O quarto disco da carreira solo do músico, cantor e compositor Jair Naves, Ofuscante a beleza que eu vejo, chega hoje nas plataformas digitais. O material tem produção do próprio Jair ao lado do engenheiro de som Zeca Leme (BTG Estúdio) que já trabalhou com ele nos últimos trabalhos. Com o DNA da pandemia, o disco foi produzido de maneira remota com poucos encontros presenciais em estúdio.
O registro conta com 13 faixas e talvez seja o álbum com maior liberdade, tanto estética como de conceito da sua carreira, sendo experimental, com direito a ruídos, melodias, arranjos de piano e composições bastante íntimas, como de costume. A tristeza, da revolta e do medo que o consumaram durante os dois últimos anos, e também uma ressignificação sobre o momento, pautado nas consequências e no despertar para o futuro que está logo ali, ele crava em seus versos um lado crítico e existencialista mas sem perder a sobriedade e firmeza que o momento clama.
“Faz algum tempo que eu venho pensando em maneiras de usar as vozes de forma menos convencional, de tratá-las com a mesma mentalidade que dedicamos aos outros instrumentos. Ou seja, tentarmos coisas novas no que diz respeito ao tratamento dos vocais. O piano, assim como os sintetizadores e os elementos eletrônicos, vieram de uma vontade de ter uma autossuficiência maior enquanto músico, de não depender tanto do resto da banda para executar as minhas ideias, já que durante a maior parte de 2020 e 2021 não se cogitava reunir todo mundo sob o mesmo teto.
Comecei a estudar piano quando a pandemia estourou, e logo tentei desenvolver algumas ideias para músicas novas naquela linguagem. Como não é meu instrumento de formação, sinto que alguns vícios de composição que eu tenho quando pego um violão ou uma guitarra não aparecem. Foi bem libertador nesse aspecto”, revela Jair sobre a nova companhia do piano, dos sintetizadores e de estéticas mais soltas presentes em Ofuscante a beleza que eu vejo
Conversamos com o Jair Naves para saber mais detalhes sobre seu quarto álbum de estúdio, Ofuscante a beleza que eu vejo. O músico mineiro, que atualmente reside nos Estados Unidos, nos contou mais detalhes sobre o processo do sucessor de Rente, que começou com a divulgação do single “Irrompe” ainda em 2021. Ele ainda fala sobre temas sensíveis como o momento político, a nova aventura aprendendo a tocar piano, existencialismo e os reencontros.
Jair Naves: “Agora que o disco está pronto faz uns meses e eu consigo olhar para ele com um pouco de distanciamento, vejo que não foi exatamente uma escolha. Depois do “Rente”, acho que a minha intenção era tentar algo mais abstrato, menos direto, buscando tratar de outro tipo de conflitos, não sei. Acontece que, considerando tudo que aconteceu a partir de 2020, eu me vi empurrado nessa direção. Foi praticamente impossível ignorar tudo que aconteceu no mundo e especialmente no Brasil. O luto coletivo, a revolta, a incredulidade, a sensação de fim de uma forma de se viver e começo de outra, as consequências do fascismo, da opção pela ignorância, pelo discurso da violência…
Gostei da forma como você encarou esse material como um aprofundamento do que foi abordado no álbum anterior. Faz muito sentido, até porque os primeiros anos dessa década em muitas formas são um desdobramento da trágica escolha política feita em 2018. Hoje sabemos que é muito pior do que se imaginava, quão fundo esse poço é, quem são essas pessoas a quem foi entregue tanto poder, quais suas prioridades, enfim.
Eu ainda tenho dificuldade em aceitar muito do que acontece nos últimos anos, para ser sincero. Voltando ao luto que eu mencionei antes, bem presente na faixa que você citou, é como se estivéssemos todos presos em diferentes estágios desse processo. Perdão também é um tema recorrente deste álbum, não por acaso. Como se perdoa quem optou por algo com essas consequências? Pior ainda, quem continua apoiando essa vertente, consciente de tudo que se passou desde então?
Ainda assim, também vejo nessas músicas uma tentativa de dimensionar corretamente todos esses problemas, de enxergar o que há além disso, o que faz o ato de levantar da cama de manhã valer a pena. Bondade, amor, companheirismo, paixão, um senso mínimo de coletividade.
