A Musa Híbrida de Pelotas (RS) após ter sido contemplada no edital da Natura Musical ganhou a oportunidade de gravar um álbum com uma grande responsabilidade em mãos: conseguir expandir e potencializar seu trabalho em nível nacional.

Tive a oportunidade de estar presente na audição do disco, que aconteceu na Casa Vulva (Zona Oeste de São Paulo) e foi um momento importante não apenas para entender a proposta do novo disco mas como de ver como as projeções e iluminações que vão a cada dia mais ganhar espaço dentro do trabalho – e apresentações – dos gaúchos.

Não é à toa que as canções foram mostradas com o auxílio de projeções que já nos mostravam as intensidades e camadas do registro. Que ao meu ver traz um pouco de cada integrante ao longo das faixas.

Como comentei com amigos mais próximos: de ortodoxo este álbum não tem nada. Não apenas por mostrar individualidades e empoderamento como na já hino “Como é Bom Ser Lésbica” mas por suas texturas e propostas sonoras.

Onde é mais eletrônico pesado, foi potencializado, onde é mais MPB e Ukulele, é mais pop e onde é mais comercial, se mantém. É um pouco da Musa Híbrida mostrando seu hibridismo, maturidade ao encostar em temas polêmicos e pessoais. Mas sem deixar de experimentar e consolidando (ainda mais) sua identidade estética e conceitual.


Musa HíbridaFoto Por: Eduarda Gaeta

Claro que o disco tem um norte e este feito uma bússola foi sendo construído ao longo da estrada. Esta que sempre os inspirou e os transforma desde 2012, vale lembrar que por aqui eles fizeram um completíssimo Diário de Bordo onde narram algumas de suas aventuras.

Como surgiu o conceito do álbum?

“Piscinas vazias iluminadas em pé nasceu na estrada. No início ou no fim de alguma cidade, no meio de uma tour. Na faixa, de noite, um monte daquelas lojas que vendem piscinas.

Cuqui diz “eu acho lindas essas piscinas vazias iluminadas em pé”, Alércio brinca “piscinas vazias iluminadas em pé, bom nome de disco”, todo mundo ri, um minuto depois todo mundo já tá pensando se realmente é um bom nome, três minutos depois já se torna o nome do nosso próximo disco que não tinha, naquele momento, nada além de um nome excêntrico.

Alguns meses depois, quando o projeto do Natura Musical foi ser escrito o título do álbum não foi um problema. A escolha das músicas, um pouco. Diferentemente dos álbuns anteriores, a ideia era que fosse bem equilibrado o número de composições do Alércio e da Cuqui. Como ela não tinha tanto volume de escrita na época, a gente acabou escolhendo algumas que já tinham sido lançadas no seu EP solo, Lésbicas inventaram a palheta.

Ela também pediu que a canção Pirata (do Alércio, escrita em 2011 e lançada em 2012 no disco Máquina loucura, da extinta Canastra Suja) estivesse nessa lista. Foram escolhidas 10, mas claro, era uma escolha mais abstrata do que o título do disco, que pra nós era bem concreto. Se o projeto for escolhido a gente pensa tudo com calma (tão improvável, tão concorrido, né?).”

A Escolha pela Natura Musical

“Corta pra Carol, nossa produtora, ligando e dando essa notícia que, sim, estávamos entre os escolhidos. Dedo no alto e gritaria. Passada a emoção e euforia, vem o sentimento que, sim, teremos uma grande, mas uma grande responsa pela frente. Fazer um disco. Fazer um disco que vai sair pelo Natura Musical.

A gente tinha que fazer esse álbum, em teoria, com 10 faixas. Então gravamos 20 guias. 20 músicas pra ficar com 10. Gravamos as guias numa tarde na casa do Vini, também conhecido como Estúdio Cabeça de Algodão (lá a gente gravou todos nossos álbuns).

Gravamos as guias e saímos em tour. A ideia era ir ouvindo incessantemente as músicas entre cada trecho da viagem. Ali já começou uma pré-seleção. A gente ia apostando em músicas, delirando com possíveis arranjos, ouvindo mais umas do que outras. Cada um foi tendo suas favoritas, e tinha uma ou outra que já era campeã pra todos. Mas, no fundo, a gente meio que gostava de tudo e todo mundo sabia (e comentava) como ia ser doloroso abrir mão de alguns daqueles nenês. Foi, mas nem foi tanto.”

O Nascimento do primeiro single e a turnê

“Assim como essa escolha foi nascendo em viagem, o começo do trabalho prático também teve início durante uma tour. As ditas prés. A primeira vez que a gente tocou uma música nova foi em Espírito Santo, Vitória.

