[Premiere] Feito uma bomba relógio, Sheila Cretina perde o controle em “Vol. II”
Gostaria de começar esta resenha citando uma resposta do The Clash a um jornalista que ousou dizer após um show deles que eles deveriam voltar para a Garageland. O crítico em questão era Charles Shaar Murray, da NME.
“The kind of garage band who should be returned to the garage immediately, preferably with the engine running, which would undoubtedly be more of a loss to their friends and families than to either rock or roll.”
Foi essa faísca que fez com que uma das composições mais debochadas e cheias de vida do álbum de estreia do Clash ganhasse vida. A letra é uma clara crítica cheia de sarcasmo e ironia.
“Back in the garage with my bullshit detector / Carbon monoxide making sure it’s effective / We’re a garage band / We come from garageland ”
Este causo mostra também um pouco sobre como a crítica era algo relevante e as bandas de certa forma ouviam. Mas por outro lado mostra o espírito garageiro que foi seguido por inúmeras bandas em termos de atitude, colocar a cara para bater e não esperar um tapinha nas costas como consolo.
Temos tantos exemplos como o The Oblivians, Jay Reatard, The Cramps, Rocket From The Crypt, Forgotten Boys, Eagles Of Death Metal, Thee Butcher’s Orchestra, The Sonics, The Dirtbombs, The Gories, Los Saicos, The Dwarves, The Human Beinz, The Stooges, Guitar Wolf, The Black Angels, Black Box Revelations e tantas outras para provar isto.
O ponto que eu quero chegar é: estes artistas nunca abriram mão de sua autenticidade em detrimento de sucesso a qualquer custo. Se alguma ou outra se destacou mais foi pois o público deu o devido valor a audácia. E a química da garagem é esta, coloque fogo em tudo e veja o palco ferver.
Não, não há problema nenhum em ser da garagem, como não há também em fazer algo mais comercial. Mas seja você mesmo. Acredito que o Joe Strummer concordaria e por isso que ele daria uma chance para ouvir o novo disco da Sheila Cretina.
O espírito urbano, canalha, ríspido, agressivo e porque não dizer BOMBA RELÓGIO que é o fio condutor da engrenagem do segundo trabalho da Sheila, Vol. II. Ansiedade, bipolaridade, depressão, colapso mental e distorção são elementos que não poderiam faltar no disco dos caras.
Rock de garagem é isso. É problemático, é epifania, é sangue nos olhos e muitas vezes não tem o cenário zen ou perfeito por trás. E tudo bem, sabe? Porque não é feito ou materializado para isso. Se fazer um disco é sofrer, esta é a maneira que este tipo de som escolheu e fez sua casca.
Casca grossa. Feito nossos nervos de aço tendo que lidar com as situações do dia-a-dia. Nossas expectativas, o que a sociedade espera de nós, nossos medos, nossos karmas, nossos erros e nossos murros em ponta de faca.
A Sheila não vem para agradar mas sim para se divertir. Quem já pôde vê-los ao vivo sabe da energia que sai do palco, seja um bom show ou um regular você consegue sentir aqueles ións das partículas do motor garageiro em dispersão. É alta voltagem. Não dá para esperar algo certinho ou que te afague. Esta é a graça da parada toda, é inflamável!
Sheila Cretina “Vol. II” (01.09.2017)
Apertem os cintos, aí vamos nós!
A Sheila em sua formação conta com Gustavo McNair (voz e guitarra), Rodrigo Ramos (guitarra e vozes), Jairo Fajerztajn (baixo e vozes) e Caio Casemiro (bateria). O segundo disco da história da banda foi gravado por Billy Comodoro no Estúdio Aurora e teve sua capa feita por Ana Arietti e Manéu. O Vol. II vem para suceder o Vol. I lançado em 2011.
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É visceral, tudo é muito rápido e em pouco mais de 25 minutos lá se foram 10 faixas. Todas elas com nomes de numerais, e fora de ordem lógica, o que de certa forma já te deixa um pouco ansioso para ouvir o conteúdo das faixas.
O álbum ainda conta com uma série de participações especiais: Gabriel Thomaz e Erika Martins em “19”, Renato Joseph e Piettro Torchio nas faixas “15”, “16” e “17” e Pedro Gesualdi em “17”.
O álbum se inicia com a faixa “11”, esta com um tom western que carrega aquele espírito rock forasteiro típico do garage punk. Aquele mesmo dos inferninhos de NYC.
No tom de sua ríspida letra, o lado monstro e freak show da cidade é percebido na maneira com descreve a soberba, decadência e as aparências que a cidade vive. Mais precisamente seus habitantes, Carpe Lobem já diriam os Lombas (Lomba Raivosa).
O sentimento de paranoia e auto preservação está presente em “15” que carrega influências dos anos 50/60 mesclados ao punch de grupos como o The Hives, Stooges e Replicantes. É desordeiro, é caótico mas não perde o compasso. Aguentar o vai e vem da cidade sem perder as estribeiras, ou sendo realmente irônico ao afirmar isto.