Jair Naves: “Religião é um tema fascinante para mim desde sempre. Por ser uma das coisas mais misteriosas que existem, por já ter visto formas assustadoras de comprometimento com a sua fé por parte de outras pessoas, por ser uma fonte de conforto em relação à morte de pessoas próximas e à nossa própria finitude, por eu não ter até hoje uma opinião formada sobre como lidar com a minha espiritualidade e ter um tipo de crença muito particular, que talvez para muita gente possa até ser considerada ateísmo, ainda que eu não me classifique como ateu… Enfim, as discussões que esse tema pode proporcionar são muitas.
Mas o lado disso tudo que mais está presente nesse álbum, e na esfera social e política do país nos últimos anos, é outro. Charlatanismo, uso da religião para fins políticos, controle das massas, enriquecimento fácil, exploração do desespero alheio. Não faltam exemplos desse tipo de uso de religiões organizadas no decorrer da história, mas o Brasil dos últimos anos é algo que não pode ser analisado ignorando esse aspecto.”
Jair Naves: “Desde “Irrompe”, a primeira música que trabalhamos para esse disco, eu tive em mente uma necessidade muito clara de usar narrativas paralelas nas músicas. Tanto nas vozes e letras quanto nos arranjos em si, deixando a parte percussiva mais descolada da parte harmônica, por exemplo. Quase como se os diferentes elementos das canções tivessem vida própria e não existissem apenas para dar suporte à melodia ou coisa assim. Quando eu penso em como me senti nos últimos anos, e estendendo para amigos e gente com quem eu convivi, uma das sensações mais presentes foi confusão, incerteza, quebra de expectativas. Creio que essa abordagem foi uma tentativa de trazer para as músicas esse estado de tremenda ansiedade, de conviver com vários pensamentos se desenrolando de uma vez só sem conseguir dar a devida atenção a nenhum deles.
Um motivo prático para o surgimento de colagens e etc foi a necessidade de uma autossuficiência maior do que de costume. Gravamos a maior parte dos instrumentais durante a fase mais crítica da pandemia. Muitas vezes éramos apenas eu e o Zeca Leme (coprodutor do álbum) no estúdio. Então sempre havia o questionamento “tá, o que podemos fazer agora que nunca fizemos antes?”. O Renato (Ribeiro, guitarrista e violonista) também esteve muito lá, mas raramente tínhamos alguém a mais. Quando precisávamos do Lucas (Melo, baterista) ou do Rob (Ashtoffen, baixista), sempre havia uma certa tensão de estarmos reunindo muita gente num lugar fechado, então chamávamos um por vez. Eles chegavam lá quase sempre sem terem ouvido nada das músicas anteriormente. Então também tem esse elemento de espontaneidade, de muitos dos arranjos terem sido criados praticamente de improviso.
Houve também essa busca por referências que fossem além do nosso repertório habitual. Especialmente música ambiente e o que chamam de hip hop instrumental e todo tipo de música feita a partir de samples. Um pensamento recorrente era “não vamos nos preocupar em como reproduzir isso ao vivo, vai saber quando vamos poder fazer show de novo” – ao contrário das outras gravações, em que eu me sentia na obrigação de soar o mais orgânico possível.
Curioso você ter visto elementos do “Fetch the Bolt Cutters”. Nunca pensei nele como algo que inspirou esse registro, mas faz sentido, já que é um disco que eu associo ao início da pandemia e um dos que eu mais ouvi em 2020, ano em que boa parte dessas músicas começaram a tomar forma.”
Jair Naves: “O piano sempre me encantou e, ao mesmo tempo, me intimidou muito. Ao contrário do violão e da guitarra, instrumentos em que eu desenvolvi uma abordagem de forma quase autodidata, bem intuitiva, eu nunca consegui lidar com o piano da mesma maneira. Foi preciso que viesse uma pandemia mundial trancasse todos nós em casa por alguns meses para que eu tomasse coragem e resolvesse estudar seriamente, diariamente, depois começando a fazer aulas e tentando compor com os poucos elementos que eu tinha.