E foi o quê? Uma pequena vitória, viu? Viu, era o nome da canção. Apenas sete vírgula cinco gramas, de poema e membrana. Música da Cuqui. Ela tocando baixo e cantando, Alércio tocando guitarra, Vini fazendo o beat na mão. E rolou.

A ideia da música, o que é a música, como ela ficou no disco, nasceu ali, naquele dia depois do show. No mesmo lugar que tinha rolado o show. Inclusive, tem uma linha, uma textura, de guitarra que foi gravada naquela noite e ficou no registro final do som.

Ainda durante essa tour, na segunda pausa que rolou, a gente seguiu as prés, aí em Recife. Cinco tardes de trabalho e já tínhamos cinco músicas. “Aurora” (morreu antes de chegar em Pelotas), “Fina flor” (a primeira metade dela nasceu ali, e os primeiros compassos são literalmente aquelas gravações da pré).

“Tudo tá tão errado” (resistiu ainda um pouco mas abandonou o barco – ou a piscina, um tempo depois em Pelotas), “Paper viu” (na época a gente chamava ela de “Pontas”, e muito do que tá no disco foi gravado lá, beat, baixo – mesmo que depois em Pelotas ela tenha mudado muito, mas muito mesmo) e seguimos mexendo na “Viu, viu, que foi crescendo.”

Fim de tour, voltamos pra casa, Pelotas, e começamos a trabalhar intensamente – quase que única e exclusivamente nas piscinas. A gente já tinha um norte com aquela pré que rolou.

O disco foi se desenhando com uma certa facilidade, em umas duas semanas a gente já tinha ele quase todo montado, definido, quase todas as músicas arranjadas. Eram 12, mas a Cuqui tinha uma letra, escrita durante a viagem, que ela queria que virasse música.

Sentia que sintetizava um pouco a nossa vibe da viagem, do disco, dos nossos últimos meses. O Vini fez uma base e o som rolou, já no fim do quase fim, a última música a ficar pronta, que recebeu o nome simbólico de Piscinas Vazias. Com isso fechávamos 13 músicas, a nossa piscina já não era mais tão vazia, e muito iluminada.”


O disco da Musa Híbrida foi sendo construído na estrada. – Foto Por: Eduarda Gaeta

O Disco

Além da parceria com a Natura o disco que está sendo lançado em CD e Vinil conta com da distribuição dos selos Escápula Records, Selo 180 e PWR Records. O trio, que mostrou seu filho ao mundo no dia 24/08, conta em sua linha de frente com Camila Cuqui (voz, baixo, bandolim e guitarra), Alércio (voz, baixo, guitarra e programações de luz) e Vini Albernaz (synths, beats e programações eletrônicas). Vini também assina a produção.

Mas o Piscinas Vazias Iluminadas em Pé, para os mais íntimos, PVIP também conta com várias participações especiais de artistas como LaBaq, Maurício Pereira, Aíla,
Angélica Freitas, Bel, Gali, Juliana Perdigão, Laura Bastos, Obinrin Trio ​e Juliana Strassacapa.



Como comentado pela própria banda tem algumas canções de projetos paralelos – e anteriores – que entraram dentro da panela do disco mas nem por isso o registro perde brilho. Para deixar tudo nos conformes hoje eles nos presenteiam com um faixa a faixa escrito por eles mesmo, dizendo quem escreveu o que e tudo mais.

As histórias do caderninho, letras, melodias, arranjos e sonoridades ganharão mais contornos após esta interessante leitura. Eles abrem as cortinas e mostram um pouco mais de si e isso deixa as piscinas ainda mais transparentes.

01) “Pirata” (letra e música: Alércio)

Na tentativa exasperada de ter uma abertura de disco. E foi logo de uma reconstrução que transgride a original. A história é por sua vez toda curiosa.

Vini Albernaz: “Tava procurando um som que tivesse potencial pra abrir o disco. A primeira faixa tem toda uma responsabilidade, de anunciar, de apresentar um disco, de abrir de fato. Queria um som grave que construísse um groove com a batida e os baixos.

Somei ambiências percussivas com o beat e deixei as guitarras soando com bastante profundidade. Fui editando, picoteando os violões guias, pra que ela também ficasse mais desconstruída, esse movimento de travar e suspender, travar e suspender, de um certo contraponto entre melodia, harmonia e ritmo, brincando com os timbres e texturas.”

Alércio: “Escrevi essa música em 2011. Ela chegou a entrar no disco Máquina loucura, da Canastra Suja, numa versão que era meio tango, meio esquisita. Mas depois eu me esqueci dela, claro, fui fazendo várias outras músicas.

