Miêta mergulha no inconsciênte feminino em seu álbum de estreia
Nada como um dia frio e nublado para redigir a resenha de um disco tão cheio de angústia, dor, transformação, denúncias e gritos por emancipação. O eco de seus acordes magnéticos e shoegazers reverberam no horizonte e nos lembram por muitas vezes a estética noventista e todo seu contexto.
Das fitas VHS às polaroids, a energia consegue conversar com bastante dignidade daqueles anos onde “punk quebrou” e que bandas geniais como The Breeders, Sonic Youth, Bikini Kill, Sleater-Kinney, Veruca Salt, Babes In Toyland, Mazzy Star e tantas outras.
Ao mesmo tempo que a efervescência das bandas mais experimentais/grunge fervilhavam nos EUA, no Reino Unido tínhamos uma geração muito prolífera desde o fim dos 80 com ótimos nomes do que meio por ironia da crítica especializada foi chamado de “Shoegaze”.
Onde grupos como My Bloody Valentine, RIDE, Slowdive, Catherine Wheel, Cocteau Twins, Swervedriver, Galaxie 500, The Jesus & Mary Chain faziam um som que mesclava a neo-psicodelia com muita distorção de guitarras, microfonias e vocais obscuros. Os pedais e o flerte com o rock alternativo também eram marcas do estilo que para muitos era visto como “blasé”.
Como sabemos a música é cíclica e toda essa força noventista foi ganhando adeptos conforme os anos foram passando. Começando assim a pipocar diversas bandas interessantes para este revival como é o caso do DIIV, Whirr, The Pains of Being Pure at Heart, Beach Fossils, Wild Nothing, Wavves, Cloud Nothings, Oh Sees, Beach House e tantos outros que vem ganhando destaque e se consolidando com ótimos discos.
É sob todo esse contexto que devemos mergulhar em DIVE. O timing eu acredito que seja o perfeito para este lançamento não só em alinhar com o que está acontecendo musicalmente mas também por colocar temas urgentes em pauta. O disco mergulha nos medos do que é ser mulher em nossa sociedade, nos traumas, nas dores e batalhas diárias.
Não é de hoje que falamos sobre a Miêta no Hits Perdidos. Na primeira vez contamos um pouco mais sobre “Pet” o primeiro videoclipe da banda depois pudemos conversar sobre como foi a experiência de tocar no Festival Bananada.
Miêta – Dive (03/10/2017)
Desta vez vamos falar sobre o disco de estreia do quarteto formado por Bruna Vilela (Guitarra / Vocais), Marcela Lopes (Baixo / Vocais), Célia Regina (Guitarra) e Luiz Ramos (Bateria).
O álbum foi gravado nas casas de Célia Regina e Sandro Marte e no estúdio Tubo Cultural, em Belo Horizonte (MG). Gil Mello e Sandro Marte assinam a mixagem, Gil Mello a masterização. Já a bonita arte da capa foi feita por Anna Brandão.
O trabalho foi lançado pelos selos independentes PWR Records (PE) e Howlin’ Records (SP) oficialmente no dia 03/10.
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Após o lançamento do primeiro single da banda, “Room”, pude conferir a um show da Miêta no Breve ao lado da banda de dance punk Gomalakka ainda em Janeiro (Confira um vídeo da apresentação).
Uma das primeiras canções a tocar – naquele show – que me chamou a atenção foi a energética e porque não dizer dançante, “Messenger Bling“. Ela que chega de mansinho feito uma canção do Joy Division ou Stone Roses e carrega uma densa insatisfação em seus fortes versos, “He’s just right, isn’t he? / Popping in the right corner of my eye”, e explode de maneira obscura feito The Kills, Beach Fossils e Protomartyr.
O grande destaque do som é o entrosamento das guitarras que dialogam da introdução ao fim. O trabalho de texturas e atmosferas me lembrou de certa forma a maneira perfeccionista de grupos experientes como Brian Jonestown Massacre.
Os fãs de guitar bands vão com certeza ter como seu hit natural “Ages”. Faixa que com certeza vai deixar fãs de Dinosaur Jr. e Pixies querendo mais. O tema é pesado: o do descontrole, obsessão e aprisionamento; e já dá indícios do que será discutido mais para frente do disco em “Pet”.
Aquele grito que Kurt Cobain berrava em In Utero e nas composições que fez para o Hole – em seu início de carreira – são firmes e ecoam em “Math”. A sensação de sufoco, de se sentir ameaçado e perseguido é o norte da canção que fala sobre o pesadelo vivido por milhares de pessoas.
Estas que acabam entrando em relacionamentos abusivos sejam eles afetivos, de amizades ou profissionais. Mais do que isso, a canção fala sobre as consequências psicológicas destes. Uma frase que me marcou forte é “If I look around I see your face in crowds / And you make me feel like walking into a fucking nightmare”. Só consegui pensar em transtornos como a síndrome do pânico, borderline, ansiedade e depressão.
