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Raça explora novas frequências numa espécie de sessão de terapia coletiva em seu 4° álbum de estúdio “27”

Após lançar os singles “144“, “Nem Sempre Fui Assim” e “Debochado (feat. Carlos Dias)”, o Raça no dia 27/08 lançou seu quarto álbum de estúdio, 27, pela Balaclava Records.

São mais de dez anos de estrada do grupo, formado por Popoto Martins Ferreira (guitarra e vocal), Thiago Barros (bateria), João Viegas (teclado e vocal), que foi responsável pela produção do álbum ao lado de Roberto Kramer e tem o conceito do disco elaborado em conjunto do artista plástico e tatuador Lucas Peixe, cuja pesquisa acadêmica sobre pipas e tatuagens ajudou a nortear as canções. Inclusive, a capa do disco e dos singles é assinada por ele.

Ao todo o material reúne 14 faixas e traz consigo um novo olhar dos integrantes, muito disso por sua pesquisa e imersão sonora em universos em que eles não tinham explorado ainda, como os dos anos 70 no Brasil. Entre eles artistas como Jorge Ben, João Gilberto, Rita Lee, João Donato e Ana Mazzotti.

“Música e banda sempre foram unha e carne para mim, imagem e som. Durante a pandemia, me distanciei do rolê de banda. Não fiquei pensando em fazer live, escrever disco nem nada. Comecei a escutar bastante voz e violão, canções que emocionam, são atemporais, podem ter várias roupagens diferentes, interpretações. Pela primeira vez me apaixonei por música e não pelo rolê”, comenta Popoto Martins

Além do recorte de referências, eles convidaram artistas como Gab Ferreira, Dada Joãozinho, Marina Nemesio e Maurício Takara para colaborar. Também participa o argentino Gal Go, conhecido por seu trabalho como integrante dos ingleses do King Krule. O hermano participa do feat na faixa “Eu Penso” que também conta com os vocais da produtora SHEIVA.


RaçaFoto Por: Fabio Ayrosa

Raça 27

“144” faixa que abre o álbum, lançada ainda em novembro de 2023, reflete sobre diferentes conflitos que passamos na vida e de repente, mesmo ficando para trás… não se resolvem… seja por orgulho ou por inação… aquelas desculpas que inventamos para nós mesmos, deixando as mágoas, por sua vez, pelo caminho.

O que solidifica um sentimento ruim na memória feito um amargo no canto da boca. E às vezes elas nem fazem mais sentido… mas continuamos a alimentá-las feito um monstro imaginário que vive debaixo da cama. Em seu instrumental tem guitarras melódicas com referências de grupos como Built to Spill justamente para colocar o ouvinte dentro da nostalgia proposta por sua letra.

“Debochado” foi o último single a ser lançado e tem a parceria mais óbvia do mundo. Lembro que em um papo informal com o Popoto, ainda no fumódromo do Breve (que deixou saudades), após um show, perguntei se ele já conhecia o Carlos (Dias) do Polara, pois para mim o som das bandas sempre se relacionou. Na época disse que não. Então ver esse feat acontecer tem um sabor por aqui ainda mais especial. De quebra, o Carlos, que é artista plástico, ainda assina as artes deste single e escreveu alguns trechos da canção.

“O Carlinhos sem sombra de dúvidas é uma das maiores referências que tenho no mundo da arte, além da escrita ser uma das que mais me identifico. Considero ele um baita artista plástico, o que pra mim faz muito sentido, pois também sou artista visual, então acabei encontrando um exemplo prático de artista que transita entre as duas áreas.”, pontua Popoto

A ânsia de querer fazer o que move e o freio de mão de se sentir perdido, em meio a problemas alheios, que nos tiram de foco em resolver nossas próprias incoerências e ajustes necessários para seguir em frente, ganham versos que soam como um grande desabafo de quem está já perdendo as esperanças. Sempre penso que as músicas do Raça tem um pouco disso. De servirem como uma conversa de bar com um amigo que não vemos há tempos. Seja simplesmente para ouvir um desabafo ou para encaixar feito um abraço.

O elo da amizade

Em “Que Besteira” parece que a chavinha vira. Aqui as referências do violão e da verve cancioneira dos artistas brasileiros dos anos 70, entram em cena. Com melodias e sintetizadores guiando a narrativa, o perdão e a empatia reluzem no horizonte feito um mini-sermão.

O papo de “Amizade” parece que feito uma pipa que por acaso é um dos elos do disco ganha o céu azul. De certa forma ela dialoga com “144” feito uma história que teve um começo, um distanciamento e as pazes feitas. Uma faixa que celebra os amigos que fizemos pelo caminho, sem tirar nem por.

“Conserta” talvez seja a mais “Ombu” do disco e deixa seu flerta com a música brasileira evidenciado. Não que isso deixe as guitarras distorcidas pelo caminho, muito pelo contrário, mas com aquele swing que aprendemos a ouvir nos discos. “Se Ama” começa com teclas um tanto quanto Guilherme Arantes. Sua letra inclusive parece uma sessão de psicanálise.