Quem reviveu ela foi a Cuqui, que há um bom tempo já comentava da gente talvez gravar ela. Então eu disse, particularmente não faço questão de tocar ela, e sobretudo, nem sei cantar essa música (risos, de nervoso). Ela pilhou, a gente só tinha que achar um tom que ficasse legal pra ela. Um dia lá no Vini eu peguei o violão e comecei a brincar com a harmonia.

Ainda tava (ainda tô) com a cabeça desmontada lá da oficina que fiz com Kiko Dinucci durante o Porto Musical, em Recife. Fui diminuindo a repetição dos acordes e colocando outras notas em tempos estranhos, num tom que ficou confortável pra Cuqui. O Vini foi registrando aquela ideia no celular. Ali foi nascendo o que seria o primeiro esboço daquela “Pirata”.

“Eu sou o pirata que roubou a embarcação de vinhos do rei”, essa frase mote da canção nasceu numa noite em que um amigo levou uma garrafa de um vinho bom, provavelmente chileno, uma coisa que naquela época a gente não tava acostumado a beber (acho que ele tinha “roubado” – pego sorrateiramente – da adega do pai dele, algo do tipo). Só que na casa que eu morava não havia taças. A gente tomou aquele vinho maravilhoso numas canecas de alumínio, dessas de propaganda de posto. Eu, rindo daquela situação, nos imaginei piratas tomando o vinho do rei em canecas brutas. Quando a Cuqui foi cantar sugeri que ela mudasse o artigo, não faria muito sentido ela cantar O pirata, se ela é A pirata, né?

Cuqui: “No começo de 2012 eu fui ouvir essa canção e até hoje eu gosto muito dela na voz do Alex, aquela versão resgata uma memória minha desse tempo aí e acho isso incrível. Já havíamos cogitado gravar ela, tentado tocar de leve, mas na época não encontrei o tom, a gente deixou quieto logo.

Pensando agora, foi imprescindível essa maturação que aconteceu com a gente antes de chegar a realmente gravar a pirata. Nesse disco eu tentei exercer uma maior consciência do meu modo de cantar, quis mesclar nas gravações dessa canção meu jeito arrastado com uma voz mais firme, com mais grito, com mais potência. aí veio essa pirata, que é A pirata e que pra mim cresceu imensamente o sentido da letra com essa pequena mínima modificação. O Alércio que deu a ideia e eu só: como eu não pensei nisso? (risos).

Já que as minas são realmente piratas em mares capitalistas em que as mulheres há não tantos anos saíram da lista de propriedades masculinas. Eu sou a favor de feminilizar toda a linguagem: um brinde de vinho caro num copinho menstrual.

02) Fina Flor (letra e música: Alércio)

Vini Albernaz: “O som começou com experimentos ao vivo. Fiz a batida da introdução nos pads com sons gravados a partir de peças de bateria, costurando com a guitarra e o baixo. Depois entra uma batida mais marcada, timbres eletrônicos somados a ambiências.

Na primeira parte da música ela acontece num formato mais “rock“ [guitarra, baixo e batida]. Depois o som desenvolve pra outra paisagem, aprofundando as guitarras e colando os sons com sintetizadores e vocoder. Uma mudança abrupta mesmo.”

Alércio: “A Lílian me debocha, que eu sou um cantor romântico. Que “diante da vida a fina flor do amor” é dos versos mais românticos. Eu dou risada, mas na moral eu tava pensando naquela música do Caetano, em que ele canta “apenas a matéria vida era tão fina”. Essa música sempre me tocou muito, ainda mais depois que soube que foi escrita pro Torquato Neto e tal.

Enfim, as minhas músicas às vezes ou quase sempre são bem abstratas ou parecem não dizer muito nada. Ou têm um desencadeamento de uma maneira estranha os versos? A questão é que pra mim elas têm uma lógica, mesmo que não aparente, ou mesmo que só na minha cabeça. Ela tem um pouco essa pegada de valer de vida, de morte, de começo da vida, nascimento, através de umas metáforas meio tortas, ou meio inventadas.

Nessa brincadeira de ficar alternando entre o português e o inglês, mais por uma questão de sonoridade mesmo. Eu sempre achei estranho galera do Brasil que compõe em inglês e olha eu agora? Já faz tempo que eu tento fazer um rock na Musa. Logo eu que não sou roqueiro?”

Cuqui: “Lá no Recife, a praia cheia de tubarão e a musa hídrica suando bicas enfurnada num estúdio (aconchegante, amigável com ar condicionado até, mas nada basta no sentido QUE CALOR bicho), eu compus uma linha de baixo pra essa faixa.

