Fontaines D.C. narra a morte de um “Romance” em seu 4° álbum de estúdio
Pode não parecer, mas o Fontaines D.C. chegou ao seu quarto álbum de estúdio. Em outros tempos isso seria normal, mas se trata do quinto álbum em 5 anos. Isso sem contar o álbum ao vivo, Live at The Kilmainnham Gaol, lançado em 2021 – e dois EPs. Romance, lançado na sexta-feira (23), pelas gravadoras XL Recordings e Partisan Records, para muitos já nasceu como um clássico instantâneo e alguns fatores ajudam a explicar tamanha euforia.
Desde que “Starbusrter” foi lançado na metade de abril, a expectativa era alta. Primeiro pela parceria com o renomado produtor musical James Ford do Simian Mobile Disco (Arctic Monkeys, Blur, Gorillaz, Depeche Mode, Pet Shop Boys, FOALS, Shame, Jessie Ware). Até por isso pairava a dúvida se o registro seria comercial a ponto deles perderem a identidade e verdade intrínseca do projeto, o que felizmente não ocorreu.
O que vemos foi muito pelo contrário. Os arranjos se encaixando, o aumento da técnica e de melhores escolhas na hora da produção somados a uma fantástica maturação do trabalho. Em entrevista para a NME o vocalista Grian Chatten até comenta que definitivamente ainda não fez o disco da vida. Mas se o sarrafo foi o mesmo que imprimiu em Romance, os fãs podem mesmo esperar a banda de Dublin escalar ainda mais posições nos charts. O que já aconteceu neste lançamento em que eles alcançaram suas melhores posições desde a fundação do grupo. Não que para uma banda de post-punk seja algo a se vangloriar, mas acaba se tornando um fato.
Ele mesmo revela na mesma entrevista a vontade de explorar seu talento como produtor, contando que amaria produzir alguns artistas que se identifica. Mas não em colaborar em um feat, mas sim, atrás das engrenagens. É o caso da cantora, DJ e rapper Shygirl. Grian ressalta ainda que o Fontaines D.C. não consegue expressar toda a complexidade e inteligência dos integrantes nos discos e que o universo deles é muito maior do que eles imprimem. E quem sabe com o tempo eles consigam materializar isso.
Já o baterista, Tom Coll, é filho de músico e apaixonado por música regional, tendo seu pai tocando até mesmo música tradicional e gostando desde cedo de samba, como revela em entrevista para o Scream & Yell (leia).
“James (Ford) foi realmente incrível. Nós meio que passamos alguns dias com ele antes de gravar o álbum em um estúdio no norte de Londres como um pequeno teste, uma espécie de sessão. Ele é incrível, cara, ele é como um cérebro musical. Ele presta atenção em cada minúcia de todos os sons.
Tudo para ele tem que ser muito afinado e tonal, então foi muito interessante trabalhar com ele. Sinto que esse trabalho é um pouco mais um ‘álbum de estúdio’ do que uma espécie de registro de uma banda tocando ao vivo em uma sala, então essa foi uma experiência muito nova para nós.”, conta sobre o processo em entrevista para Alexandre Lopes publicada no S&Y
No mesmo papo, Tom ainda ressaltou como as influências no novo disco apareceram: ““Romance” é muito mais inspirado por uma mistura entre vários tipos de flows de hip-hop combinados com o estilo vocal de Grian. Acho que o álbum como um todo é bastante inspirado no hip-hop. Também sinto que é bastante sujo. Estávamos todos curtindo muito Smashing Pumpkins, Korn e Deftones e coisas assim.”
O Processo do quarto disco
Romance começou a ser escrito durante a turnê europeia ao lado dos Arctic Monkeys e teve um longo processo de filtro. Quando retornaram a Londres ficaram durante um mês, de segunda a sexta, escrevendo todos os dias. Tom ainda conta que sente que tem um pouco de cada integrante em cada uma das 11 faixas.
O material foi gravado em Paris durante 3 semanas. Eles entraram em estúdio ainda sem terem finalizado 100% as músicas, terminando elas ali mesmo. Um processo que eles ainda não tinham vivido algo parecido. Em relação às composições, Grian escreveu quase todas as letras, com exceção de “Horseness is the Whatness”, feita por Carlos e “Sundowner”, por Curly.
A formação completa, além dos já citados, tem na linha de frente Carlos O’Connell (guitarra), Conor Curley (guitarra) e Conor Deegan (baixo). Nesse material as experiências com hip-hop e shoegaze, de grupos como Slowdive, são perceptíveis, assim como as referências de grandes bandas do rock alternativo dos anos 90 e 2000 (sim, o revival afetando eles). Definitivamente não é um álbum retrô, mas nem por isso o post-punk desaparece no horizonte, as faixas que utilizam do violão tem no fundo, algo de Echo & The Bunnymen, por exemplo.
Ao mesmo tempo que sinto que eles se descolam de propostas da cena do Reino Undo, como IDLES e Shame, por trilhar um caminho mais de rock alternativo de estádio, sem perder a identidade. O IDLES neste ano lançou TANGK que de certa forma também mostra que eles podem fazer mais do que ser apenas mais uma banda do revival do post-punk.
Tem sido interessante ver nascer outras bandas na própria Irlanda, como, por exemplo, o Gurriers. Lugares como a França e o leste europeu tem tido outros grupos explorando, sim, as ambiências dos anos 80, mas somando camadas de Noise Rock, Shoegaze e até mesmo flertando com o hip-hop, darkwave e a música eletrônica. Não é à toa que Tom antes do Fontaines D.C. tocava em uma banda de Math Rock.
