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ChromaKitsch apresenta o multifacetado, eletrônico e experimental “NaoSomosRobos”

ChromaKitsch lança álbum de estreia pelo selo Mercúrio Música

Música, poesia, cinema, teatro, artes plásticas, moda, comportamento e as experiências de toda uma vida. É este o DNA de um projeto que mistura festa, epifania, futuro distópico, paradoxos, música de diferentes periferias do mundo e resistência. E pensar que se não fosse o isolamento talvez George Belasco (Cão Andaluz) não tivesse se aliado ao poeta Lenildo Gomes, conhecido pela poesia concreta e ruídos caóticos com o grupo dronedeus, e a artista Lara Monteiro, em um projeto cearense onde o encontro entre as artes se faz presente do começo ao fim.

Ainda como trio, em novembro de 2020, veio o EP Kamafel no qual estilos tão singulares, como Italo Disco, Dub e Shoegaze, se fundiam. Em 2023, o ChromaKitsch retomou as atividades para as apresentações ao vivo, ganhando o reforço de Talles Azigon, que adiciona ao conjunto intervenções poéticas e performáticas. Algo que contribui ainda mais para a guinada eletrônica, em direção a house music, big beat, jungle, tão presentes na narrativa do livro BateEstaca: Como DJs, drag queens e clubbers salvaram a noite de São Paulo, de Camilo Rocha – aliás, leiam que vale muito a pena o registro histórico – e a música concreta.

ChromaKitsch, nome que até remete um pouco as imagens projetadas de maneira artesanal nos primórdios da introdução audiovisual nas festas de música eletrônica, e a ironia do termo “kitch”, ajuda a salientar a dinâmica orgânica, provocadora e transgressora do projeto.

O lado contestador sobra a realidade social, claro, não ia ficar de fora da narrativa distópica que se propõe. Isso sem perder a potência das batidas, sejam elas dialogando locais periféricos como Trenchtown, Heliópolis, Harlem e o Complexo da Maré. Transmidiático, transgressor e ao mesmo tempo, um paradoxo entre a globalização e a quentura dos trópicos. São esses choques culturais que provocam e colocam a arte de volta no lugar de contestação, lugar natural dela muitas vezes negligenciado por fatores comerciais.

ChromaKitsch NaoSomosRobos

Com lançamento nesta quinta-feira (25), data escolhida justamente por ser Dia do Escritor, o material do ChromaKitsch foi gravado ao vivo, segundo eles disseram em entrevista exclusiva para o Hits Perdidos, para que pudessem se conectar com a energia das apresentações. Esta por sua vez para lá de transmidiática.

Os textos de Talles, Lenildo e George mexem com sentimentos primitivos, como hedonismo e autodestruição, entre desejos e a dor do dia a dia, mas sem perder de vista o cenário de uma cidade como Fortaleza. A melancolia da poesia e as digressões, acabam sendo plano de fundo para um álbum com proposta de quebrar limites, entre o real e o irreal, o cômodo e a rebeldia, a distopia e o mensurável.

Lançado pelo selo cearense Mercúrio Música, com produção, mixagem e masterização do próprio George Belasco, eles trazem um leque de referências bastante singular que dialoga com a história da discoteca mas sem perder a irreverência do hoje. Algo próprio do background dos integrantes como nos relatam.

Entre eles nomes referenciados ao longo da estreia do ChromaKitsch estão Giorgio Moroder, Black Future, Aphex Twin, Björk, Happy Mondays, 808 State, LTJ Buken, Juçara Marçal, Parteum, Afrika Bambaataa, Sun Ra, DJ Patife, Charlotte Adigery.


ChromaKitsch “NaoSomosRobos” (2024) – Arte Por: Lara Monteiro

Entrevista: ChromaKitsch

Como surgiu a ideia distópica do elo entre o humano e o universo da ficção científica que norteia o trabalho?

George: “NaoSomosRobos recebe influência direta da pandemia covid-19. As horas de trabalho sem ponto no home office para quem teve oportunidade, a jornada incessante de trabalho presencial com medo de qualquer comportamento estranho, o medo do toque, o medo da morte… Quando for possível um exercício de distanciamento talvez tenhamos a certeza de que entramos numa distopia. O futuro do nosso passado parecia mais brilhante do que se apresenta. Em meio a tudo isso tivemos também uma explosão de festas, shows e pessoas desesperadas por contato. E é aí, no meio desse caminho que o disco está.”