Primeiro ela era só a parte roqueira, lembro muito que a gente ouviu no carro as modificações que os guris tinham feito nas prés (isso talvez de volta a vitória depois do recife, senão me falha a memória) e aí pow, a música realmente bateu pra mim.

Uma info oculta que eu acho relevante é que essa canção tinha uma última frase talvez mais cantor romântico ainda que a penúltima, que agora é a última, que o Alércio citou.

O que eu acho massa é que essa frase, esse piegas desconstruído que é ir direto ao piegas foi muito traduzido pra mim nessas sonoridades ali do final. Eu me ligo muito na letra e a atmosfera dessa mudança abrupta é bem o amor que mexe com a minha cabeça e me deixa assim.”

03) INDIEMAINSTREM (letra e música: Alércio)

Vini Albernaz: “Música construída com poucos elementos. Violão, alternando com o baixo/celo e o beat entrando e saindo o tempo todo, respeitando os silêncios da canção.

Como a música fala de São Paulo, pensamos em duas pessoas bem específicas: chamamos a Labaq pra gravar voz, alternando em vozes secundárias, principais, contrapontos e melodias livres. Por fim o Maurício Pereira encaixou melodias de voz e sax soprano que quebravam a métrica da música, colorindo o som de uma forma mais rica.”

Alércio: “Nasceu na casa da Flora, ali pela Vila Madalena, naquele dezembro de SIM São Paulo. Eu tava hospedado na Liberdade, na casa da Bru. Éramos uns quantos lá, com sem nenhum ou quase sem nenhum dinheiro.

“Tutu” é uma expressão, uma gíria velha mas muita velha pra dinheiro. Eu tava só com a passagem de ida do metrô. Sem crédito no celular, dependendo só dos mapas e indicações das pessoas na estação. E tinha uma reunião na casa da Flora, sobre a assessoria de imprensa, planejamento pro Natura Musical e tal.

E lá fui eu, consegui chegar. Por sorte tinha um café na térmica, sempre um carinho no coração. Por mais sorte ainda (ou carinho?) a Flora fez uma massa – ou como se diz em SP, macarrão, e eu pude garantir aquela refeição. Café, cigarro, reunião, almoço e depois aquele relaxar no sofá.

Peguei um violão que tinha por ali e fiquei uma meia hora tentando afinar. Tava com saudade de tocar violão, há muito longe de casa. Mas quando o violão ficava afinado nas primeiras casas, desafinavas nas outras e vice-versa e versa pra mais pra menos. Eu já tava desconfiado com aquilo, até que a Flora sentenciou que aquele violão era “inafinável”. As duas últimas cordas afinavam. Com o mi e o lá já dava pra se divertir.

Ali nasceu o tema, as primeiras frases da música. Mi, si, mi, ré – mi, si, mi, ré ré ré: “eu centro-luz”. A onda de andar de metrô em sampa. “Eu gratiluz eu sem”, gratiluz era uma expressão que a Larissa Conforto usava muito e eu achava divertida, ela tem uma certa carga de ironia, ou assim me parece.

“Eu sem nenhum, eu sem nenhum tutu, tu tu também” (uma gagueira brincadeira pra caber na métrica, ela foi ficando toda meio uma palavra colando na outra). “Todos estamos sem”.

A letra foi toda nascendo ali, daquela ideia musical, daquele embrião que só foi possível pela falta de outras cordas pra tocar. Me distanciei um pouco das gurias, fui pra varanda sentado no chão, escrevendo os versos que vinham na cabeça no meu celular. “Seguimos sem, seguimos sós além, São Paulo amém, aclimação não tem”.

A gente passava muito por essa placa da Aclimação, indo do Liberdade pro CCSP, eu acho. Eu ria dessa ideia de existir um bairro chamado Aclimação, onde era impossível entrar no clima, impossível se “aclimatar” – não entrar no clima é estar tão fora, SP pode te dar essa sensação às vezes, pelo menos em mim existia. “E a liberdade, é uma subida ao sol”, era literalmente a grande subida, ao sol de dezembro, da casa em que estávamos pra chegar na estação Liberdade. Mas era e é também a imagem dupla, de, enfim, como pode e é duro atingir a utópica liberdade, uma subida ao sol como algo penoso, dificultoso.