Saber envelhecer é o tema de “Tudo Bem”. Se permitir brincar, sair dos vícios do cotidiano, sejam eles químicos ou pelo trabalho, aparecem ao longo da narrativa. Aquele papo reto de não deixar perder o brilho no olho. A analogia do brincar também tem o lado do porquê ter uma banda por tanto tempo em um mercado tão difícil, ou então, porque cultivar aquele futebolzinho de meio de semana para espairecer. Simples e necessário… feito um conselho de amigo.

As marcas do passar dos anos

“Tatuagem” que até está presente na capa do disco, faz analogia sobre justamente as escolhas que fazemos e não tem volta. Das marcas que vemos com o tempo que não necessariamente precisaríamos ter feito, mas que aprendemos ao longo do tempo a conviver com elas… mesmo que estas tenham um preço alto. Funciona feito um alicate quando cortamos a corda e ajuda a colocar uma pedra no passado para que assim podamos, em paz, viver novas coisas.

Com uma dose de nostalgia, e outra um tanto de fazer as pazes, a volta ao passado e os ensinamentos de tempos mais leves, conduzem a letra de “Nem Sempre Fui Assim”. Para tudo ganhar ainda mais corpo, entre cores, pipas e o ensolarado, a faixa chega acompanhada de um videoclipe dirigido por Isadora Veríssimo e com roteiro do próprio Popoto.

Como locação eles tiveram a cidade de Osasco, mais precisamente o festival de pipa da cidade, que reúne milhares de empinadores de diferentes idades. Esse lado artesanal, todo moleque, de lidar com a identidade dos materiais da banda no modo faça você mesmo também marca o fim de uma era importante dentro do ecossistema do Raça. A despedida do apartamento do baixista, onde as artes dos encartes, flyers, estampas de camisetas e outros artifícios eram confeccionados.

“Compus esse som quando saí do apartamento onde fazíamos tudo da banda – merch, música, reuniões e rolês, então senti que um pedaço de mim ficou naquele lugar.”, completa Novato

Talvez por essa sensação de se perder para se encontrar, a sonoridade traz consigo essa carga nostálgica emocional com direito a guitarras acachapantes e um redemoinho de memórias. O material será o primeiro a ser lançado após amargos anos de uma pandemia, onde muitos sonhos foram esfacelados e isso parece estar somatizado na energia do seu instrumental. Essa vontade de ir para fora, de ver gente e de se conectar com as coisas simples da vida.

“A urgência das letras sinceras, por vezes até ásperas, acompanhadas das guitarras barulhentas, convidam para o show, onde o clima é visceral e o público canta a plenos pulmões.”, conta Popoto 



Ares vanguardistas

“Eu Penso”, como dito antes, conta com a participação do saxofonista argentino Gal Go, do King Krule. A faixa em espanhol também tem vocais da SHEIVA para dar toda a atmosfera mística da canção. Acaba de certa forma funcionando como um interlúdio para a parte final do disco.

Feito uma música onde a poesia se sobrepõe, como as canções de Arnaldo Antunes, “Gana” chega acompanhada de feat da Gab Ferreira. A garganta que precisa de desafogo, o que muitas vezes freia da vida acontecer (oi, terapia), traz consigo o sentimento de impotência que transparece em uma canção com ares de vanguarda paulista.

“Esse Sonho” encoraja quem escuta a seguir atrás dos próprios sonhos. Aquela história de não se guiar pelos sonhos dos outros. É um tapa nas costas do “vai lá e faz”. E quantas vezes precisamos ouvir isso ao longo da vida, pois é. Já chegando no fim, “Expectativa” lida de forma suave com o problema da ansiedade que ela traz consigo, e talvez por isso, bata na tecla sobre a necessidade de se perdoar. A faixa conta com participação especial de Marina Nemesio.

A memória dos bons tempos para ajudar no levantar da cabeça e que a vida pode, sim, ser boa ganha o holofote em “Humano”. A importância de colocar (mais) peso nas conquistas e não se pendurar em frustrações para que a nuvem ruim passe quanto antes. Se o disco começou como uma sessão de terapia, a mensagem final é de otimismo. Mas não o tóxico que fique bem claro.



Ficha Técnica

Capa
Foto: Camila Tuon
Arte: Lucas Peixe
Design: Popoto Martins

Fonograma
Lucas Calmon/Novato: Baixo e Voz
Marcelo Martins/Popoto: Guitarra, Voz (corais)
Thiago Barros: Bateria
João Viegas: Sintetizador, Voz (corais)
Santiago Obejero Paz: Guitarra, Voz (corais)
Pré-Produção: João Viegas
Produção Musical: Roberto Kramer
Mixagem: Roberto Kramer
Masterização: Fili Filizzola
Produção Executiva: Gabriel Miranda
Selo/Lançamento: Balaclava Records

This post was published on 4 de setembro de 2024 10:00 am

Rafael Chioccarello

Editor-Chefe e Fundador do Hits Perdidos.

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