Talles: “A máquina e o conflito com a máquina não é nenhuma novidade ou privilégio dos últimos 100 e sua revolução tecnológica que traz consigo o boom da produção da ficção científica. Se acreditássemos na mitologia judaico-cristã, de que certo alguém veio e nos criou, poderíamos dizer então que também somos máquinas, robôs que segundo alguns recebeu o tal do livre arbítrio. Como não acreditamos nisso então afirmamos que não somos robôs.”

Lenildo: “Talvez a ideia, em si, aposte na reflexão acerca de nossas próprias convicções do que eu chamo presente distópico. Muito se fala sobre linguagens artísticas e talvez nossa maior distopia é imaginar, como no filme de Godard, um “adeus à linguagem”. O mundo pós pandemia da Covid 19 é, por si só, um mundo que sobreviveu a si mesmo. Dessa forma, esse trabalho tenta um encontro com nossas possibilidades de sobrevivência com textos/narrativas que retratam universos que dialogam intimamente com profundas alegorias humanas.”

A poesia marginal também faz parte da narrativa, como foi combinar isso? As letras vieram antes do instrumental ou o oposto?

Talles: “Engraçado imaginar que em algum momento poesia e música estiveram apartadas. Poesia é música. Acredito que por causa do Renascimento e da cultura palaciana e dos salões, a poesia foi ganhando uma limpeza, mas em sua essência ela é e sempre será marginal, porque para criar a poesia e a música bastar ser dotado da linguagem. acreditamos que é natural essa combinação.

George: Quase todos os textos que estão no álbum já existiam antes de pensar na ChromaKitsch. Lenildo e Talles já são conhecidos como escritores ligados ao universo daquilo que existe no limite da sociedade. Eu escrevo há tempos para o Cão Andaluz o que vejo ao andar pelas ruas. Viver o movimento periferia-centro-periferia, conviver com o audiovisual, produzir cultura, amar fora do convencional. Isso alimenta a poesia marginal que colocamos no disco. Em Fortaleza, assim como em Recife, São Paulo e demais capitais do país, o centro da cidade é periferia. Quem imagina determinar os rumos da cidade está em outro lugar… Bairros projetados, resorts para milionários. Nós estamos à margem faz tempo.

O instrumental nasceu apartado do texto. As músicas do primeiro EP Karmafel – lançado em 2020 – serviram de norte, mas quis fazer algo diferente. Passei 30 dias acamado depois de uma cirurgia e precisava extravasar. Recuperei um antigo notebook com poder de processamento bastante limitado. Nele comecei a trabalhar com trackers e samples como se fazia na década de 1990. As faixas têm essa textura lo-fi não por filtro ou maquiagem de plugin, mas pq saíram de cd-rom, discos, vídeos ou gravações com telefones de disco.”

Lenildo: “Esse processo de escrita e sua busca de transversalidade com o universo da música e das imagens talvez sejam a própria gênese da ChromaKitsch. Eu mesmo não consigo separar esses tempos (o texto, a batida, a projeção) a partir do momento em que esse encontro se consolida.”

Italo Disco, Dub, Shoegaze, trip hop, jungle, big beat, como foi para você entender a sonoridade e o processo de pesquisa envolvendo cada um dos discos lançados?

George: “Sou bastante influenciado por sintetizadores e beats desde que me entendo por gente. Em casa, na virada dos anos 80-90, escutava punk BR oitentista, dub e reggae por influência do meu meio-irmão. Ao mesmo tempo era rolava um estouro de bailes funk com equipes tocando bases do Afrika Bambaata, George Clinton, Run DMC, Bomb the Bass.”

Estou hoje com 44 anos, então vivi uma adolescência intensa acompanhando shows underground e logo depois tocando. O Lenildo é um pouco mais velho. Talles um pouco mais novo e a Lara nascida bem depois. Ali pelo início dos anos 1990 rolavam vários projetos de música eletrônica em Fortaleza. Tínhamos a Feira Mix, espelhada no Mercado Mundo Mix, este último criado no Rio de Janeiro em 94. Era a aglutinação de moda, música, artes plásticas e performances produzidos por e para a comunidade LGBT e consumido também por quem não se identificava com o mainstream/convencional.”

