Transquarto promove experiência sensorial em seu segundo registro
Ouvir música muitas vezes é um processo de imersão intenso. Muitas vezes você não controla como vai embarcar nesta viagem mas sabe que ela pode te despertar o seu melhor e (consequentemente) o seu pior. Não é muito bem uma escolha e sim uma maneira de se aceitar como você é. Como você chegou até aqui e como se sente hoje.
Tanto é que existem melodias e sequências rítmicas que podem te conduzir cegamente para distintas sensações mas nem tudo é tão frio e calculado assim. Talvez nisto esteja a magia de se permitir, de sofrer, relaxar, se irritar, se soltar, vibrar, transgredir. Porque no fim seja algo complexo ou simples você só quer espairecer depois de um dia exaustivo, depois de um trago ou um gole de cerveja e ir para bem longe.
Foi depois de um dia exaustivo e com mil pensamentos, entre sonhos e planos, que fui escutar pela quinta vez o EP da banda Transquarto. Ouvir o som da banda de Brasília (DF) foi quase uma experiência cármica para mim. Sabe quando parece que você já ouviu aquelas canções em outro tempo? Outra vida ou até mesmo feito um déjà vu? Não sei, simplesmente bateu uma conexão além das explicações deste plano.
Eu não estava no melhor humor para ouvir um disco e funcionou como uma dose de aspirina mas sem a parte ruim de depender de medicamentos (que sabe-se lá como são feitos e até onde fazem bem). Mas a música tem disso mesmo, né? Te abraçar quando você precisa de um conforto.
Meu primeiro contato com o som da banda foi com o single “Colombian Gold”. Através do videoclipe mesmo, e me encantei pela melodia e riffs daquele som. Muitas vezes ouvimos que as bandas precisam de um som para te convencer a ouvir o resto e foi bem por ai. Mesmo meu background sendo diferente, me senti abraçado.
Não sei apenas quis aquelas melodias como trilha sonora de um passeio tranquilo enquanto volto a pensar nas grandes e pequenas coisas da vida. Naqueles fantasmas e naqueles sonhos que corremos tanto atrás.
Fato é que depois parei para analisar toda a complexidade e o porquê de eu estar sentindo tudo aquilo e percebi: desde que comecei a ouvir todas as bandas que enviam material e todos esses backgrounds diferentes, eu mudei. E acho que todos devemos admitir que mudamos, as vezes em questão de poucos meses ou anos. Mudança é algo ótimo, sabe? Se não olhamos para a frente autormaticamente ficamos pelo caminho.
Daquelas coincidência loucas da vida, poucos dias depois do EP com as 5 músicas sair, Cidade no Ar, eu estava viajando para cobrir o Festival Cena Cerrado em Uberlândia (MG) e no momento que recebo o e-mail sobre o lançamento do registro, eu estava do lado do Tarso (Tecladista). Ele nem sabia do e-mail mas uma hora antes ele tinha me dito que além do Joe Silhueta tocava na Transquarto. Dei risada e contei do fato.
Semanas antes tinha indicado o mesmo clipe, “Colombian Gold”, para passar no Udigrudi da Play TV e ouvindo o EP parece que toda aquela viagem de 25 minutos me levou para diferentes lugares.
Tudo isso converge com a banda, já que a experiência transcendental tenta nos aproximar e reconectar com a natureza, com as antigas civilizações do continente americano.
A banda surgiu em 2015, Davi Mascarenhas e Pepy Araújo (3 segundos antes da queda, Enema Noise, Brown-há), através de um flyer na porta de um estúdio que anunciava um guitarrista a procura de parceiros. Depois viriam a se juntar Gata Marques (ex-Zéfiro) e Tarso Jones (Joe Silhueta, Rios Voadores). E as coisas foram se desenrolando.
No segundo semestre de 2016 eles lançavam duas canções através de um compacto. O desenho do que seria o primeiro EP começou a se formar e o que eles fizeram? Foram para a estrada, foram tocar.
