Pessoas Estranhas passeia por timbres e frequências em álbum de estreia
Pessoas Estranhas – Foto Por: Yasmin Kalaf
Ter a oportunidade de conhecer uma banda ao vivo antes de dar o play é para poucos. A experiência é bastante singular e em alguns casos pode ser até mesmo transcendental. Ainda mais se a proposta for livre, sensorial e reverberante como é o caso do som do duo paulista Pessoas Estranhas.
Hoje eles apresentam o álbum de estreia que leva logo o nome da banda, algo que particularmente é intrigante. Muito por conta da responsabilidade que isso impõe mas que por outro lado pode servir como um belo de um cartão de visitas. Aliás, o Pessoas se impõe desde que sobe ao palco, na primeira música você fica tentando entender o que verá, na segunda vai sentindo o groove, e na terceira, começa a fazer passinhos.
Talvez seja essa a verdadeira magia da música, conseguir surpreender e trazer uma nova audiência para junto de si a cada apresentação. A cada viagem sonora e sequência de acordes treinada até o esgotamento físico e mental. Cada tentativa de impactar seja por uma mensagem ou por uma linha frenética que gruda na cabeça.
Sabe quando vocês leem relatos de estrangeiros que quando ouvem Os Mutantes, Gilberto Gil ou Boogarins pela primeira vez se sentem conectados mesmo sem entender sequer uma palavra que é dita? Com o Pessoas Estranhas a experiência é parecida.
Inclusive o duo formado por Guilherme Silva (ex-Inky) e Stephan Feitsma (ex-Inky). nos shows e gravações tem a companhia de Bruno Bruni, que entra nos teclados, e Nico Paoliello (Garotas Suecas) na bateria e voz.
Cozinha essa que foi sendo maturada com toda a paciência do mundo, e até mesmo mudanças de cronograma, afinal 2020 se explica por se só. Foram 2 anos entre o lançamento dos primeiros singles, diversos shows que ajudaram a moldar as canções e agora, finalmente, a materialização disso tudo.
O Debut do Pessoas Estranhas
Talking Heads, Nação Zumbi, King Crimson, DFA, Betty Davis, nomes de heróis da Motown e da música brasileira são referências que vocês irão encontrar no disco do Pessoas Estranhas mas talvez abreviar o caldeirão a isso seja até mesmo um pouco injusto pois o encontro proporciona muito mais. Assim como a arte do improviso.
Talvez esse choque que seja a grande graça, ter boas referências mas sem perder o brilho do autoral e a chance ao erro do improviso. Tudo calculado.
“É um convite pra escutar nossas aventuras pelo mundo do som. Cada música segue um caminho diferente”, conta Stephan – vocalista e guitarrista.
Tanto é que a mistura transforma eles como “Banda de música”, como diz Guilherme – vocalista e baixista.
Recentemente até perguntei para um artista qual era a de inventar rótulos para o som, porque as vezes, eles podem ser um tanto quanto pitorescos, a resposta foi ótima: não entrar numa caixinha descartável como “nova mpb” ou “indie rock”. Mas no caso do Pessoas tem muito mais a ver com os choques e provocações artísticas que vão além da estética da banda, propriamente dito. É um discurso quase conceitual com aquele espírito Television de ser, se é que você me entende.
A Produção e Referências Estéticas
Entre os temas ao longo das sua 8 faixas eles existe homenagem pro cachorro (um salve para o Rubens idolatrado nos shows), crítica política (saiba mais), declaração de amor, solidão e personificações surrealistas são alguns dos temas. O que faz dele um disco contemporâneo e conectado com o momento de nós como sociedade.
“A linha é tênue pra ficar desconexo, mas de alguma forma o disco tem uma cara. Tivemos uma ajuda muito boa de Rodrigo Coelho”, conta Stephan.
Rodrigo assinou a Mixagem e Felipe Charret a masterização. Já a engenharia de som ficou por conta de Nico Paoliello / Bruno Bruni. O disco é um lançamento Cavaca Records.
“O disco é cheio de ruído, a gente curte muito. É aquela sensação de não entender direito o que cada instrumento está tocando”, completa Guilherme.
Eles se juntaram no Carnaval para gravar em 4 dias. “Foi ótimo gravar no feriado, celulares apitando menos, mais sossego pra gente focar”, diz Stephan.
A Experiência
Bastou apertar o play para ser teletransportado para alguns shows que pude assistir do Pessoas Estranhas. “Rubens” que homenageia o cachorro já era xodó das apresentações e até mesmo conta com dancinhas que vocês poderão assistir quando shows foram possíveis.
Em sua versão “REC, valendo” os teclados criam um diálogo ainda mais limpo com as linhas de baixo mas a tensão continua no ar e o aspecto da mixagem de deixar soando ao vivo contribuiu bastante neste momento onde não podemos estar ali frente a frente. Embora na gravação as camadas fiquem ainda mais evidentes. De certa forma ela ficou ainda mais intimista e enxuta.
“Rasteira” traz consigo o suspense, referências setentistas, quebras e mostra um pouco das nossas epifanias, dilemas e conflitos dos relacionamentos entre terráqueos. “Intro” tem um gás e frequências que mostram como o universo de referências além de diverso, é livre e até mesmo canibal. Dos fliperamas as Boogie Nights, tem tudo ali e mais um pouco….se sua imaginação permitir.
“19” brinca não só com sua estrutura mas também com a sua letra, ela traz consigo uma angústia, o lado dark mas ao mesmo tempo uma vontade de se deixar levar pelas ondas psicodélicas (e até mesmo parece chamar para uma rodinha no fumódromo, se é que você me entende).
A Reta Final e seus Aclives
“Não Tem Como Não Gostar”, “funk rock inspirado em Tim Maia com um desabafo literal sobre estruturas de poder de bancos e igrejas”. Sua densidade e mensagem em convergência, um espírito rebelde que chama para si para denunciar as fraudes, falhas, caminhos mais curtos e buracos do nosso (querido) Sistema.
“Musga” é um dos pontos altos dentro da quebra de paradigmas e experimentações do álbum do Pessoas Estranhas. É como sentar no banco do carro do GTA e se deixar levar pela música, e pequenos delitos, enquanto mudam a estação da rádio sem avisar.
Uma epopeia que eles até mesmo explicam em partes. Na letra a personificação do mar, ressentido com o destrato da humanidade, transparece de uma forma toda própria. “Ele se vinga cuspindo todo o plástico de volta pra terra”, conta Ste. Gui completa: “E a única coisa que pode nos salvar é a ‘musga’”. Magistral? Uma pergunta que Musga responde em seu instrumental.
“Elamilê” traz um arsenal de timbres, frequências quase robóticas, tem um ar de romance e entra as inspirações tem o som do DFA. Daquelas para fazer os passinhos enquanto troca olhares na noite adentro.
Quem fecha é “567” de uma forma anárquica, coesa, pulsante, reverberante, magnética e até mesmo refrescante (dependendo do seu ponto de vista). Uma good trip celestial feito o subir de uma montanha, entre superar obstáculos e cruzar novas fronteiras.