Don’t Dream It, Be It: os delírios punks de The Rocky Horror Picture Show
Não é de hoje que o punk rock se mistura com cabarés no melhor estilo Moulin Rouge. New York Dolls disse olá. Musicais são um território a parte como o maravilhoso “Hedwig & Angry Inch”, “O Fantasma da Ópera”, entre outros. Tributos punk sempre são divertidos porque você simplesmente não imagina que aqueles caras iam se meter a fazer um lance desses. Tributo à Disneyworld, Tributo aos cartoons de sábado de manhã… acredite se quiser: existem.
Seriados têm trilhas tão emblemáticas que não devem ser ignorados, alguns são verdadeiras escolas musicais, como a audaciosa trilha de How I Met Your Mother, que se atreveu a mostrar grupos como Guided By Voices, The Walkmen e Pavement para uma galera que talvez nunca daria a mínima para eles.
Hoje vamos conhecer um senhor tributo, a talvez um dos mais cultuados musicais da história do cinema: The Rocky Horror Picture Show. Mas antes vocês precisam saber de um detalhe que muda tudo: antes de se tornar um filme, existia um musical (de teatro) e um livro escrito por Richard O’Brien.
O enredo na verdade é um bem humorado tributo aos filmes de ficção científica e filmes B do período de 1940-1970. Sendo assim, o musical conta a história de um casal recém casado que é pego de surpresa por uma tempestade. Com medo do temporal, eles acabam batendo na porta de uma casa com um ar freakie mal assombrado e são recepcionados por um travesti cientista que está no meio de um projeto audacioso: uma espécie de Frankenstein feito artificialmente, um crescido e musculoso “homem” chamado Rocky Horror, que leva consigo “um cabelo loiro e um bronzeado para ninguém colocar defeito”, segundo o cientista maluco.
A partir daí a confusão está montada e a jornada desesperada do casal se inicia (mas sem spoilers, por aqui não teremos esse tipo de estupidez: podem ficar tranquilos). A primeira vez que o espetáculo foi encenado foi no dia 16/06/1973 no Royal Court Theatre, em Londres, e teve como diretor Jim Sharman.
O sucesso foi tão grande que a peça ficou em cartaz por 7 anos. Foram quase 3000 apresentações e muitos prêmios por parte da academia local. Não demorou muito para a Broadway abrir o olho e ver uma oportunidade. Em 1974, Los Angeles teve sua primeira versão em território norte-americano. mas o destaque na terra do Tio Sam foi no ano seguinte, quando o Belasco Theatre foi palco para a versão da Broadway.
Sucesso em todo lugar que passou, o musical tem uma trilha de dar inveja a qualquer compositor. As letras são teatrais em sua essência e os diálogos são bastante ricos e filosóficos. Se tornar um símbolo cult era apenas questão de tempo.
Em paralelo a isso veio a ideia do musical para o cinema, uma parceira dos norte-americanos com os ingleses, com Jim Sharman no comando mais uma vez. O musical contou com atores de primeira linha como Tim Curry, Susan Sarandon e Barry Bostwick, além do casting da Royal Court, do Roxy Theatre e do Belasco.
Para manter a essência, o filme foi gravado em Londres. Curiosidade para os cinéfilos: alguns cenários foram reutilizados da produtora que participou do projeto, a Hammer Film Productions, que já tinha em seu currículo um vasto catálogo de filmes de terror.
Sue Blane foi a grande responsável pelo figurino e depois ganhou um grande reconhecimento e uma verdadeira legião de seguidores. A aproximação com o punk vem desde aí, quando Sue foi atrás da vestimenta e características do punk para montar o figurino. A maquiagem pesada, as tachinhas e o exagero na vestimenta das personagens no filme não são mera coincidência.
Tanto que anos depois de ser lançado, além de ser mantido em cartaz, muitos iam trajados com os figurinos das personagens às sessões. A cena era comum na cidade de Nova Iorque. Uma outra curiosidade é que mesmo mais de 40 anos depois de seu lançamento, ainda é a peça musical mais longa da história do cinema.
Seu legado até hoje chega às novas gerações e as conquista rapidamente. O tom de deboche, as causas sociais e o mundo mágico do teatro ainda fazem da peça-musical-filme um tremendo produto e a porta de entrada para esse encantado universo da dramaturgia.