Tocar em festivais, em cidades diferentes, pegaram o ritmo e isso foi ajudando com que suas criações fossem se aperfeiçoando. Segundo os músicos muitas vezes chegavam como desconhecidos e aos poucos de certa forma faziam com que fossem compreendidos. Se depois disso você ainda pensar que a música não tem o poder de conectar, amigo, repense.
Transquarto – Cidade no Ar (22/03/2018)
No dia 22/03 era lançado o EP com 5 músicas e cerca de 25 minutos de duração. Eles mesmos configuram o cenário por trás do registro um tanto quanto apocalíptico:
“A quarta revolução industrial está num horizonte de seis anos. Ela é o andróide, a inteligência artificial munida dos algoritmos da consciência coletiva, encarnada em automação. O domínio da boneca de silicone japonesa ligada na Internet, tudo ao mesmo tempo agora.
Nesse contexto, Cidade no Ar é uma película sonora sobre uma plataforma espacial urbana. Cada música ambienta um espaço da boemia local, onde distopia e evasão se combinam com a capacidade da vida de ainda ter esperança em um nevoeiro de fumaça sob as nuvens de bytes.”
O propósito deles é esse, gerar uma discussão sobre este momento confuso e ardiloso entre avanços e regressos. De transformações e de muitas vezes falta de humanidade. Seremos dominados por inteligências artificiais? São provocações válidas.
O disco foi gravado no estúdio Confraria, produzido e mixado por Pedro Menezes. Já a arte da capa foi realizada por Toscanini Heitor em cima da fotografia de Dinho Lacerda.
Dito tudo isso vou deixar falar todo o sentimento que senti ao ouvir cada uma das faixas. A pauta questionadora deixarei para o ouvinte chegar as suas próprias conclusões, assim como eles deixam em aberto.
“Mantra Magnética” começa feito uma invasão de O.V.N.I.S em plena madrugada, você sente o primeiro contato com a natureza. Por esse lado consigo voltar para o império Maia e todo sua riqueza de conhecimento e tentativas de se comunicar com um mundo além de nós.
Viagens à parte, a fusão de estilos combina o jazz, com a música psicodélica e o que tanto abreviamos como folk mas que na realidade é uma mistura de gamas sonoras passadas de pai para filho durante gerações. O resultado é imersivo e nos deixa livre para voar. As guitarras setentistas com o traquejo da bateria fazem com que podamos sentir uma calmaria espiritual. É revigorante.
Já “Lua Vermelha” cria toda uma atmosfera antes de se entregar a bossa. Os acordes mais calmos nos guiam em direção de um ato de renascimento, e nos mostram que estamos prontos a chegar a um novo ponto. Como tudo na vida, um novo recomeço. A lua vermelha no horizonte pode simbolizar para alguns morte mas para outros revolução.
O ponto alto da canção é o trabalho dos teclados que criam toda um contraste e conduzem a ópera da canção que passa por várias transições. É como juntar BadBadNotGood com Pink Floyd mas criar novas narrativas. Ao mesmo tempo que te da esperança, ela parece te questionar um monte de coisas. Ah, a música instrumental!
“Blues Rio” é um blues, mas um blues com a alma latina. Nada engessado e sim aberto a referências externas. Como todo o EP, você vê uma facilidade em transitar entre estilos e de te surpreender com viradas e novos elementos.
Quando você não espera mais a música cresce e fica energética com solos poderosos e teclado alucinante, empolga justamente por isso: por quebrar e subverter. É como se tudo estivesse perto de explodir e isso se traduz através de acordes derretidos.
A mais dançante e que traz um pouco do groove do funk do EP é justamente “Pororoca Cross”. Esta que assim como o ritmo das ondas, resgata a batida de ritmos tribais e latinidades. Sabe aquela música que consegue dialogar com surf music, funk, ritmos jamaicanos, blues entre outras coisas ao mesmo tempo? É para onde a música nos leva, se permita, se deixe levar.
“Colombian Gold”, por mais que eu já tenha contado um pouco mais das minhas impressões logo na introdução, consegue trazer uma leveza de espírito genuína. É realmente o hit perdido do EP e acredito que ela já ganhou espaço dentro da minha trilha sonora para meditar. Namastê!