“Mas chove bem, só molho bobo eu sei” a terra da garoa, sua chuva fina, num quente dezembro, essa chuva que não molha, ou parece que não molha, no sul chamamos de molha bobo. “E mar não tem, só mar de gente e eu”, uma passada pelo metrô num dia de semana em sampa, mar de gente, e eu, lá, no meio da SIM, com um monte de gente estouro da cena, galera bombada as ganhas, e eu, lá, ainda num início de carreira, vindo do fim do fundo da América do Sul, vendo aquela galera de perto e percebendo minha atual situação “eu sou ninguém, no indiemainstrem” (esse trem, não só pra rimar, ou não pra rimar, mas pra causar essa estranheza do inglês e do português, em São Paulo a gente escuta muito a galera transitando entre idiomas, né?) “tô sem vintém, to indo massa trem” e lá vou eu com a massa, trem.

Dois dias depois encontrei a Labaq num rolê, apareceu um violão, ela me pediu pra tocar alguma coisa, eu toquei a Indie. Ela ficou ali com uma cara que tava curtindo e eu disse pô canta comigo, aqui a letra. E aí foi uma coisa linda, nem sou eu que tô dizendo, a Cuqui tava lá, a Carol tava lá, elas disseram e podem provar. Tava claro que se essa música entrasse no disco a gente chamaria a Labaq (naquela época ninguém tinha lugar certo ainda nas piscinas).

Depois durante a tour do Nordeste, no fim da oficina do Kiko ele disse bora almoçar por aí, galera? Claro, né? A gente foi num restaura maravilhoso no Antigo (esse lugar também maravilhoso na também maravilhosa Recife).

Tava lá também Juçara Marçal, depois chegaram Maurício Pereira e Roberta Martinelli. Eles tinham uma fala sobre o indie e o mainstream. Eles começaram a falar sobre aquilo e eu comentei timidamente sobre a Indiemainstrem, essa ideia de um mainstream dentro do indie.

Maurício falou é pô toda cena tem seu mainstream, claro. Mais tarde, naquele dia, comentei com a Carol desse delírio de chamar Maurício Pereira pra cantar essa música, contei toda a história do almoço etc. Depois eu me esqueci. (Já disse que não tenho memória?).

Meses depois, a música arranjada bonitinha, disco quase pronto, Carol retoma essa ideia. Faz a ponte, e a ponte se faz. Eu fiquei todo bobo, vou dizer. A gente acompanhou via vídeo ele gravando, voz e sax. Logo ele, que definitivamente é alguém no indiemainstrem. Eu achei fofo.”


Cuqui e seu caderninho inseparável nos bastidores da gravação. – Foto Por: Eduarda Gaeta

04) “Viagem” (letra e música: Cuqui)

Cuqui: “Essa música foi composta ali depois de uma e antes da outra tour. Ela de certa forma faz uma continuação de meu km, cita e revela coisas que aconteceram ali.

“Se por acaso ou descuido eu um dia abrir os olhos e guardar na cabeça aquela imagem”, mas na letra original escrita à mão pela Rafa terminava com “Desculpa, eu abri os olhos”. E aí é essa viagem, que traz informações que só quem tem acesso aos originais poderia perceber. Esse original nem eu mais tenho acesso que a Rafa colou em cima alguma coisa provavelmente. Mas é isso, sobre que às vezes dá medo de sair e dá medo de ficar.

As coisas são legais porém difíceis, rola um glamurização muito grande enquanto a realidade é muito mais dura e confusa. O agridoce de fazer uma turnê top, mas interromper a vontade de estar com a sua própria vida, aí vem a suspensão, o lugar-nenhum. A extrema felicidade de entregar sua música para um público é rodeada de burocracia, horas dentro de um carro, dificuldades financeiras e saudades.

Tem o cello, que foi usado no PVIP, que também é viajante, que é da Carol e veio passar um tempo no Cabeça de Algodão enquanto a Carol ficava nômada. Ele é robusto, bonito, interessante trouxe toda uma cor pra essa gravina. Lembro bem de eu tocando essa canção num violão de nylon nas escadas da Casa Verde e a gente pirando como seria esse disco. Agora estamos aqui – que viagem.”

05) “Meio” (letra e música: Cuqui)

Cuqui: “Não existe dom. O trabalho é uma procura incessante. A questão da arte já existe e a artista vai desvendando. Na arte há sempre esse meio. No ato da criação, somente o próprio fazer revela os caminhos, como um horizonte que está sempre a vista mas nunca se alcança.

Essa canção é ali do meio de 2017, gravei ela no meu epê Lésbicas Inventaram a Palheta na conclusão do bacharelado em Artes Visuais. Pesquisando em arte com mulheres incríveis como Blanca Brites, Élida Tessler, Edith Derdyk, Raquel Stolf, citando as minas que trabalham ao meu redor e eu admiro, num processo em rede de construção de pensamento. Com literatura, poesia, uma pitada de realidade sobre “como sobrevive uma artista contemporânea?”: surge esse trabalho, que tá disponível na internetê pra quem tiver afim de fuçar.

