Maria Beraldo reflete sobre identidade de gênero e explora timbres em “Colinho”
Não parece, mas já se passaram 6 anos do lançamento de CAVALA (RISCO), álbum de estreia de Maria Beraldo. Uma das fundadoras da Quartabê, tendo integrado as bandas do músico Arrigo Barnabé, tocar com Elza Soares, e ter trabalhado em discos e shows de nomes como Negro Leo, Iara Rennó, Dante Ozzetti, Romulo Fróes, Lineker e Manu Maltez, além de mais recentemente assinar a direção musical das peças de Felipe Hirsch, e compor trilhas para diversos longa-metragens e para o Balé da Cidade, deixava todos ansiosos por saber qual seria o destino de seu próximo voo solo. Nesta sexta (18), Beraldo apresenta Colinho, registro de inéditas que reúne 11 faixas, sendo dez delas de autoria própria, solo ou em parceria, além de um samba de João Nogueira.
Se a liberdade, sexualidade, a saída do armário e a emancipação já permeavam o disco anterior, seu novo lançamento passa pela elaboração acerca de sua identidade de gênero não binária. Maria aproveita todo esse processo de descoberta e de aprendizado sobre si para criar uma narrativa digna de psicanálise.
Se em CAVALA a pluralidade de estilos, texturas e soluções sonoras em pouco mais de 24 minutos foram o grande destaque da estreia, Maria Beraldo consolida sua capacidade em pesquisar, timbres, efeitos e novas possibilidades em Colinho. Agregando ao seu leque referências musicais que permeiam os universos do funk, samba, pop, jazz, noise, eletrônica, folk e a canção popular e de concerto, tudo isso, sem perder sua aura punk transgressora, bom humor e uma boa dose de ironia.
Maria Beraldo “Colinho”
Ao todo o segundo álbum de Beraldo tem mais de 40 minutos de direção onde revela um lado mais confidente onde convida o ouvinte a compreender seus processos sob seu olhar de maneira leve, melódico, poético e reverberante. Explora os ritmos como combustível para falar sobre sexo e a sexualidade de forma leve e elevando a sua potência. Talvez seu respeito e universalidade que fazem dele tão empático, dos desentendimentos aos questionamentos, do calor a ressignificação da identidade.
O material reúne parcerias com Juçara Marçal e Kiko Dinucci (em “Baleia”), Zélia Duncan (“Matagal”), Ana Frango Elétrico (“Masc”) e Negro Leo (“Quem Sou Eu”). O material foi produzido por Maria Beraldo e Tó Brandileone e tem os instrumentistas Thiago França, Rodrigo Campos, Fábio Sá, Sérgio Machado, Marcelo Cabral, Chicão, entre outros, além de Tó e Maria que tocam inúmeros instrumentos. Beraldo, inclusive, assina os arranjos para cordas.
Assim como o mais recente álbum de Ana Frango Elétrico, o álbum faz um aceno e abraça a população queer em um momento imerso a muitos debates e quebras de paradigmas (leia mais em texto do New York Times).
Ao ouvir a faixa que abre o disco, que carrega seu título, você se depara com um funk quebrado envolvido num jazz anárquico e expansivo, que dialoga com as estéticas de discos contemporâneos que o selo QTV tem lançado, como, por exemplo, Mimosa (2023) de cabezadenego, Leyblack e Mbé.
Em “Baleia”, Beraldo tem a companha de Chicão, parceiro de Quartabê, no piano e Sérgio Machado, na bateria, mergulhando em um jazz que embora tenha tudo para ser melancólico, aproveita das curvas sonoras para falar de outras curvas, se é que você me entende. De forma intensa, textual e imersa no campo do prazer. Uma espécie de anticlímax cheio de clímax (e suor).
Melancolia, autodescoberta, olhar para a vida feito um filme p/b e devaneios são o norte de “Ninfomaniaca” que até poderia compor a trilha sonora do filme homônimo, de Lars von Trier, lançado em 2013, e com não só o pé como o coração todo na música erudita. Suas texturas eletrônicas e arranjos milimétricos, feito as trilhas de Trent Reznor e Hans Zimmer, deixam tudo ainda mais plástico.