Na segunda temporada de Glee, mais precisamente no episódio 5, que foi ao ar em 2010, rolou um tributo ao musical, “The Rocky Horror Glee Show”. Um senhor tiro no pé, diga-se de passagem. Quem não gostou nada disso foi o criador Richard O’Brien, que se expressou de maneira muito desapontante sobre a diluição do tema do musical. Achou super pejorativa e desqualificada a abordagem.
Quem não ficou nada feliz também foi um representante da organização Gay & Lesbian Alliance Against Defamation, que criticou o episódio como pejorativo pelo uso do termo “tranny” (uma versão debochada e pejorativa do termo “travesti”). Por outro lado, a revista Rolling Stone disse que foi o melhor episódio da história. Já o pessoal da A.V. Club falou: “a pior hora na história da série”.
Enfim chegamos ao tributo do dia: The Rocky Horror Punk Show. E que tributo, meu amigo. A iniciativa partiu pelo selo indie californiano Springsman Records no ano de 2003. A ideia era simples…E se as músicas do importante musical fossem tocadas em versões punk em seus diversos seguimentos?
E a curadoria foi um show a parte.
O supergroup Me First & The Gimme Gimmes não poderia ficar de fora de um tributo de um selo californiano. O grupo tem integrantes de importantes bandas da região como NOFX, Swingin’ Utters, Foo Fighters e Lagwagon. Então a missão foi até que tranquila para eles, já que o projeto realiza covers desde o dia 1 de banda, estando juntos desde 1995. A versão escolhida foi a de “Science Fiction/Double Feature”.
Quem canta na faixa é Joey Cape (Lagwagon), e a versão ficou com uma levada oldies mesclada com punk rock. Sing-alongs e aquela vibe powerpop são perceptíveis no conjunto da obra. Moshar ao som de The Rocky Horror Picture Show nunca foi tão possível.
“Dammit, Janet” foi a escolhida pelo Love Equals Death e tem uma levada mais pesada, quase hardcore, com bateria 1-2 e descendo a marretada no bumbo. A banda que já não existe mais contava com membros de bandas comoTsunami Bomb e chegou a estrelar no casting da Fat Wreck Chords.
O Alkaline Trio não poderia ser escolha mais do que acertada neste tributo. O vocalista Matt Skiba, que tem se aventurado paralelamente hoje em dia no Blink 182, é fã fervoroso do universo dos filmes de terror e do ocultismo a muito tempo. Tanto que algumas músicas do grupo soam um pouco macabras, misturando drogas, filmes B e poesia gótica. “Over at the Frankenstein Place” ficou perfeita, cheia de escuridão e melodia acertada nos vocais.
“The Time Warp” foi interpretada pelo The Groovie Ghoulies. Uma das bandas mais legais que já existiram no cenário punk/bubblegum dos EUA. Escola Ramones, The Queers, Riverdales e tantas outras que nunca nos cansamos de ouvir. A versão ganhou uma levada surf rock punkanesca que te tira para dançar com uma facilidade que assusta.
“Sweet Transvestite” é interpretada pelos obscuros Apocalypse Hoboken, uma banda seminal de Chicago que durou de 1987-2001. Algo na linha do Hudson Falcons com Mudhoney, eu diria. E se surpreende quem acha que a versão ficou qualquer coisa. É incrível, com uma levada Stooges misturada ao punk nova iorquino dos anos 70. Ela consegue evocar o espírito do strip-tease.
The Independents ficou encarregado de fazer a versão de “The Sword of Damocles”, uma banda de horror punk/ska. Que fez uma versão desgracenta na levada ~Elvis Presley is dead~, com o recurso de um órgão na melhor levada rocksteady e guitarradas distorcidas com o melhor dos 50’s.
Os pouco conhecidos mas com muita quilometragem do Pansy Division ficaram o desafio de tocar “I Can Make You a Man”. Eles colocaram trechos das falas do musical como introdução da música e a música é cheia de loopings e guitarras sem muita perfeição, cheio que quebras a cada “ato” da canção.
Já o The Phenomenauts, com sua levada powerpop / garage punk / 77 revival / New Wave mandaram ver em “Hot Patootie (Bless My Soul)”. Talvez a versão mais interessante e transgressora do tributo, guitarradas a la New York Dolls e a transgressão de grupos como The Weirdos e X são perceptíveis. A festa e o mosh estão realmente completos depois desse som. Temos até que tomar um pouco de ar depois de ouvir.