A sucção da alma entre outras consequências de lidar com psicopatas é registrada na literalmente densa, “Dive”. Essa que desmascara mais uma vez e toca na ferida dos relacionamentos abusivos. Principalmente em como a sociedade em volta quer julgar ao invés de estender a mão para ajudar. E esta dor por consequência é agravada, o que era um sufoco antes se transforma em um “nó” na garganta.
“Pets” foi o segundo single a ser lançado pela Miêta – e o primeiro a ganhar um videoclipe que foi dirigido por Jonathan Tadeu. O que me chamou a atenção justamente foi a energia surf/psicodélica da canção o que dá um punch diferente em relação as outras composições do disco, o que será uma grata surpresa para fãs de grupos como os cariocas do Beach Combers.
Na época pedi para a Marcela Lopes nos contar um pouco sobre a letra:
“Então, a letra fala sobre como somos condicionadas a abaixar a cabeça e aceitar. Aceitar ser podadas, silenciadas, em prol de um falso equilíbrio, de uma paz muda. Acho que toda mulher já passou por um relacionamento tóxico, seja amoroso, familiar ou mesmo de amizade, que limou suas individualidades e desejos até o ponto de cegueira total.
Porque temos essa criação que nos ensina mesmo a abaixar nosso tom de voz, a considerar as necessidades alheias a despeito das nossas, a questionar nossas próprias ambições. Fomos bichinhos de estimação da sociedade por muito tempo.” – crava Marcela
Uma das influências da Miêta se faz presente em “Room”. Não é a toa que a banda foi recrutada para tocar ao lado deles durante a turnê brasileira que aconteceu agora em Outubro no país. Estamos falando dos americanos do DIIV estes que ficaram muito honrados de ter tido a oportunidade.
Uma canção para baixar um pouco os ânimos depois de tanta explosão que o disco teve em sua parte inicial. As guitarras antes mais pesadas dão espaço a um ritmo menos frenético e calmo. A temática por sua vez ainda é pesada.
A canção parece falar sobre a impotência que o aprisionamento de uma relação nada saudável nos causa. Talvez por isso mesmo que tenha rolado esta baixada de poeira no ritmo do disco. “Room” também foi o primeiro single do grupo a ser disponibilizado.
Uma das gratas surpresas do grupo é justamente a única faixa em português do disco. “A Gente Não Consegue Terminar”. É daquelas para gritar do fundo dos pulmões nos shows. Capaz de tirar o sufoco da alma.
A letra da composição escrita por Marcela tem o calibre da densidade das composições de artistas como Jair Naves. O tempo é o senhor da razão e só ele para nos tirar de verdadeiras ciladas.
“Conto os dias, não acordo, eu ressuscito
Só pra poder dançar
Com os fantasmas das sentenças que a gente não consegue terminar
Alguns silêncios sempre dão um jeito de permanecer
Ecos em quartos vazios” – Miêta – “A Gente Não Consegue Terminar”
Algo interessante a se reparar na canção é a linha de bateria que flerta com o Stoner Rock, para quem não sabe Luiz Ramos também integra a Zonbizarro.
A fuga da responsabilidade por suas ações e suas consequências são dilaceradas nos poucos mais de 6 minutos de “Prejuízo”, uma das mais dolorosas faixas do disco. Esta que irá agradar fãs dos lados B’s do Smashing Pumpkins e fãs dos projetos de Kim Gordon.
“Am I Back” retrata o sufoco mais uma vez sob uma perspectiva um pouco mais otimista. A sensação de ganhar espaço e ser ouvido. Mesmo que em meio a um castelo desabando. Até a construção do baixo com delay da parte instrumental serve como argumento para a narrativa de desprendimento.
Quando você acha que o disco não vai te surpreender mais na última faixa “Soldier Boys” vemos o encontro entre o shoegaze e o blues com levada western. Ela é envolvente e mostra novos caminhos por onde a criatividade da Miêta pode correr livre. E desta forma se encerra Dive: colocando o dedo na ferida e exigindo respeito.
O grande trunfo de Dive, disco de estreia da Miêta, é conseguir mostrar através de um viés bastante feminino as dores, dificuldades, medos e inseguranças que uma mulher atravessa durante sua vida. É um disco denso, difícil e que se você parar para ouvir com a atenção necessária: sofre junto. Se corrói, se desgasta e quer ouvir mais a respeito. Algo que nas apresentações ao vivo se destoa já que o show é animado, energético, divertido e alto astral.
Mas se tem uma coisa que o punk rock nos ensinou é que a mensagem importa. Grupos como Jawbreaker e Fugazi conseguiam fazer shows explosivos e animados e suas letras tocarem em temas urgentes e densos. É por aí que o primeiro álbum da Miêta mergulha. Em tempos onde a mulher vem sim conquistando seu espaço mas que ainda precisa – e merece – sonhar mais alto. Sem superficialidade o disco encosta em temas que estão muito abaixo da ponta do Iceberg. Talvez por isso exija esse mergulho.
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