Maria Beraldo foi buscar num trecho de James Baldwin no livro “O Quarto de Giovanni”, e foi batizada em homenagem ao personagem de Jorge Amado em “Mar Morto” referências para “Guma”. O conceito “mar-paixão” e todo esse naufrágio são explorados, ela ainda revela que a melodia foi inspirada em Frank Ocean em um jazz que vai beber da música clássica cheio de lirismo e questionamentos sobre a não-binaridade, entre conflitos autobiográficos e perguntas abertas de imersas em memórias que faz a si. O compartilhar de experiências tão universais que com certeza irão ressoar a quem se sente no mesmo lugar.
As texturas mais frenéticas e o lado mais divertido aparece em “Truco”, em que Beraldo faz um paralelo entre a violência e o sexo, o revide, as opressões, de forma com que sua voz acaba somando como um instrumento que se contrapõe a verve eletrônica em meia um sopro entalado. A faixa foi feita para o premiado “Regra 34“, de Julia Murat.
O jogo continua intenso em “Matagal”, faixa que tem a participação de Zélia Duncan, nela a falsa calmaria folk que até poderia entrar na trilha de This Is Us se equilibra com a tensão e o tesão em meio ao “jogo amoroso”. Primeiro single a ser oficialmente revelado, “I Can’t Stand My Father Anymore” é praticamente um hino riot grrrl moderno em todas as devidas proporções e recusa o colo do pai. Sua quebra rítmica, progressão de acordes, rebeldia ao falar sobre conflitos e abertura sobre a sexualidade ganham novas curvas em um jazz punk feito para quebrar além dos tempos: todos os paradigmas.
Do choro a redenção
“Crying Now” é daquelas feitas para te incomodar. Tanto pela sua estrutura jazzística, como também pela repetição imersa a angústia do choro que ganha curvas em todos os instrumentos de forma sistemática. A razão de termos tantas canções em inglês no álbum é justamente por Maria passar sua infância nos EUA e ter sido alfabetizada primeiro no idioma.
A canção onde os questionamentos sobre a não-binaridade aparece em “Masc” parceria com Ana Frango Elétrico. O verso “Inside my chest a little boy scrolls a bunch of scenes” deixa isso claro, referências para a dupla, versos de Milton Nascimento e Fernando Brant são homenageados em seu andamento. Entre as memórias e vivências compartilhadas, a sinceridade dos versos acaba sendo tocante em meio a uma odisseia que olha para dentro. Algo meio fotográfico feito o filme Boyhood.
“Quem Sou Eu”, parceria com Negro Leo navega no campo das descobertas e diálogo entre suas obras, entre o sonho e destruição, a parceria acaba ganhando uma beleza própria em diálogo direto com a canção “Jovem Tirano Príncipe Besta” (ouça a versão de SISO).
Encerrar com uma versão de um samba durante a minha primeira audição pareceu algo ousado, mas depois, ao reouvir, parando para pensar um pouco sobre toda a bagagem de Maria Beraldo, faz um tanto sentido. “Minha Missão, de João Nogueira, reverbera no espaço como o acolhimento e colinho merecido de quem percorreu durante toda essa odisseia com o choro embargado. “Eu vivo para cantar e canto para viver” resume o sentimento de forma delicada e cheia de amor.
E nada com um samba para chorar e ressignificar as coisas. A canção vai em direção dos sonhos, contra a tirania e todos que não saúdam a sua própria (r)existência. São 7 minutos para se emocionar e chorar largado na sarjeta.
Ficha Técnica
Colinho | Maria Beraldo
produzido por Maria Beraldo e Tó Brandileone
- Colinho (Maria Beraldo)
- Baleia (Maria Beraldo, Juçara Marçal, Kiko Dinucci)
- Ninfomaníaca (Maria Beraldo)
- Guma (Maria Beraldo – livremente inspirada em trecho de “O Quarto de Giovanni” de James Baldwin)
- Truco (Maria Beraldo)
- Matagal (Maria Beraldo) | ft. Zélia Duncan
- I Can’t Stand My Father Anymore (Maria Beraldo)
- Crying Now (Maria Beraldo)
- Masc (Maria Beraldo e Ana Frango Elétrico) | ft. Ana Frango Elétrico
- Quem eu sou (Maria Beraldo e Negro Leo) | ft. Negro Leo
- Minha Missão (João Nogueira e Paulo César Pinheiro)