Lenildo: “Fortaleza tem visto cada vez mais o surgimento de experimentações no campo das artes. Acho que nossa distância (não física mas no sentido de não fazer parte dos processos hegemônicos de difusão dos mercados das artes) nos faz criar alguns caminhos bem interessantes no que diz respeito à percepção das transversalidades entre os diversos sentidos das artes. Assim, esse caminho da experimentação termina por ser uma marca dessa cena que resiste e insiste em existir. Um coisa bacana da Chroma é justamente a possibilidade do encontro entre universos e referências por vezes distintas entre si.”

A literatura e o cinema também acabam envolvendo a narrativa?

Talles: “E o cotidiano. No fim das contas o que distingue música de barulho, ou melhor, como extrair música do barulho da vida, talvez essa seja nossa pretensão.”

George: “Totalmente. Talles e Lenildo trazem uma vivência muito forte da literatura. Ambos são poetas, mas com trajetórias bem distintas. Talles fundou a Livro Livre Curió, uma biblioteca comunitária no bairro do Curió, frequentemente estigmatizado por violências políticas e policiais do Estado. Também fundou com mais 2 parceiros a Substansia, uma editora e livraria que publica e edita livros de autores cearenses. Lenildo veio de Manaus ligado aos movimentos de contracultura e do universo audiovisual. Foi gestor de centros culturais e criou com Nadia Sousa a Mercúrio Gestão Cultural, que se desdobrou no selo Mercúrio Música, responsável pelo lançamento do álbum da ChromaKitsch. Então a gente tem os limites borrados quando pensamos nas músicas. São textos com movimento e pulsação.”

Lenildo: “Essa característica é justamente aquilo que falei sobre transversalidade. É algo que tenho perseguido também no meu outro projeto, a dronedeus. Em tudo que escrevo eu sempre gosto de pensar como imagem. Cada letra é um frame na minha cabeça, cada junção de palavras uma sequência. No caso da Chroma, diria que o resultado seria um plano sequência.”

A parte visual também entra como um elemento chave no som eletrônico, como se dá a participação da artista plástica Lara Monteiro no processo para traduzir tudo isso?

Lara: “No processo criativo, busco traduzir visualmente o som da ChromaKitsch. Nas apresentações, faço uma construção orgânica, intuitiva, experimental e integrada com as músicas. É algo que enriquece a experiência sensorial e a narrativa emocional das performances ao vivo.”

Lenildo: “A presença da Lara como alguém fixa no projeto é um diferencial, penso eu. O que ela traz, principalmente nas apresentações ao vivo, é buscar sempre traduzir e levar poesia e beats para outras dimensões.”

George: “Nossa primeira apresentação ao vivo foi num teatro de Fortaleza chamado Casa Absurda. Enquanto rolava a intro improvisada de “A Maior Vaidade” Lara instintivamente lançou imagens que fizeram a plateia suspirar e ficar na dúvida se olhava para a execução no tablado ou para as imagens nas paredes. Eu mesmo fiquei bastante movido quando vi as imagens registradas pela plateia. É nesse ponto de levar a música para o íntimo do espectador que a arte dela opera.”

Muitas referências do disco vem de lugares frios e distantes. Como acredita que tudo isso dialoga com Fortaleza em si?

Talles: “Não achamos que venha só de lugares frios e distantes, a música eletrônica tem nomes importantes Sun Ha, Afrika Bambaataa, o próprio funk que se apropria disso e cria e recria.”

George: “A cidade de Fortaleza tem uma esquizofrenia que talvez não seja clara para quem é de fora. O turismo solar dos resorts e parques aquáticos é amparado por um humor moleque por vezes questionável que convive com a destruição permanente das memórias. O espelho do beach tênis, jeep Renegade e copo stanley é remendado com trabalho subalternizado, amores efêmeros e fuga da realidade nos bares, quiosques de praças e pistas de dança dos inferninhos.”

Talles: “Talvez pela Europa ter saído na frente nas tecnologias mais recentes e só conseguiu isso sugando o sangue, o ouro e o trabalho das Américas, Ásia e Oceania. Então, por mais que a gente goste de muitos nomes europeus, não nos sentimos devedores deles.”

George: “Desilusão, desejo, cansaço, culpa… Não têm barreiras.”

