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TØSCA expõe as contradições do interior urbanizado em “Shakespeare Cowboy”

Diretamente das maiores cidades do estado de São Paulo, o duo TØSCA continua a apresentar músicas da sua nova fase, que em seu som faz um resgate de diferentes cenas musicais como o post-punk, o punk rock, a cena riot grrrl e até mesmo a poesia pulsante do proto-punk nova iorquino.

As referências vão de Velvet Underground, Buzzcocks e PJ Harvey, passando por Slits, Patti Smith e Bikini Kill mas longe de se limitar aos clássicos, elas procuram referências no entorno para compor a estética e mensagem que querem transmitir com suas canções. A poesia, o caos urbano, a crítica social e a transgressão acabam entrando como elementos que enriquecem o caldeirão das paulistas.

Composto por Alice Gauto (baixo) e Letícia Soto (Guitarra), o duo de Campinas (SP), é uma das novas apostas do selo PWR Records, e nos últimos dias lançou o contestador e interessante, single, “Shakespeare Cowboy”.


A TØSCA, de Campinas (SP), integra o casting da PWR RecordsFoto: Divulgação

TØSCA “Shakespeare Cowboy”

Com produção do conterrâneo e parceiro de cena, Vitor Wutzki, a composição traz nuances e dicotomias de uma cidade grande para os padrões do interior mas com problemas sociais dificuldades presentes em outras cidades dos interiores do país.

A poesia, a ironia e o deboche nos lembram desde as letras inteligentes do rock brasileiro dos anos 80 e também transportam para a faixa a carga irônica de grupos como Dead Kennedys, Pixies e Bikini Kill.

“É uma homenagem ao interior paulista, mas o desespero e a angústia de nascer e viver no limbo do interior urbanizado: grande demais para ser campo, pequeno demais pra ser cosmopolita.”, frisa Letícia

Segundo as musicistas, a canção teve a melodia como primeiro elemento a se formar a partir dos riffs minimalistas e repetitivos de guitarra. Já a bateria que utiliza somente do surdo, tom e meia lua é inspirada na de Moe Tucker do Velvet Underground e o baixo acompanha e reforça a ideia de dualidade seguindo a base da guitarra.

A falha do sonho americano, que muitos brasileiros insistem em exportar como inspiração para sua vida, ganha versos sarcásticos. A letra ainda transporta as pequenas realidades de uma cidade do interior, seus descompassos e conflitos, entre discursos e ações. No fim da canção nosso cowboy parece cair do cavalo mas tentando ainda sustentar a pose, mostrando como a frustração é uma realidade quase iminente.

Shakespeare Cowboy, eu invejo você
Você é tudo o que eu sou, mas nunca vão ver!
Shakespeare Cowboy…

Shakespeare Cowboy,  sertanejo urbano
Morrer nessa cidade nunca esteve nos seus planos.”, trecho de “Shakespeare Cowboy”, da TØSCA

Entrevista: TØSCA

Vocês estão prestes a apresentar uma nova fase mas para quem está chegando agora, e ainda não conhece o trabalho de vocês, como introduziriam a jornada, a essência e o propósito do que é a TØSCA?

TØSCA: “É uma banda que começou no final das nossas graduações, de um rolê entre amigas que tinham vontade de tocar, se conhecer e se expressar artisticamente. No início a gente não tinha muito conhecimento musical, e nossas referências gerais eram bandas de mulheres e feministas (Bikini Kill, Slits, afins), que além de gostarmos, sabíamos que conseguiríamos tocar e usar de base para desenvolver o nosso som. Umas das primeiras músicas que fizemos foi Babacotário, uma paródia da música “She’s not there”, de The Zombies, e tem muito a ver com o início de processo de criação e descoberta de quem seria a TØSCA – musicalmente e também desenvolvemos certo tom de deboche nas letras, presente ainda no nosso processo criativo atual. 

Com o passar do tempo aprendemos a moldar as referências que a outra traz, nem sempre óbvias ou complementares, e é esse processo que resulta no som da TØSCA

Entendemos que a TØSCA é um ambiente de experimentações dentro da forma canção, com pessoas com quem nos sentimos confortáveis, sem barreiras de gênero e priorizando o conforto de criar sem julgamentos.”

No novo single vocês citam referências musicais de Velvet Underground, Buzzcocks e PJ Harvey, mas também tem referências da Patti Smith, Bikini Kill entre outros artistas, além da poesia como alicerce. Quais universos, seja no campo da arte, como no campo da vida, e artistas inspiram o projeto ser como é? Como é o processo de pesquisa neste campo?

TØSCA: “O primeiro elemento da música a ser criado foi o riff de guitarra. Os riffs surgiram quando a Fran se interessou por certa dissonância das cordas centrais do instrumento, e nessa exploração, surgiu a melodia de “Shakespeare Cowboy”. A letra foi escrita depois de algum tempo, envolvendo questionamentos em relação à nossa existência na cidade de Campinas, uma metrópole que une o urbano e o rural. Existem vários elementos que pareciam contraditórios: 

A cidade é sede da Unicamp, porém a universidade fica localizada fora da cidade, cercada por uma zona quase rural, é sede de projetos megalomaníacos como mega shoppings que também ficam mais próximos da estrada que do centro; é uma cidade rica e extremamente desigual, com uma cultura que parece só existir no passado e a própria política pública cultural reflete essa limitação. Tem temperaturas desérticas, com muito calor de dia que desaparece à noite; é uma metrópole mal planejada, como tantas outras, mas ainda profundamente provinciana. Tirei muito da letra daí.

