Nãda faz uma “Folk epopeia” misturando viola dinâmica a guitarras distorcidas em “Foda-se”
As vezes a vida nos planta conflitos. Estes que se tornam desafios desgastantes, onde sua garganta se resseca e dificilmente você consegue enxergar alegria ou a tão bem dita: luz no fim do túnel. É como se estivéssemos na beira de um precipício e mesmo enxergando nuvens turvas – e relâmpagos eclodindo no horizonte – nos falta coragem para tomar uma atitude.
Isso não te torna especial. Porém não te torna menos que ninguém. Se a vida é uma constante batalha as vezes temos que olhar no meio daquelas nuvens escuras o nascer do sol. Ele que renasce todos os dias e nos dá motivo para persistir a seguir nossos sonhos.
Os desafios e dificuldades eles nunca deixarão de aparecer, mas a força interior para mudar o mundo ela certamente vive dentro de nós mesmos. Por outro lado nossa mente tenta por muitas vezes questionar nosso potencial. Questiona nossos sonhos e se não estivermos firmes: acabamos perto de nos atirar no precipício ou nos aventurando em escapismos e outras coisas – que além de não fazer com que nossos problemas sejam resolvidos ainda nos jogam em outros.
Então é preciso ter equilíbrio e não se abater após uma série de socos na cara. Lembrar que a luta é todo dia, que devemos acreditar na nossa capacidade, talento e força de transformar o mundo.
É desse gole que faz com que tenhamos força para persistir a subir a montanha e não parar. Engrenar na subida e pegar ritmo. Sim, a mesma parábola que nos põe para baixo pode nos elevar.
Pude conhecer o trabalho do Rafael Inácio, Nãda, ainda no começo de 2016. Ele estava lançando seu primeiro EP, O Que Você Vem Procurando. Este que resenhamos e pudemos entrevista-lo para saber mais sobre as origens e influências do projeto, sua procura e estudo da viola tradicional e vontade de se desenvolver como músico.
Posso dizer que gostei muito do trabalho, dos arranjos e personalidade que ele nos mostrou neste disco. Tanto é que tive a honra de poder contar com ele no tributo aos Titãs, O Pulso Ainda Pulsa, este lançado no mês de Agosto daquele ano.
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Uma das mais belas versões e uma das primeiras a esgotar os downloads disponíveis do tributo. O trabalho de reconstrução está ali entre viola e o peso da guitarra.
Um pouco mais de um ano e meio daquele texto chegamos aqui para falar sobre o EP sucessor de O Que Você Vem Procurando (2016). Este que carinhosamente – e ironicamente – recebeu o nome de Foda-se.
Rafael até nos conta que o nome tem como origem sua irritação e inquietude com o processo e preciosismo da indústria fonográfica e todas suas estratégias. Foda-se também porque este registro é um sopro de sua alma. É o querer de transformar passagens ruins em algo bom, verdadeiro e digno. Pouco se importando do que vão achar mas que para ele é algo belo e demasiadamente importante.
Nãda – Foda-se (22/10/2017)
Por mais que o nome possa sugerir um descaso com a obra o que ocorre é exatamente o contrário. A importância deste EP é um divisor de águas em sua carreira como músico. Por alguns momentos ele pensou que não poderia mais fazer o que ama. Para compor “Suíte 22”, faixa que fecha o registro ele diz que demorou 4 meses. Foi essa força e vontade de mostrar seu poder como compositor que o motivou a gravá-lo.
Os amigos também foram importantíssimos no processo. O registro conta com duas canções, além de “Suíte 22 temos “Mantra SHOF”. Esta que conta com a participação da banda de stoner de Volta Redonda (RJ) Stone House On Fire.
O EP foi gravado, mixado e masterizado por André Leal e Kleber Mariano no Estúdio Jukebox. Já a arte da capa foi feita por Thiago Fernandes e a edição de imagens por Igor Chiesse.
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A música caipira ainda se mantém presente no DNA do Nãda mas agora a experimentação com outros elementos místicos, psicodélicos e do oriente se fazem presentes. Além de Viola, Rafael se aventura a tocar guitarra. O lado imersivo no rock alternativo dos anos 70 dá espaço para um viés mais Zen e mântrico na mística e introspectiva “Mantra SHOF”.