Talles: “Acreditamos que nossa música também é um zumbido quente de sol.”

Lenildo: “A Fortaleza da Chromakitsch não aparece nos outdoors, nas propagandas sobre sol e mar que podem ser vistas no aeroporto por quem chega. Talvez essa ideia de frieza ou mesmo distância seja uma perfeita alegoria para se falar de lugares e pessoas desconectadas do mundo por escolha desse próprio mundo que as coloca em um lugar de invisibilidade e exclusão.”

Por que decidiram escolher produzir um set ao vivo?

George: “Foi o set que criamos e aprimoramos para as apresentações ao vivo. Aí tem também um tributo à house music. Essa base de 8 músicas, que no álbum dura pouco mais de 22 min, no palco pulava para 1 hora. Nos espelhamos na vibe do Homework do Daft Punk. A ideia é apresentar um álbum que leve o ouvinte para a experiência musical como o artista pensou inicialmente.

Nas plataformas, disponibilizamos o set inteiro numa única faixa, as faixas individuais (pois sabemos que há audição ansiosa) e o set instrumental. Esta última ideia veio da audição do O Amor, o Perdão e a Tecnologia Irão nos Levar para Outro Planeta, do FBC. Disco muito bom calcado na música eletrônica.”

Lenildo: “O set ao vivo também busca dar uma noção daquilo que buscamos nas apresentações.”

Queria que comentassem mais sobre as temáticas abordadas ao longo do álbum e apontar qual seria a mensagem que sentem que centralizar tudo isso?

George: “NaoSomosRobos fala de viver a imperfeição e contradição de ser humano dentro da repetição da vida. Podemos fazer um faixa a faixa nesta versão do álbum. Sim, até o momento de subir fiquei mudando a ordem das faixas e o sentido da narrativa. Meio que um cubo mágico. Pois bem…

Aderbaldo, é a primeira personagem, o fio condutor de “Bruta Flor”. Ele teve o coração cortado/partido porque tentou pagar pelo amor e não conseguiu. Reflete sobre os tratados vazios de deuses sem fé, músicas sem significado, falsos amores plásticos. Ele quer o barulho de se sentir vivo.

Em “Sonambulos”, sonha que é máquina. Trabalho, sonho, realidade, lazer. Tudo se mistura. A mente confunde produtividade com propósito de vida. A saúde por esperar enquanto ele não termina o serviço repetitivo do dia. Só que o dia nunca acaba para Aderbaldo. É a pedra de Sísifo.

“Nao Somos Robos” é uma revolta temporária de não aceitar o futuro. Ele não é escravo nem autômato. A fuga leva a “Desarranjo”. A personagem se joga na noite e quer morrer de amor. O jovem Aderbaldo quer se apagar da vida. É o sofrimento do jovem Werther revivido. Estar na bad, cair de cara no asfalto atrapalhando o tráfego, ser holograma numa das paredes da casa abandonada.

“A Maior Vaidade” é o amor que tudo confunde. Céu e terra, lembranças do amor que não conseguiu bancar. A voz por vezes some quando quer dizer algo e não sai. Os sons do pensamento são o universo do interdito.

A ação chega em “Karmafel (After Party Feelin)”. A personagem vai atrás da pessoa. Confronto, humilhação, vestido longo, vermelho sangue. Aqui a gente não sabe se Aderbaldo trocou de papel com seu obscuro objeto do desejo na faixa anterior. É algo meio David Lynch porque o fim da noite reserva a tragédia.

Aí vem “Todo Corpo Cai”. Comer os ricos, canibalizar o amor. No fim da noite, a personagem arremessa a culpa no mar e vê a vida implodir. Tremer de frio antes do sol nascer de frente para o oceano, ser estrangeiro dentro de si e conviver com a culpa preso numa caixa de ferro e carvão.

Terminamos com “Sapatos Vermelhos”, o purgatório. O obscuro objeto de desejo de Karmafel retorna para atormentar a personagem numa prisão de festa incessante. É a lua de fel que não termina com a última nota.”

Lenildo: “E assim George acabou de criar o argumento para NaoSomosRobos, a HQ, o filme.”

This post was published on 25 de julho de 2024 9:00 am

Rafael Chioccarello

Editor-Chefe e Fundador do Hits Perdidos.

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