O segundo material lançado pela Transquarto de Brasília (DF), Cidade no Ar, tem o poder de te levar para outros lugares, civilizações, momentos políticos ou planos. Muito disso pela leveza e pluralidade de estilos que abraça. Tem toda uma narrativa mística nestes acordes que podem sim dialogar com você de uma maneira bastante particular.
O som que flutua pelo jazz, bossa, psicodelia, blues, folk, surf, funk, ritmos latinos e nosso subconsciente pode sim nos trazer aquela paz de espírito que tanto procuramos no nosso insano dia-a-dia. Então é um registro que mesmo que você esteja num dia agitado onde nada parece estar dando certo: pode sim te ajudar a voltar aos eixos. Namastê!
Entrevista
[Hits Perdidos] Queria que contassem mais sobre as origens da banda. Como foi esse encontro e o que cada membro trouxe para a panela interplanetária da Transquarto?
Pepy Araújo: “A história da banda contém uma quantidade muito grande de acaso: a uns 7 anos atrás, eu estava estudando bateria numa escola perto da minha casa; daí vi um anuncio feito a mão procurando baterista.
Liguei no Davi e nos encontramos, mas na época eu estava com outros projetos e mentalidade e não rolou a banda.
Uns 3 anos depois, o Davi me ligou perguntando se eu não queria fazer uma jam com ele e outros brothers. A partir daí começamos a tocar juntos; na época o gatinha (meu amigo de infância) estava sem banda e começamos a tocar com um rapaz que ele tinha conhecido.
Chegou um momento que queríamos arranjar as músicas desse projeto com mais um guitarrista e como eu já estava tocando com os dois, sugeri esse encontro. Tudo deu certo e começamos a tocar na oficina de luthieria do Davi, com bateria reduzida tocando bem baixinho e com as músicas saindo de um lugar de alegria pura por tocar.
Em pouco tempo tínhamos as duas músicas que saíram no compacto e mais algumas. Foi o momento em que surgiu a ideia de chamar um tecladista e o nome do Tarso surgiu.
Tarso já tinha feito uma banda com o Davi no passado e isso contou na decisão dele de aceitar, eu acho. Já no primeiro encontro deu pra sacar que a sonoridade dele combinava com o que a gente estava fazendo. Feito isso passamos o resto do ano arranjando e lapidando as músicas pra fazer a gravação do compacto.
[Hits Perdidos] Antes do novo EP vocês já tinham lançado o Compacto lá em 2016. Mas vocês tem tocado em vários lugares do país, como acreditam que essa experiência tem agregado e ajudado tanto no entrosamento como nas composições?
Pepy Araújo: “Nós sempre acreditamos que uma banda de verdade não é somente boa no estúdio, mas principalmente ao vivo. Esse é o momento onde toda a racionalidade e capacidade de corrigir erros e maquiar performances ruins não pode salvar uma banda.
Esta tour foi uma excelente oportunidade de testar o que já estamos fazendo com sucesso em Brasília. Eu realmente sinto que as gravações, embora com uma qualidade decente, não conseguem capturar a energia da banda ao vivo, as jams, e principalmente a conexão que a gente forma com o público.
Nessa tour tivemos a oportunidade de tocar em várias cidades e diferentes contextos; isso nos colocou defronte situações onde as pessoas estavam literalmente pouco se importando com a nossa banda e após alguns minutos de show, essas mesmas pessoas já estavam completamente capturadas pela atmosfera psicodélica da nossa performance.
Quando voltamos para Brasília, notamos que não só as pessoas que geralmente vão aos shows sentiram uma diferença positiva, como a banda amadureceu a sua relação dentro do palco.”
[Hits Perdidos] Acho muito interessante isso de vocês não se prenderem a estilos e flertarem com muitos estilos como o jazz, a bossa, a música experimental, psicodelia, progressivo, blues, música oriental, soul e entre outras coisas. Como funciona o processo criativo de vocês?