Isso marcou uma nova fase para mim. Eu nunca estudei essa parte tanto quanto atualmente. Fico feliz em notar os pequenos progressos ou mesmo em me ver brincando com outros gêneros musicais que sempre me pareceram meio distantes, numa área em que eu achava que não era a minha. Sempre achei que era um compositor do tipo intuitivo, que um mergulho no estudo de teoria poderia inibir a minha criatividade, que poderia me dar a sensação de que o que eu faço é “errado”, um clichê errôneo que a gente pode se apegar. Não tão radical, mas um pouco como aquele negócio que o Orson Welles falou sobre como a ignorância foi a sua maior aliada quando fez “Cidadão Kane”, já que ele podia propor planos de câmera e lentes que ninguém usava já que não se importava em fazer algo longe do convencional. Felizmente, tenho notado que é o oposto disso. Me empolgo com as possibilidades que se abrem.
Uma coisa que eu sempre gostei nas primeiras músicas do Ludovic era o quão livre de amarras eram aqueles arranjos, muitos criados sem eu ter muita ideia do que estava fazendo. Quase como uma expressão sem filtros, desprovida de muita reflexão. Ou então a coisa do artista enquanto criança, que não se preocupa com nada além do bem estar que aquela criação proporciona. Quando eu tento criar a partir de um instrumento que é novo para mim, muito desse aspecto volta, o que eu acho ótimo.
Ainda assim, hoje em dia, quando me vejo na necessidade de evoluir e aprender o máximo no menor período de tempo possível para compensar um suposto tempo perdido, muitas vezes me pergunto se deveria ter trilhado esse caminho desde muito mais novo. Se por um lado eu gostaria de ter dedicado mais tempo ao lado teórico antes, por outro acho que a coisa toda do “faça você mesmo” e do punk rock me encorajou muito, sabe? Eu não esperei estar pronto, algo me deu essa gana de fazer minhas músicas com o que eu sabia e pronto. Talvez tudo tenha acontecido na hora certa. Pelo menos, é como gosto de pensar sobre muitas coisas na vida e também sobre isso.”
Jair Naves: “É difícil encontrar o equilíbrio entre encarar o tamanho da crise social, política, econômica e moral em que nos colocamos e o necessário exercício de mínima positividade para investir em qualquer futuro. Eu encaro esse álbum como a minha tentativa de transitar entre essas duas frentes. Cheguei a pensar em batizar esse disco como “Tão precioso é o novo dia”, mas achei que era direto e unidimensional demais para tudo o que é abordado nessas músicas.
Assim como é preciso olhar com algum entusiasmo para o que os próximos anos podem nos reservar, também temos que reconhecer o quão grave foi o erro de 2018, o quão problemática é essa relação com os militares e com o discurso de ódio, para que nunca mais voltemos a optar por essa rota.
Não tenho ideia do que será necessário para voltarmos ao estágio em que estávamos duas décadas atrás, mas acho que o momento é de extrema urgência, em que precisamos ao menos dar o importante primeiro passo para essa recuperação. É uma questão vital para todos nós.”
Jair Naves: “Tivemos um único show nesse período todo, em outubro do ano passado. Foi num teatro, estávamos longe da plateia, então ainda não deu para matar a saudade do tipo de apresentação que te coloca cara a cara com as pessoas. Lembro de ter estranhado o quão tenso eu estava antes de subir ao palco; além do nervosismo habitual, tinha toda a questão do risco que todos nós estávamos correndo apenas para poder voltar a presenciar a música acontecendo ao vivo. O momento atual é um pouco diferente, não sei como será quando chegar a hora de apresentar esse álbum ao vivo, mas estou ansioso para que chegue logo.
Eu não estava nesse show do E a terra…, mas pelo que você disse o Luden levantou algumas questões bem pertinentes nessa fala. Além do luto coletivo e do fato de termos passado por alguns anos extremamente desafiadores para a nossa saúde mental, tem todo esse ponto de como será o cenário da música independente no Brasil daqui em diante. Creio que a percepção de que se trata de uma comunidade, em que todo mundo tem a mesma importância (técnicos, casas de show, jornalistas, selos, artistas, público, enfim…) e que realmente precisamos desse senso de parceria, de cuidarmos uns dos outros da forma que pudermos, virou uma questão de sobrevivência para esse circuito. Não há condições para individualismo exacerbado, competitividade e etc. Como no que diz respeito ao restante do planeta, a ideia de coletividade se tornou vital também nesse contexto.”
This post was published on 20 de maio de 2022 11:38 am
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