The Secretions foi responsável pela cota Devo do disco. “Devo Hillbilly”, eu diria, tudo isso com intervenções de vocais femininos. “I Can Make You A Man (Reprise)” é rápida feito um tiro.
Chubbies é a cota Hole do tributo. “Touch-A, Touch-A, Touch Me” ganhou uma versão sedutora, açucarada e perigosa.
Já a cota Ska/Reggae/Rocksteady fica por conta da banda de Boston Big D & The Kids Table. “Once in a While” é interpretada com um vocal sutil, os metais calmamente ganham seu espaço e o tributo mostra sim que o ritmo caribenho é um tremendo acerto na miscelânea da coletânea.
Os mestres do Swingin’ Utters pegaram a bucha de regravar “Eddie’s Teddy”. Quem viu o filme sabe do que eu estou falando, ela é um dos pontos altos do enredo, e uma tremenda responsabilidade. O vocal é inconfundível, e o baixo não deixa mentir: é a marca registrada do grupo. Os membros interpretam os personagens através da entonação, o que resulta como a cereja do bolo.
Tsunami Bomb ficou responsável por dar (sobre)vida a “Planet, Schmanet, Janet”. A banda riot girl chega com tudo, solando a face de quem se atrever a passar pela frente. Uma levada rockabilly é perceptível na levada do baixo. Uma grande homenagem ao rock, com elementos como piano e diálogos interpretados com vigor.
“Rose Tint My World/Floor Show” ganhou vida através dos pouco conhecidos do Luckie Strike. Fique tranquilo que não é vinheta da marca de cigarro, ok? Mais uma vez, as meninas ganham espaço, mas a atmosfera é mais hillbilly/punk, o famoso punkabilly. Impossível não tirar o pé do chão.
“Fanfare/Don’t Dream It” caiu na mão do Stunt Monkey que fez uma versão bem com a cara das bandas californianas da década de 90, pop punk. Com um adendo: parece que o vocalista tem verdadeira obsessão pelo Ramones, se vocês pararem para reparar. Impossível não cantar, para mim é a melhor canção/cena do musical. A letra é transgressora em tantos sentidos. A libertação sexual e viver dos seus sonhos é a melhor mensagem que sintetiza com supremacia o musical.
“Wild and Untamed Thing” ficou por conta do Gametime, que fez uma versão a la Descendents de encontro com o Screeching Weasel. Com direito a um solo muito bem calculado servindo de quebra na rápida canção que é cheia de altos e baixos. Se gostou, procure por uma banda chamada The Masked Intruder.
The Migranes executa “I’m Going Home”, com uma atmosfera dark como os Misfits cansaram de fazer. Punk rock básico com sing-a-longs, a cara da Califórnia. Mas longe de ser o ponto alto do disco. Talvez até descartável.
“Super Heroes”, performada por Ruth’s Hat, é a penúltima faixa do disquinho. É melancólica, me lembrou um pouco a versão de “My Way” que Sid Vicious fez por algum motivo que não consigo explicar direito para vocês. Mas é super gostosa de ouvir, soa toda estranha e destaca a música que é sensacional por si só desde o musical.
Para fechar o disco com chave de ouro, nada como chamar o The Ataris. Banda que tem canção de noivado citando a Disney até. Musicais são importantes na vida do vocalista, pelo visto. Apesar disso a versão foi gravada meio em qualidade lo-fi como se ele tivesse tentando imitar Joey Ramone em seus discos solo. Não sei se foi bem essa intenção, mas para mim soou como.
O tributo serve como uma bela homenagem a toda essa história. E caiu como uma luva naquele ano de 2003. Já que como contei no meio do texto, o punk – sua cultura e emancipação – estiveram presentes desde o início das filmagens do musical. A transgressão de valores, a liberdade de escolha sexual, a queda de valores de uma sociedade hostil são temas presentes desde o livro. Ou seja, nada como o punk para erguer mais uma vez essas bandeiras que ambos cultivam.
Algo que funcionou perfeitamente. Já o Glee fez um episódio que não respeita a imagem da obra e ofende quem não deveria ser ofendido de forma alguma: a comunidade LGBT. Ou seja, uma baita bola fora. Mas fica a lição, se for mexer na obra, que seja com tremenda delicadeza, bom gosto e despido de qualquer preconceito. Don’t Dream It, Be It!
* Texto originalmente escrito por Rafael Chioccarello em colaboração para o Crush em Hi-Fi.
This post was published on 17 de março de 2021 4:00 am
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