A cataclisma feminista: uma fenda, uma buceta no espaço-tempo. É a pesquisa interna e poética do trabalho prático e é também a pesquisa histórica e política do apagamento sistemático das mulheres.”

06) “Paper Viu” (letra e música: Cuqui)

Vini Albernaz: “O som começou a se construir de modo bem intuitivo, lá em Recife. O baixo solto, a Cuqui na guitarra largando os acordes e ligando efeitos e a batida toda feita na mão.

Depois, já em Pelotas, passamos a recortar pedaços e interferir nos arranjos, colar ambiências da estrada, afinei buzinas de caminhão e colei no som construindo melodias, o mesmo foi feito com sopros e outros sons que fui gravando e sampleando. É uma música que a atmosfera do instrumental ganha diferentes profundidades no decorrer. Desde os espaços mais silenciosos aos mais densos e ruidosos.”

Cuqui: “O primeiro nome dessa música era “Pontas”. Dos tabacos enrolados da vida aos cabelos coloridos do meu amor, a música é uma imagem de nós artistas acadêmicos ali na frente da facul, aquele lugar que é a faculdade mas não é, onde se fuma cigarros enquanto rolam verdades mais críticas e goles de vinho.

Mas aí que o Centro de Artes não é onde as artes se concentram de maneira simples, mas onde se encontram algumas e se destróem outras ideias sobre arte. Os murmúrios, a própria academia e as paixões destruidoras atrapalhando o ato de criar. Além do trabalho, a convivência, o contatinho. Não é muito diferente de Rupaul’s drag race ou Masterchef: pay per view, mas em outro suporte.”

07) “Como É  Bom Ser Lésbica” (letra e música: Cuqui)

Cuqui: “Essa canção foi composta no ukelele da Angélica Freitas, quando ele passou uma temporada na minha casa. Uma primeira letra descompromissada deu lugar a uma pesquisa intensa de mulheres lésbicas artistas nessa versão. Cineastas, artistas visuais, poetas, compositoras. Assumidíssimas, maravilhosas.

Desde sempre quisemos a participação da Angélica no disco. Além de uma referência em poesia contemporânea a Angie é nossa amiga, tava lá na audição do respirei o poema cuspi e escreveu aquele release quentinho e aconchegante sobre essa ocasião.

Um dia o Vini chegou com a ideia dessas participações via celular e puts! Convidamos todas! Quando elas começaram a responder que sim eu já tava em êxtase, depois recebemos esses muitos áudios e pra mim aí a música se tornou um hino nacional sapatão.

Aíla, Obinrin trio, Bel, Camila Garófalo, Juliana Perdigão e Laura Bastos. Eu sou fã dessas mulheres, escuto em casa, canto no chuveiro, acompanho no instagram. E aí a mágica da tecnologia nos faz estar todas em uma mesma faixa, coincidentes, um mapa lésbico brasileiro finalizado pela voz grave da Angie lendo seu poema arrebatador. Gostar de mulher é arte.”

08) “Piscinas Vazias” (letra e melodia: Cuqui; música: Vini Albernaz)

Vini Albernaz: “A Cuqui me pediu uma base em que ela pudesse construir melodias a partir de um texto que ela tinha escrito durante a tour. Disse que queria algo descompassado, pra fugir do violão ou de batidas que a mão dela insistia em repetir. Fiz a base com bem poucos elementos – sintetizador e peças “perdidas” de beat construindo um ritmo que quebra o tempo todo.

Essa foi outra que entrou bastante ambiência gravada na tour, som de paradouros, pessoas, carros, caminhões. Pensamos na Juliana Strassacapa pra cantar junto com a Cuqui, dobrando melodias e colorindo todo o som, dando outras dinâmicas através da voz pra essa base que é toda mais contínua.”

Cuqui: “Letra escrita no Google Docs, no celular, durante a nossa maior “tortour”. As coisas que passam na estrada e as mensagens que o 3G não recebe. Segundo a Rafa, a “Faroeste Caboclo” da Musa Híbrida – na estrada tinha tempo de sobra, saudade de sobra.

Não havia ali muita opção senão atravessar esse brasilzão sem freio. Só no dinheiro. A dureza do asfalto, que gasta as rodas, que vem aquela mesma saudade/medo da viagem, mas agora olhando pela janela do carro pela janela quem é ela quem é ela eu vejo tudo enquadrado. Dando zoom out pra sempre no gps do painel a gente consegue ver o mundo e pra qual direção estamos indo nele. Mas o nosso conhecimento sobre direção é estritamente geográfico. Daí tem o medo do acidente, os caminhões em alta velocidade arrancam pedaços das árvores que se aproximam da pista, como enormes monstros da selva de pedra. Brotam espiritualidades alternativas no escuro da br-legal.