Consequentemente, fizemos o uso de imagens kitsch e que refletissem também essa contradição do urbano com o rural, a imagem de Shakespeare, considerado um autor erudito e de aparência cafona, mangas bufante das vestimentas elisabetanas, com a própria cafonice do cowboy, um herói e anti-herói nele mesmo, símbolo sexual, símbolo de consumo, uma figura gasta. As duas trabalhadas em contraste, a sofisticação da poesia e da imagem do intelectual sobreposta ao trabalho rural transformado em imagética inconsciente pop. 

Definida a imagem do Shakespeare Cowboy, as referências de base se deram a partir de influências de obras ficcionais como “Até as vaqueiras ficam tristes” (Tom Robbins), até figuras da vida real, citando como exemplo uma mulher que costumava pegar ônibus no centro da cidade com sua galinha no ombro.

Outra forma de pesquisa usada foi jogar as palavras ‘Shakespeare Cowboy’ no Google, o que nos levou a encontrar novos contextos para essa figura até chegar em um texto que conta a relação que cowboys estadunidenses tinham com a leitura justamente de Shakespeare, o que materializou historicamente essa ideia que tivemos.”



Bem humorado o novo single “Shakespeare Cowboy”, com boas doses de ironia, parece de certa forma parece atualizar a história do Jeca Tatu, de Monteiro Lobato, para 2021.

Vocês ainda contextualizam para Campinas, uma das maiores e mais ricas cidades do país, que consegue reunir ao mesmo tempo as inovações da vida das megalópoles mas ainda ter o ar provinciano, como é para vocês lidar com essa dicotomia e como foi o processo da composição?

Por mais sarcástica que ressoe parece trazer diversas situações a cada linha, contem mais sobre as histórias por trás.

TØSCA: “Eu vejo essa dicotomia como uma coisa muito comum do campineiro e também de outras cidades do interior. Comecei a pensar mais sobre isso depois de assistir ao documentário “This is CANOAS, not POA!” e vi muito do que a gente vê na cena cultural campineira, uma proximidade prejudicial com a capital do estado: longe demais pra ser e participar da mesma cena, perto demais para ter uma existência independente. 

Com a falta de políticas públicas culturais municipais (no caso de Campinas), entre outras questões, para dar continuidade a seu trabalho artístico, nos vemos quase que obrigados a mudar para a capital, onde encontramos uma quantidade maior de recursos e gerando, assim, uma concentração em um único local. (Fran)”



Aproveitando o gancho, transportando para universo da música independente, ainda enxergam uma dificuldade para difundir o som de vocês localmente por conta do ar provinciano?

Quais artistas e projetos da região gostariam de destacar para os leitores? Fora de Campinas, sentem alguma diferença na recepção?

TØSCA: “A impressão que temos é que não é apenas o ar provinciano, mas uma questão estrutural de locomoção, um problema material. Campinas é uma cidade formada por distritos, com grandes problemas de transporte público, e na prática os rolês acabam se fechando em si, limitados a barreiras geográficas e estruturais impostas. Não que isso negue a dinâmica de amigos que chamam amigos para show, mandam links e compartilham nosso conteúdo, mas ainda é um público limitado por essas questões. 

Artistas que sempre temos por perto são Cama Rosa, BDLV, Waldomiro Mugrelise, Vitor Wutzki, Meneio, Derrota, Kill Baidek, Zviet, entre outras.

Em relação ao gênero musical, é muito mais fácil encontrarmos lugares que nos receberam na capital, isso é indiscutível. Mas sobre a receptividade e integração geral das pessoas,  talvez nos sentimos mais à vontade em cidades menores como Sorocaba, Socorro e no Circuito das Águas.

Acredito que muito também se deve pela quantidade de ‘roles’ que acontecem simultaneamente em São Paulo, o que não acontece tanto em cidades menores. Criamos vínculos muito fortes com pessoas de vários lugares por onde passamos, mas às vezes na capital a gente acabava sendo “a banda de mulheres de Campinas“. 

Como enxergam o cenário de punk rock/pós-punk brasileiro atual? A internet tem sido trivial para a difusão, colaborações e trocas?

TØSCA: “Nos últimos anos vemos novas bandas surgindo, mas percebo que acabam não durando muito. Especificamente em Campinas, percebo uma dificuldade de sustentabilidade das bandas, que não só surgem e acabam, mas parecem não saber como se divulgar e sair do seu círculo de amizades; ainda mais considerando os algoritmos e como a internet funciona.

Eu acho que a internet tem ajudado muito a conhecer novas bandas e novas pessoas, principalmente no período da pandemia, mas como esse contato é inicial e acabamos não nos encontrando pessoalmente, acaba sendo muitas vezes um contato superficial. (Fran)

Eu acho massa ver que sempre tem alguma banda nova ou que não conhecia, e que acaba surgindo justamente por amigos que compartilham, canais que interagem com os seguidores pra conhecer novas bandas, e acho que esse tipo de uso da internet acaba só somando! (Alice)”

This post was published on 10 de agosto de 2021 12:03 am

Rafael Chioccarello

Editor-Chefe e Fundador do Hits Perdidos.

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