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Sky Down em “Lethargy” cria um universo próprio para coexistir

Depois de 9 anos, Sky Down lança “Lethargy”, sucessor de “…nowhere”

É impossível não atrelar alguns lançamentos a um momento, tempo e história. Muito menos quando projetos, vidas e mudanças se entrelaçam. Nos primeiros dias do Hits Perdidos, ainda sem saber algo além do que me motivava a produzir conteúdo, muitas vezes sem molde, sem grandes pretensões e querendo me conectar com aquele cenário que estava rolando com tantas dificuldades – e barreiras – acabei tropeçando em um show realizado no “rooftop” de um sobrado na zona sul de São Paulo, que na época também funcionava como estúdio, com 3 caras do ABC Paulista que tinham acabado de lançar um disco misturando referências de punk rock, grunge, hardcore e até um pouco de post-punk (mas ainda bem tímido). Era o Sky Down ainda em sua primeira formação.

O show foi completamente caótico, lembro que nem eles ficaram satisfeitos com o som que tinham tirado. Pra piorar, como bom show em inferninho, a polícia baixou e acabou com a brincadeira. Lembro de conversar com eles no dia para sacar quais eram as referências e foi fácil me conectar. Citaram Germs, Nirvana, The Damned…entre outras bandas que a memória foge. Lembro que ganhei um disquinho do …nowhere (2014) no melhor estilo D.I.Y., copiado no PC mesmo, com capa impressa na impressora de casa e tudo mais.

De lá pra cá muita coisa aconteceu. Da saída de integrante e entrada da Amanda, que ajudou a mudar o som da banda pra sempre e contribuiu muito para a evolução sonora, pude assistir show deles nas mais diversas situações e condições. A evolução não parou na música, foi para a estética mais bem definida, por querer construir uma linguagem própria nas apresentações, shows em melhores palcos…mas sem perder aquele brilho no olho que pude ver naquela laje das proximidades do Jabaquara.


Sky Down em show 74Club (Santo André / SP) – Foto Por: Fabiano Mendes

Sei que a primeira vez que ouvi falar sobre o que viria a ser o Lethargy foi em meados de 2015/2016. A guinada de som já aparecia nas apresentações, eles já estavam em outra sinergia e evolução sonora. Já tinham materiais pré-produzidos e começaram aos poucos a mostrar. Tanto que “Wish” (2017) e “Wound” (2018) que já exploravam a guinada cada vez mais post-punk com referência do som mais frio alemão, mas sem deixar David Bowie e noise rock de lado já mostram o esmero em criar ambiências e sensações que dialogassem com a essência do trio.

Claro, nesse meio tempo tivemos uma crise sanitária mundial, distanciamento e um cenário onde colocar músicas no mundo depois de tantos processos e vivências era algo difícil. Então de certa forma ver esse disco finalmente sendo lançado nesta quarta-feira (23/08) é bastante emocionante e muito particular para quem estava lá nos primeiros dias. É meio que ter visto o Black Flag lançar o The First Four Years (1983) e depois de muitos anos ver a banda flertar com o jazz – nas suas devidas proporções e adaptações a cena independente brasileira.


Sky DownFoto Por: Fabio Zerbini

Sky Down Lethargy

Nada como conversar com o vocalista, guitarrista e um dos fundadores do Sky Down, Caio Felipe, para entender mais sobre esse momento tão intenso de fechamento de um ciclo para que outro possa vir.

“Lethargy é um disco composto de músicas feitas, gravadas nos últimos sei lá 5, 6 anos. Tem faixas que foram feitas e inicialmente gravadas antes da pandemia e terminadas depois. Uma parte desse disco vinha sendo tocado ao vivo nos últimos anos. Sempre foi pensado pra soar como disco, meio que transportando para estúdio o que fazíamos ao vivo, apenas com alguns acréscimos pontuais, tipo o coro de vozes que acabou rolando de Theo e Luna em “Chrysalis”. Mas é basicamente os três tocando ao vivo em estúdio.

Incluímos também os singles “Wish” e “Wound” porque fazem parte da narrativa ali, foram as primeiras músicas do que viria a ser o disco, seria meio como lançar um livro faltando capítulos. A ideia era além de fazer um disco que soasse como nós, sem inventar muito, mas que abrisse também alguma porta para algum futuro.”

Uma das marcas do Sky Down sempre foi o humor irreverente e a crítica ao sistema do “sucesso” no indie brasileiro. Algo que em conversas eles sempre deixaram claro que queriam fazer algo que eles ficassem felizes e que de certa forma quem gostasse iria abraçar.