Eu quero voltar inteira e quero que a Linha e a Fita e Rafa estejam bem, “que o espírito santo e você deusa”. A voz da Ju veio pra destruir e construir essa atmosfera. A Francisco também vive na estrada, são sentimentos que certamente partilhamos. As imagens que passam correndo e mesclando nossos próprios reflexos no vidro com as imagens que não saem das nossas cabeças.”


As participações especiais tem histórias curiosas e tiveram um processo bastante colaborativo e conectado. – Foto Por: Eduarda Gaeta

09) “Bê” (letra e música: Alércio)

Alércio: “Bê é provavelmente a música mais fofinha do disco. A que tem mais cara daquela Musa do primeiro álbum, lá do longe 2012, que na história do Brasil vem antes de 2013. Muito disso é porque a música foi escrita nesse 2012.

Em Porto Alegre, quando morava por lá. Tinha prometido pra minha afilhada, na época ela tinha uns seis anos? (não ter certeza da idade já mostra o tipo de dindo, né?), Tinha dito, bora aliviar um pouco, que ia ir passar a noite com ela e meus tios, na Zona Sul.

Eu morava no centro da cidade, isso dava uns 20 km de distância. Acontece que naquele dia saí com o violão nas costas, com a ideia de passar a noite lá mesmo. Mas acabei encontrando o Ed (ou ele me encontrou?) a gente foi numa abertura de exposição, tinha rios de vinho, o vinho levou a uma cerveja na esquina (já falei que era 2012, eu era bem mais jovem, galera) e quando vê já era tarde pra qualquer ZS.

No outro dia acordei, com um pouco de ressaca e muito de remorso e escrevi essa música pra ela. A gente assistia muito Flapjack na época, a canção tá infestada dessa doçura, dessa busca pela Ilha Doce. E no fim tem aquele sermão, que eu imagino que possa ter passado pela cabeça dela, um pouco de invenção. Depois, claro, passaram seis anos. Eu tinha esquecido dela. A música, não minha afilhada. O Vini resgatou. A música, claro.”

10) “Não Sei” (letra e música: Alércio)

Vini Albernaz: “Uma música muito curta, que acontece um monte de coisa. Foi toda construída a partir do violão e colando recortes de grooves de bateria – alguns que eu gravei no passado, outros tirados da internet e ainda alguns que toquei nos pads. Tudo recortado e sampleado, alternando sempre a métrica e a mixagem dentro do som. Esse é o grande barato da música, uma boa bagunça. Depois somada a vozes, baixo e ambiências ruidosas.”

Alércio: “Não sei é o vômito da tour de dezembro (aquela mesma em que nasceu a “Indiemainstrem”). Chegando em Pelotas, tinha me mudado de volta pro apartamento em que cresci, onde vivi dos meus dois até os 20 anos. Agora com quase 30. Depois de 15 dias de tour e SIM em SP, com um futuro breve de tour pelo Nordeste durante uns 40 dias, a partir do início de janeiro.

Muita coisa aconteceu, muita coisa por acontecer. Essa música é uma grande confusão. Tá no grupo das minhas músicas esquisitas. A ideia era que uma frase terminasse e começasse outra, com outro sentido. Na onda daqueles poemas que faltam uma sílaba da última palavra, e é a sílaba que começa a outra. Só que de um jeito deturpado. O encaixe é imperfeito, acho uma das graças da canção. Talvez a galera não perceba de primeira. Ou de segunda, ou de terceira. Ou lendo o encarte. Mas quem sabe? Eu não sei.”

11) “Um Oitavo Ou Terço” (letra e música: Alércio)

Alércio: “Uma simples canção de amor. Ou de possíveis amores.

“O amor é bucha eu sei”, bucha acho que é uma palavra bem regional. Usam bucha em outros lugares? Pra uma coisa que é dose? Que é braba? Que é complicada? Que é uó? “O amor é de lascar / e quando bate forte / já sei no que vai dar”.

Vai dar em confusão, em dedo no alto e gritaria, em coisas maravilhosas, em coisas imprevisíveis, em sabe-se-lá-o-quê. Aí eu faço, ou tento fazer, uma brincadeira com “Os três mal-amados”. Aquele lance do amor vai comendo metros e metros de gravata etc.

“O amor comeu meu rim / o amor comeu meu chão / o amor comeu minha pele / não sobrou nada não”.