Fontaines D.C. “Romance”
Como singles, Romance teve “Starburster”, uma canção mais longa que ganhou reconhecimento da mídia, sendo citada como uma das melhores músicas do ano por alguns veículos como Rolling Stone e Consequence. “Favourite”, talvez a mais atemporal do disco, levou outros públicos, não necessariamente envolvidos com o cenário, a conhecer mais sobre a banda de Dublin.
Grian, falou em entrevista por vídeo para a NME que “Favourite” tem inspirações em músicas intensas, marcadas por polaridades e marcantes como “There She Goes” (The La’s) e “Another Girl, Another Planet” (The Only Ones). Sempre pensando em como estas se tornaram atemporais.
Esse é um grande ponto de transformação na carreira do Fontaines, conseguir expandir o leque de sonoridades, e público que possa se envolver, mas sem perder a personalidade cativante e espontânea dos integrantes. Algo que sabemos que é muito difícil de acontecer, basta ver o que aconteceu com o Arctic Monkeys ao longo dos anos.
Poucas semanas antes de sair o disco veio “Here’s The Thing”, está em que eles revelam que foi composta do zero durante a gravação do disco. Aquela mistura experimental de sentir que aquele é o caminho. E acabou logo virando single com guitarras ásperas e referências do shoegaze. A última a ser revelada poucos dias antes do disco foi “In The Modern World”.
Talvez o que mais ligue o conceito do disco seja justamente esse sentimento universal e agridoce sobre os relacionamentos amorosos. De ter a noção que sentimentos belos podem chegar ao fim, mas sem deixar de valorizar a importância que eles têm em nossas vidas. Este lidar com a finitude das coisas, mas sem deixar de ver algo bom em tudo que vivenciou. Tudo isso, claro, visto de uma forma bastante poética e com muitas camadas sonoras.
Romance se faz vistoso e teatral desde a faixa título, onde a escuridão e as texturas ganham o protagonismo, um choque que Nick Cave sempre conseguiu fazer com excelência. O enterro de um amor de forma poética, tortuosa e voraz. Até brinco que “Starbuster” é uma grande brincadeira com trip-hop que deu certo. Lembrando até mesmo o jeito de rimar de Slowthai. Sua parte desacelera, final, é cortante feito uma navalha.
“Desire” é uma onde a lírica ganha mais evidência e os arranjos de cordas, feito uma orquestra, se relaciona com o jeito do The Smashing Pumpkins, compor, de fato. Principalmente na estética sonora de Mellon Collie and the Infinite Sadness (1995). Com incremento do flow do hip-hop em sua parte final.
“In The Modern World”, segundo o vocalista do Fontaines D.C. é a sua favorita. Eles relatam que a faixa é sobre um grupo fictício que caminha junto em meio ao Armagedom. Não é por acaso que ganhou uma produção audiovisual dirigida por Luna Carmoon para lá de disruptiva e repleta de conflitos físicos e emocionais.
Na parte estética, ela chegou bastante atemporal, assim como “Bug” com esse diálogo com clássicos, como Echo & The Bunnymen. É fácil se ver cantando ambas canções após ouvir algum par de vezes. Aquela atmosfera pop alternativa de grupos como R.E.M., também é notória. Tudo isso sob uma perspectiva muito irlandesa, assim como o The Cramberries, faziam com tanta destreza.
A estranheza, a poesia, o pop, o alternativo e a irreverência são marcas do disco que não tem medo de arriscar e procurar outros horizontes. “Motorcycle Boy” é uma das que mais notamos a capacidade deles abraçarem ambiências, intensidades, sem necessariamente utilizarem de guitarras cortantes. A poesia por si só dá conta do recado.
É em “Sundowner” que reparamos a influência do Deftones dentro do disco. Se o trabalho do grupo reverberou no TikTok, assim como o Korn, para as gerações mais novas, nesta faixa temos o encontro entre o hip-hop, o sussurrado, as camadas mais lentas e a intensidade do grupo liderado por Chino.
Particularmente, “Horseness Is The Whatness” é uma das minhas favoritas de Romance. Além de captar a essência do álbum, ela ainda tem arranjos de orquestra que lembram clássicos atemporais, como “Bitter Sweet Symphony”, do The Verve. Sua letra desabafa sobre o mundo. Sobre como lidamos com bagagens emocionais, a falta, mentiras e reflete a repeito do que é dito sobre o amor. A capa do disco ilustra essa música perfeitamente.
A dor em sua essência do fim de um romance fica ainda mais explícita em “Death Kink”, do perder o brilho nos olhos a se sentir aprisionado em meio a dependência emocional. Se parar para prestar atenção, seu instrumental dialoga muito com os trabalhos dos Pixies, mas com um humor meio The Libertines.
Fechar com “Favourite” é tão simbólico como contar toda a história da morte de um amor. Ela é daquelas que ouviremos em sequência pensando em diferentes amores que vivemos e viveremos, entre o sabor doce de estar apaixonado e o agridoce de saber que não vamos poder voltar para aquele ponto dos primeiros dias… independente do elo continuar. Acertar um hit pop é algo tão difícil, mas Grian, nessa você conseguiu.
Na entrevista para a NME, ele disse que eles querem muito vir para a América do Sul, onde até então nunca tiveram a oportunidade. Então espero que nosso encontro seja mesmo muito em breve.
Como o próprio disco diz em seus primeiros versos: “Talvez romance seja um lugar para mim e para você.” Não sei se a frase se encaixa a todos, mas quem nunca sentiu aquele frio na barriga que atire a primeira pedra. Sobre o disco, já nasceu como um dos clássicos do ano, e ainda temos um trimestre todo pela frente.