“Tem música que é meio que uma tiração com essa galera de banda desesperada por atenção, fazer algum tipo de sucesso, fazer música utilizando “fórmula”, refrão chiclete, focar mais na embalagem do que no conteúdo, que é o caso de “Catchy”. Tem rock meio despretensioso pra curtir mesmo como “Low” ou “Tonight” que tem uma intro paródia do Bowie. Apesar da capa esquisita e “feia”, o disco também tem algum senso de humor.

“Sly” veio do conceito de que “a arte é uma mentira” e as pessoas vão tentar vender suas “verdades” como a única, seja politicamente ou em forma de arte. É meio que uma resposta a isso e serve como ponta pé inicial da narrativa do disco.”, ressalta Caio


Capa tem arte da polonesa Aleksandra Waliszewska

“A capa é da Aleksandra Waliszewska, uma artista polonesa muito legal que piramos faz um tempo. Ela é conhecida por “pintar pesadelos”. Quando falei com ela há uns 5 anos sobre usar essa imagem pra capa, ela pediu pra mostrar algumas musicas do disco, tinha uma que já tocávamos ao vivo que na época chamávamos pelo apelido de “gotikera”, a Aleksandra adorou essa e acabamos dando título de “Warszawa” que é onde ela mora.

Gosto de como essa arte passa uma sensação de desconforto e acabou tendo uma certa ligação com a segunda metade da música também. Passa por momentos mais densos como em “Violet”, que tem uma semelhança quase proposital com “Wish”. E acredito que ambas falam de relacionamentos, despedidas, recomeços.”

Porque do título Lethargy?

“O título Lethargy foi algo que se manteve quase que desde o início. Qdo a coisa começou com “Wish”, achava ela bem arrastada, densa, diferente daquele som mais direto do …nowhere, e ela tinha uma coisa meio letárgica. Aquele estado de que você não sabe se tá vivo, morto e fica sei la, horas parado vivendo em seus pensamentos sem reagir aos estímulos externos.

A capa dialoga com isso também. E era como sentia as pessoas num geral nos últimos 5, 6 anos, uma apatia, uma coisa meio anestesiado talvez pela tecnologia também, sei lá. É um trabalho que acredito que apesar dos anos, continua soando fiel a ideia original.”, reflete o vocalista

Letargia Amplificada

Frio, sufoco, caos, vazio, indiferença, apatia, letargia. Feito um fio desencapado e um verso dos Titãs, o disco tem uma narrativa que quebra um pouco desse conceito de um mundo dominado por redes sociais, inteligência artificial e um distanciamento que pairava no ar muito tempo antes de qualquer pandemia.

Esse respiro ou melhor dizendo suspiro, que se confunde com ansiedade, paranoia, apatia e pensamentos confusos que nos deixam inertes, aparece desde “Sly” que tem o versos sobre a revolução ser uma grande farsa em meio a um vocal frio e propositalmente cansado tanto de Caio como de Amanda em meio a guitarras carregadas de distorção e chiados.

O humor característico do Sky Down aparece pela primeira vez em “Tonight” brincando em sua introdução com “Let’s Dance” do David Bowie, propositalmente desafinada e em descompasso para mostrar o desespero. Logo entram os vocais de Amanda no melhor estilo Hole. A faixa mostra um pouco do descontrole e compulsão por ir para sociabilizar e se sentir apenas mais um na multidão, o não pertencimento, a vontade de criar um universo paralelo para co-existir.

“7even” que tem uma introdução que nos remete ao Cabeça Dinossauro na parte percussiva e parece viver no mundo dos sonhos de David Lynch é uma das canções que une as duas fases do Sky Down. Da crueza a complexidade de camada. O austero, o deboche, imersivo e reflete também essa luta contra o status quo. Claro que é impossível comentar sobre essa fase deles sem citar a interferência e reverência ao Sonic Youth. Os pedais tão aí para provar.

Reouvir “Wish” depois de tanto tempo chega a ser como ver uma peça do quebra-cabeças desmontada e agora inserida em um contexto maior. Na época defini ela como “essa que já começa com uma levada noise rock e uma longa introdução feito clássicos do Stone Roses. A levada “empoeirada” também carrega a onda das guitar bands mescladas ao “sujo” do grunge e a destreza do post-punk. Até por isso alguns também podem enquadrar o single como “Dream Pop“.

A vibe Low Dream e magnética da “balada” shoegazer se traduz no clipe que parece ser extraído dos anos 90. Poderia até ser cenário de grupos como Primal Scream ou My Bloody Valentine esteticamente falando. Como o vocalista Caio comentará na entrevista ele tem a “vibe” do filme Enter The Void do argentino Gaspar Noé.