Uma tentativa bem sintética. Ela foi gravada ao vivo, num take só. Na casa do Vini, com um B2 da Behringher, esse mic odiado por muitos profissionais e queridinhos de muitos indies da cena lo-fi. Eu tocando violão e cantando, com todas as imperfeições que isso implica.

O Vini ainda tocou ou ensaiou tocar uns pedaços de cello na segunda estrofe. Depois ele colocou um synth e deu uma zoada com uns pedais, tremolo, delay e por aí vai. Ela dá um respiro bom depois daquela confusão em um minuto chamada Não sei. O disco tem um pouco essa onda de montanha-russa.”

12) “Viu” (letra e música: Cuqui)

Vini Albernaz: “A primeira música que trabalhamos, a que deu direção pra várias questões, que deu alguns possíveis “nortes” pro disco. Fizemos a base ao vivo, lá em Vitória, ES. Cuqui no baixo, Apj na guitarra e eu nos pads, criando as batidas na hora conforme íamos desenvolvendo a estrutura.

É um som cheio de silêncios, partes diferentes e timbres, que cuidadosamente foram se evidenciando no decorrer do processo. Pra ter ideia, a gente começou por ela e ainda assim foi uma das últimas que a gente pôde bater o martelo e dizer: esse é o som, o som é assim.”

Cuqui: “Praticamente em parceria com a Wikipedia, essa música é bem informativa sobre as características do olho humano. Como pode uma coisinha redonda trazer pra dentro de um corpo tudo que está por fora, tudo que está na volta? Ninguém quer glândulas lacrimais em pleno funcionamento, só queremos que ela queira que a gente fique. Eu ainda não tenho certeza se as pálpebras são capazes de impedir que isso aconteça.”



13) “Do Infinito” (letra e música: Alércio)

Alércio: “Do infinito que não se é. Música escrita em 2015, pra ser uma vibe campo harmônico, acordes naturais, uma melodia comportada. Tem esse salto de oitava e depois vai se desenhando através da progressão harmônica.

A ideia pra ela sempre foi ser um som com pouca coisa. Num primeiro momento, era só um sintetizador bem grave fazendo a harmonia e as vozes. Eu fazendo uma “voz base” ou a “melodia original” e a Cuqui tendo a liberdade pra brincar, testar outras notas, costurar o desenho do som.

Depois o Vini deu a ideia da gente usar a guitarra só largando os acordes. Bem profundo, bem espacial, “mergulhar, em vias de leite, galáxias ausentes, qualquer ponta de vida amar”. A gente usou uma stratocaster  (com ênfase nas cordas mais agudas) e uma semiacústica (com ênfase nas cordas mais graves) soando simultaneamente, a música toda.

Encerrar o disco com profundidade e uma certa leveza. Com calma. A gente também muito cedo soube que ela encerraria o disco, pra ter essa vibe, essa onda. “Deixa ser o que se quiser, mas em paz.”

Cuqui aproveita para fechar o faixa a faixa com um bonito manifesto que resume bem o que o disco traduz:

“há quem diga que uma piscina vazia iluminada em pé não voa, mas eu vi cada coisa nessa estrada extensa que opções surreais se tornaram comuns.

avião parado, caminhão de ponta-cabeça, que o glamour realmente aconteça.

coisa louca é ter dinheiro pra um projeto, nós, que sempre fizemos sem.

dor de barriga, dor nas costas, que meus disco nunca fiquem bosta,

a responsa de uma carreira, coerência, continuidade,

que quase ninguém prefira o primeiro,

que ouse e evolua, mas não perca o âmago,

que mude mas não mude demais.

que cada recurso seja bem utilizado,

que alcance um pouquinho, que chegue, que espalhe,

que refazer o mundo é primeiro refazer a si.

que eu tenha tempo, vibe e comida na geladeira

pra compor canções a vida inteira.

que a minha verdade íntima seja entregue, compartilhada

que as lésbicas se sintam representadas,

que renda uma conversa,

que alguém sorria

que grude na cabeça e não saia.

todo mundo espera alguma coisa de um terceiro disco.

que hajam expectativas

e que elas sejam cumpridas.

que o espírito santo,

e que vitória

a[wo]men” – Cuqui

O Álbum Visual



Fiquem com o álbum visual que pudemos conferir suas projeções na parede da Casa Vulva e ouça o disco agora pensando em todas essas viagens que solidificaram as paredes cristalizadas deste disco tão cheio de universos translúcidos que o álbum da Musa Híbrida permeia.

This post was published on 30 de agosto de 2018 11:30 am

Rafael Chioccarello

Editor-Chefe e Fundador do Hits Perdidos.

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