Na faixa os integrantes da Stone House On Fire agregam na panela da viola cósmica com Marcus Oliveira (Lap steel) e André Leal, Kleber Mariano e Leonardo Moore na percussão. Inclusive André Leal e Kleber Mariano assinam a produção desta.
São quase 7 minutos de imersão pelo universo paralelo de nossa mente. A conexão astral se desenvolve através das epifanias da viola dinâmica e dos elementos xamânicos que a percussão traz para dar corpo a energia celestial emanada.
Ela consegue passar uma calmaria, leveza e dinamismo que é impossível não se “desconectar” deste paralelo. Em certo momento a distorção alá Rakta e Sonic Youth da viola parece soar como um “berrante elétrico”. A interessante progressão de acordes e pedais deixa a epifania ainda mais desenvolvida.
Assim chegamos a segunda canção e mais dolorosa do disco, “Suíte 22”. Ela como o próprio Rafael crava: “são nove movimentos instrumentais que retratam o dia a dia de um personagem que vive em conflito com o mundo criado em sua mente e a “vida real”. Cheia de significado esta demorou 4 meses para ser composta e é carregada de dores e envolvimento emocional.
Ela tem exatamente 14:25 é é dividida em nove partes. “Vinte”, “Caçando capivara”, “Folk nóia hightech”, “Sertanejo tarja preta”, “Keppra ou canabidiol?”, “Epilepsia”, “Vinte#2”, “Matimu x Gargamel” e “U dois”.
Esta que conta com participações especiais de: Bruno Giacomim nos teclados, Luiza Griman no baixo em “Sertanejo Tarja Preta”, “Keppra ou Canabidiol” e
“Epilepsia”, Frederico Griman nas guitarras em “Keppra ou Canabidiol”, Welington Gonçalves no violão slide em “Epilepsia”, Kleber Mariano na guitarra em “Matimu x Gargamel”, DJ Mauro Sub e Dani Magalhães contribuem nos barulhos e efeitos em
“Matimu x Gargamel”.
Com muitas transições a canção é praticamente uma opera rock da viola caipira. Fãs de folk metal talvez possam se interessar justamente por esta característica tão trabalhada. “Vinte” chega abrindo a odisséia de nosso personagem que já esbarra com a dor de seus conflitos. Caso goste de “Run to The Hills” do Iron Maiden talvez se identifique com essa parte da canção.
“Caçando Capivara” já tem uma energia mais vibrante e feliz. A guitarra dá corpo e parece estar a galope atrás do tal bichano. O tom sinfônico volta em “Folk nóia hightech” esta que traz mais barulhos e sinfonias. A preocupação com as texturas e a sensação de estar andando em círculos mostra todo o sofrimento que a canção carrega.
“Sertanejo Tarja Preta” já começa com o sertanejo de raíz firme e a ambiência dos barulhos trazendo as trevas. Ela por hora parece dançante e confusa, nosso herói se vê num “conforto” provisório. As linhas densas de baixo dão todo esse desconforto e você sofre junto. A angústia está presa no pé dele feito uma âncora, e a saída para este nebuloso cenário parece ser difícil.
Assim entramos na nebulosa sequência “Keppra ou canabidiol?”, “Epilepsia”, “Vinte#2”, “Matimu x Gargamel” e “U dois” que juntas criam uma narrativa mais conectada. Esta que tem ainda um pouco das trevas mas que carrega um lado mais leve. A epopeia me remete ao filme de Lar Von Trie, Dogville, e nos mostra como tudo acontece em círculos. Ad Aeternum. Tudo se repete e aquele relaxar passageiro pode ser visto como apenas um “escapismo”.
A harmonia também me lembrou bastante os discos do Nirvana, pelos seus arranjos mais detalhistas e cheios de dor. O peso das guitarras explicitam todo esse lado e transformam a dor em um grito que reverbera com o ecoar das paredes.
O segundo EP do Nãda dói feito um tiro no peito, causa estranheza feito um disco do Radiohead, carrega uma energia transformadora e tenta achar uma luz no fim do túnel. Mesclando a viola dinâmica a percussão xamânica ou elementos disruptivos ele caminha para contar uma história de dor, perseverança, vontade de sonhar alto e conflitos. É tudo muito intenso e é desta intensidade que faz da obra algo tão verdadeiro, honesto e puro. “Foda-se” vem para apontar que os caminhos criativos que uma viola – e a música instrumental em si – consegue trilhar são vastos e ainda tem muito a ser explorado.