, Portishead, Massive Attack, Thievery Corporation, Moorcheba, Air, Dj Krush, Buttering Trio, Surprise Chef, Abstract Orchestra e Bonobo.
“Queremos desconstruir e abstrair as primeiras intenções arquitetônicas para chegar em uma visão lúdica das grandes metrópoles que nos formam intelectual e musicalmente. Robert Smithson passeando por Cotia, nossa cidade natal, seria o cenário perfeito”, conta a OZU sobre o conceito anárquico de Burnout
OZU Burnout
Embora as referências estéticas sejam quase que antagônicas, a banda alemã de hardcore techno formada em 1992 por Alec Empire, Hanin Elias e Carl Crack, Atari Teenage Riot parece converge conceitualmente em DELETE YOURSELF! (1995) com o conceito central de Burnout no ato de combater um sistema fadado ao fracasso e por retratar uma sociedade que prefere agir no modo inerte entre uma dose de rivotril e uma (longa) sessão de terapia.
Embora os alemães vão para o extremo de trazer o hardcore e a música eletrônica com o drum & bass e o techno, o caminho da OZU na obra é muito mais elegante mas não menos transgressor.
“Pre-Date” abre com uma vibe jazzy com elementos do neo-soul e vocais delicados. A faixa critica o modus operandi do consumo superficial que temos da arte em nosso dia-a-dia. Onde existe a distância entre o dizer e o fazer. Bom, vivemos no Brasil de bravatas todos os dias, quem vive no país sabe muito bem como isso nos afeta nos mais diversos campos da vida.
“Out Of Reach” conta com a participação do trompetista da Nômade Orquestra, Marco Stoppa. Recentemente eles até colaboraram com a OZU na faixa “Meia-Água” e você pode assistir a live session no Youtube. Com groove e baixo cintilante, os vocais aveludados se juntam aos synths que criam toda uma ambiência contemplativa e agradável para fugir do caos de uma metrópole que da mesma forma que traz oportunidades, leva um pouco da alma junto.
“Ominous” já nos leva aos primeiros singles da OZU com o trip-hop sendo a base com beats envolventes e energia de emancipação dos sentidos. O universo de colagens e samples enriquece, fazendo da complexidade de estilos soarem até mesmo “pop”.
O lado Experimental de Burnout
Eles afirmam que o conceito central do disco, a crítica à pós-modernidade, se explicita na canção que foi trabalhada como primeiro single de Burnout. A faixa tem a sagacidade de transmitir uma mensagem tão anárquica ao mesmo tempo sendo tão agradável de ouvir. Isso grupos ingleses como Massive Attack e Tricky nos ensinaram lá atrás que era possível corroer o sistema por dentro dele mesmo.
A versatilidade também faz parte do trabalho que não que propõe não andar em círculos ou se apoiar em fórmulas. Em “Remember”, por exemplo, eles citam Bonobo como uma das referências, e a música eletrônica, sendo uma dos gêneros contemporâneos mais inventivos ainda tem nomes interessantes com esta proposta como CARIBOU que veio recentemente para o Lollapalooza Brasil.
“Winter”, apesar do nome em inglês, olha diretamente para o nosso país, embora o inverno pareça estar longe de acabar (no sentido figurado e também no momento deste lançamento), a esperança conduz este jazz cheio de elementos sonoros que agigantam sua construção. As linhas harmônicas e teclado são os grandes destaques.
“Bonnie” marca a metade do disco e tem até uma introdução que certamente agradará a fãs de Radiohead a Khruangbin. Por seu caráter experimental e mais introspectivo Uma curiosidade fica pelo fato da melodia de voz ter sido inspirada em canções folclóricas celtas. Eles ainda contam que antes ela era totalmente instrumental e foi se transformando ao longo do tempo.
Já “Illusive” é uma faixa mais antiga da OZU, que passou por mudanças de arranjos, o que fez com que o baixo ficasse mais marcante. Seus synths tem até uma levada quebrada quase oriental que fazem deste trip-hop ainda mais expansivo e transgressor.
“Project 101” tem a bateria no estilo drum & bass com vocal lento, e contemplativo, fazendo dela um canal entre o hip hop e a IDM. Eles até definem ela como um trip-hop clássico “para apreciadores de Portishead, Massive Attack e Sneaker Pimps.” De certa forma ela estar presente no debut dos paulistas é também o fechamento de ciclo, visto que é uma das 4 primeiras composições da OZU.
A beleza imersa em meio ao Caos
Assombrada, “Phantom” chega de mansinho feito uma penumbra na escuridão e nos leva pela emoção, sendo um dos grandes destaques das 11 canções presentes no disco. Com cara de trilha de cenas mais emotivas de filmes, ela tem um pé nos anos 70 e uma energia que em uma apresentação ao vivo merece ganhar luzes especiais quando executada. É na intensidade dos vocais melódicos e imersivos que ela ganha corpo.
O trecho final é marcado por “Flyer” e se aventura pelos subgêneros do jazz de forma cadenciada e com classe. Se no começo do texto citamos o nome da incrível Erykah Badu, é nesta faixa que a influência do seu canto mais reverbera. Se deixe se levar pelo magnetismo sensorial – e por sua proposta etérea.
Quem fecha o trabalho é a faixa-título, “Burnout”, com uma linha de synth que parece uma viagem no tempo – e que naturalmente ficará na sua cabeça na mesma intensidade da cacofonia de “Around The World” do Daft Punk. É o rebobinar das fitas e dos traumas presentes neste intenso disco. Apesar da sua falsa suavidade, ela faz de maneira velada críticas ao neoliberalismo tardio e o vazio da pós modernidade.
O disco acerta em criar ambiências, camadas e se permitir desafios e vai na contramão de outros que procuram fórmulas para bombar no TikTok e demais plataformas de streaming.
Ficha Técnica: Ozu Burnout (2022)
Autor/ Compositor – Francisco Cabral
Voz – Juliana Valle
Guitarra – Sue-Elie Andrade-Dé
Bateria – Felipe Pagliato
Teclado & Baixo – Francisco Cabral
Synth & Loops – Francisco Cabral & Sue-Elie Andrade-Dé
Trompete em “Out of Reach” por Marco Stoppa
Guitarra em “Illusive” por Caio Freitas
Piano em “Winter” – Fernando César Tadeu
Produção executiva – Sue-Elie Andrade-Dé
Gravação Vozes – Carlos Eduardo Freitas / Estúdio Aurora
Gravação Bateria – Luís Lopes / Estúdio C4
Mixagem e Masterização – Francisco Cabral
Foto de capa: Lukasz Palka
Design da capa : Renan Vasconcelos e Leonardo Miranda