A verdade é que nem sei se concordo mais com essa análise, se passaram 6 anos, mas sinto que ela cresceu em mim e ganhou novos contextos, essa intro que parece de rebobinar um filme, essa catarse de distorção, o sentimento de emancipação e de sair do seu próprio eixo, forçando a destruição do ego, me captam numa fase mais madura da vida de outra forma. Nem por isso renego a minha antiga percepção mas sinto que criei um elo diferente.

“Wound” também é dessa leva de músicas antigas e lembro de na época sentir algo doce como The Breeders, nos vocais de Amanda, e o agridoce das paredes de guitarra de grupos como Dinosaur Jr. Imerso no escuro e nesse niilismo a canção tem um trabalho de arranjos bem pensados que poderiam ser possivelmente lados b do The Cure, de certa forma. Esta mesma que é um dos pilares de fundição dessa nova fase e reverenciada pelos integrantes.

O experimental sempre teve espaço nas apresentações e também nos ensaios como Caio nos revela – e isso aparece em “4:53” de forma catatônica.

“Tem umas coisas diferentes pra gente como “4:53″, que era uma jam/improviso mais longa na versão original e resolvemos incluir ela no disco. Vira e mexe quando entrávamos no estúdio pra ensaiar a gente acabava fazendo algum improviso livre e resolvemos registrar essa.”



O som do Sky Down em Lethargy é também muito cinematográfico, por assim dizer. Ao ouvir “Violet” pela primeira vez, por exemplo, me remeteu a “Mad World”, de Gary Jules, eternizada na trilha sonora de Donnie Darko (2001, Richard Kelly). Talvez também pela referência de R.E.M. e de toda leva oitentista que a banda traga, e pela própria sensação de sufoco, que tanto a canção, como o filme, carreguem em seu DNA.

Para mim é claramente o ponto alto de Amanda nos vocais, a sensação de paralização, de sentir do fundo da alma e de emular uma falsa calmaria prestes a perder o controle sobre si é um deleite para quem gosta do estilo. Carrega uma tristeza tão forte como a geração de Seattle de forma muito intensa. As guitarras também soam como uma quarta pessoa na banda que grita pedindo socorro ao mesmo tempo que se sente impotente.

Gótico mas sem perder o bom humor

“Catchy” como Caio Felipe nos revelou no papo tem esse lance de brincar com o envelopamento da música sendo de plástico para explodir em certo nicho (por menor que ele seja). Um deboche que Kurt Cobain captaria na hora sem titubear da mesma forma que ele adorou conhecer Second Come.

A tal da “Gothikera” rebatizada de “Warszawa” desde a introdução trás um ar gelado, distante, moribundo e catastrófico. A guitarra parece que ri mas ri desesperadamente, ela vai crescendo ganhando camadas e o baixo ganhando protagonismo por condensar toda a sensação de tensão. Algo a se ressaltar nesse disco como um todo é o conceito de unidade. Embora ele tenha essa energia de mini-filmes compilados em série, ou melhor dizendo, fotografias dos últimos 5/6 anos, suas harmonias e camadas acabam se abraçando.

O poema gótico declamado por Amanda condensa de certa forma tudo isso: “Into the shadows / we continue looking for something that will never happen / They wanted to discover the best way to find the liar / but we don’t / we want to / we don’t need to..”.

O grito pela vida, a tristeza profunda, a vontade de transformar mas sem ter forças para isso. É uma canção grandiosa ao mesmo tempo que feito um grito por ajuda que o In Utero tanto carrega.

Quem fecha o álbum é “Chrysalis” condensa essa tristeza e o lado dark. Com versos como “esse céu cinzento um dia se tornará azul”. O sentimento de culpa também transparece e as camadas de referências do rock gótico também se fazem presentes.

O coro de Theo e Luna aprofundam ainda mais o duelo vocálico entre Amanda e Caio. A energia catalisada mostra muito da potencia dos encontros entre o grupo e a vontade de transformar toda atmosfera em um conceito ainda maior, feito seus ídolos. O que torna o disco a cada audição ainda mais grandioso.

Se na era dos algoritmos, falsos profetas e de industry plants dominando as paradas a base de marketing, formulas de mixagem e masterização – e playlists questionáveis – ouvir discos como Lethargy nos fazem lembrar do porque gostamos de música. Nos fazem lembrar de como assim como um DJ, uma banda é capaz de nos mostrar diferentes mundos e pontos de vista sobre a complexidade do nosso cotidiano e das artes.

Sky Down @ Bar Alto

Quando: 30/08 – às 20h
Onde: Bar Alto – Rua Aspicuelta, 194
Onde Comprar: Site do Sympla
Primeiro Lote: R$30 (+ taxas)
Segundo Lote: R$40 (+ taxas)

This post was published on 23 de agosto de 2023 9:00 am

Rafael Chioccarello

Editor-Chefe e Fundador do Hits Perdidos.

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