Na sequência temos a “sangue nos olhos” e instrumental “18”. Cheia de fuzz e quebras ela consegue passar sensação de busca por um refúgio para se esconder. Mesmo tendo um pouco mais de dois minutos ela se divide em dois momentos, um mais “porradeiro” e outro mais lo-fi. Como se eles estivessem tentando frear uma locomotiva de emoções. Uma boa canção para fãs de Radio Birdman, Death – a banda punk – e Minuteman.
O caos explode em “12”, a mais rude e casca grossa do álbum. Com peso nas guitarras balanceando com o baixo no talo, o tom é tão visceral como os discos PoPs do Emicaeli e Amor Só de Mãe do Giallos.
Ela retoma mais uma vez ao tom nova iorquino dos Dead Boys e New York Dolls em buscar linhas mais ríspidas e agressivas para falar de um tema que está em alta principalmente nas redes sociais – e rodas de amigos – ter que ser dono da razão a qualquer custo.
Esse tom crítico da rotina me lembra um clássico do punk rock brasileiro, “Dia e Noite” do Cólera – faixa presente no álbum Caos Mental Geral (1998) que ao meu ver dialoga bem com a temática do disco da Sheila Cretina.
O lado pervertido vive em “16” que deixa claro através de sua letra, suas intenções. Para acompanhar claro que o tom teria que flertar com guitarras flamejantes que flertam com o stoner e o hard rock.
A sexta canção, não perca a conta, é “10”. Essa que aposta em suas quebras que flertam com o punk rock e hardcore. Me lembrando grupos como Minuteman e Dead Kennedys.
A letra apesar de curta, é direta e reta. Rebate sem frescura as “pequenas” farsas e máscaras sociais que vestimos para – tentar – mostrar que é bem sucedido. Sendo que muitas vezes está bem longe de ter algo para se vangloriar. Situação que certamente já devem ter presenciado algumas vezes na vida.
Chegamos a “20”. Esta que é dançante e passa sensação estar derretendo, perdendo o controle ou assumindo riscos. A interpretação fica aberta ao ouvinte e esta é exatamente a graça de uma curta faixa instrumental no meio do disco.
A faixa que mais gostei, em questão de letra, é o murro na cara que “13” nos dá. Aquela paranoia que toda reflexão nos leva e de certa forma nos põe num labirinto de pensamentos ruins. É a perda do controle em um nível já clínico. A letra no detalhe:
“Que saco que eu não puxei?
Que bolso que eu não molhei?
Que teste que eu não passei?
Que mutreta que eu não entrei?
Que contrato que eu não assinei?
Que mão que eu não apertei?
Que nome que eu não herdei?
Que festa que eu não fotografei?
Que briga que eu não comprei?
Que linha que eu não andei?
Que destino que eu não tracei?
Que sucesso que eu não lancei? – “13” – Sheila Cretina, 2017
Fica impossível você não mentalmente tentar responder todas estas perguntas que nos levam para um universo pesado, auto-crítico e hostil. Típicos pensamentos que um cidadão entra quando deita sua cabeça sobre seu travesseiro após mais um dia estressante de trabalho.
Ainda se levantando do buraco que “13” nos joga entramos na “Lust For Life” do disco, “17”. Essa que a ira está nos gritos de “hey” e seu comando está na mão do além. É 1:23 de euforia e desespero.
Quem tem a missão de fechar o álbum é justamente “19”. Que chega com uma guitarra envolvente logo em sua introdução e senso de humor alá Titãs. Versos sarcásticos, tom debochado e rock’n’roll sem papas na língua. É o ápice da perda de controle que escorre sobre as distorções e poder de autodestruição da canção.
Tiros para todos os lados, loucura e combustão. O Vol. II da Sheila Cretina é apocalíptico desenfreado, ferroz, problemático, fugaz, descompensado e um pedido de ajuda. Mas calma, estamos falando sobre os temas debatidos no disco que são justamente os transtornos mentais que 1 a cada 3 habitantes de uma grande metrópole tem que conviver.
De certa forma o álbum destrincha esses problemas com muita distorção, barulho e raiva. As influências são do rock de garagem, punk rock, rockabilly, stoner e alternativo. Toda essa carga ainda é somada a letras ácidas que tem o poder de te colocar direto na vala. É inflamável, é violento, é vivo, é de carne e osso. Tão vivo que isso justifica toda a atitude punk em expor estes problemas da maneira com que eles são expostos. O deboche ainda dá um tempero extra para toda essa combustão que só um disco de garagem consegue agregar sem perder o controle – ou o perdendo completamente.
Show de Lançamento
O lançamento digital está sendo feito hoje porém o show de lançamento acontece no domingo (03/09) na Associação Cultural Cecília e contará com algumas surpresas e participações.
Nas pick-ups por exemplo teremos Gabriel Thomaz e Érika Martins do Autoramas, e do Norton Wells da Setzer Loja. A entrada é gratuita. Para mais informações confira o evento oficial.