Pepy Araújo: “Acho que a música instrumental tem uma capacidade de ser maleável muito maior do que a cantada. É muito difícil fazer boas canções em qualquer estilo, mas sinto que na música instrumental o grande trunfo é poder experimentar todos os estilos possíveis, até mesmo no formato canção, e ter uma diversidade maior e uma gama mais profunda de sonoridades pra contar histórias, fazer sentir ou fazer dançar.
Na maior parte do tempo alguém na banda traz um esqueleto, uma ideia, e partimos disso pra criar algo com sentido. Fazemos músicas in promptu, também. Tem dias que sentar no estúdio juntos faz com que as coisas simplesmente aconteçam.”
[Hits Perdidos] Vocês falam sobre uma quarta revolução industrial de uma forma apocalíptica, quase como Black Mirror, Blade Runner e até mesmo Minority Report, queria que contextualizassem o EP e suas inspirações, sabemos que o momento do país é tenso e a discussão política vai ganhar terrenos nos próximos meses. Como enxergam tudo isso dentro da arte de vocês?
Pepy Araújo: “A alegria é um ato político. É uma das formas de conseguir resistir ao assédio do pessimismo da comunicação em massa. É uma forma de resistência legitima, assim como a raiva é um excelente combustível contra as injustiças.
Nesse sentindo o Transquarto se propõe, na medida do possível, ser um espaço que permita às pessoas encontrar um pouco de sossego. Estamos no meio de um processo muito importante na historia da humanidade: uma crise de valores que aponta os limites nas estruturas e processos que apoiam a sociedade industrial.
Não existe como essa perspectiva não influenciar a forma como nós tocamos; mesmo que esse não seja o entendimento mais consciente em todas as pessoas. O grande ponto é que com o androide e a inteligência artificial operando, o que vão fazer com as pessoas?
Esse vai ser o momento que a tecnologia vai realizar o ideal iluminista da razão como salvadora do projeto humanidade ou será o começo de uma distopia estilo anime japonês?”
[Hits Perdidos] Queria que contassem mais sobre o clipe de “Colombian Gold” e toda a atmosfera que quiseram passar para o espectador. Como foi o brainstorm e o que esse som significa para vocês?
Pepy Araújo: “Colombian Gold” foi uma iniciativa do Tarso e do Alessandro Cabelo pra apoiar o single que queríamos lançar no final do ano, pra manter a anda girando um pouco mais sólida.
Nós tínhamos voltado da turnê DIY pra região sudeste e parecia bom esse movimento. Fizemos as filmagens no estúdio que ensaiamos, o Afra, e usamos imagens feitas na viagem e cenas que o cabelo tinha no arquivo.
A cena do sofá fizemos na casa do Tarso com a banda revezando a operação de papel colorido pra dar a sensação psicodélica das cores no cenário. Eu, particularmente, fiquei muito satisfeito com o resultado. (Um grande salve pro cabelo, que foi o roteirista/diretor/editor/idealizador!).
Honestamente nunca pensei profundamente sobre o que essa música em si significa, mas a primeira parte me traz um conforto, uma sensação goodvibe que me conecta muito na música jamaicana, apesar de serem três partes distintas.”
[Hits Perdidos] Para fechar queria que comentassem sobre a atual cena de Brasília.
Pepy Araújo: “O meu entendimento é que a cena de Brasília está passando por um momento de organização e diversidade único em relação aos últimos anos. O acesso à internet, os cursos de capacitação e, principalmente, os editais de financiamento público de arte tem permitido uma profissionalização do que é feito na cidade.
Existem canais de conexão das diversas pessoas que atuam em vários pontos diferentes da “cadeia de relações” do mundo da música. Além disso, as cidades tradicionalmente vistas como celeiros de artistas não tem exportando nada tão relevante ou diverso. Uma exceção a isso é Goiânia que tem uma das melhores, se não a mais organizada, cena no Brasil. A sensação que eu tenho é que Brasília está quebrando seu isolamento e começando a conectar os nossos artistas.”
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