No Hits Perdidos temos o costume de abrir espaço para novas bandas e muitas delas denominam seu som como psicodelia/neo-psicodelia. Não é incomum quando perguntamos sobre as influências o álbum do Ave Sangria, de 1974, estar entre os listados.
Em sua maioria são bandas formadas ao longo das últimas duas décadas que citam referências do exterior mas que abrem a boca para falar sobre Os Mutantes, Lula Cortês e Zé Ramalho, Alceu Valença e Ave Sangria.
Muito disso por seu espírito de vanguarda, de desprendimento, de libertinagem e identidade que fizeram com que aqueles vinis ganhassem uma magia à parte. Bolachas finas como estas que podem ser encontradas em sebos, sites de vendas de raridades e que há 50 anos através de sua rebeldia….continuam a fazer sentido para uma nova geração que não tem medo da luta.
Se vivemos em um ciclo de retrocesso das conquistas sociais, a volta a ativa do Ave Sangria neste momento dialoga demais com uma juventude que está disposta a aprender e trocar conhecimento. Que não se importa em ter certeza ou querer ser dona da razão mas que dialoga e valoriza as pequenas trocas de experiências. Diálogos como estes permitem o início de novas narrativas, rupturas e conexões.
Depois da redescoberta em 2008, através do Orkut por uma nova geração, a Ave Sangria sentiu um pouco da magia desses encontros digitais e começou a amadurecer a ideia de uma eventual volta a ativa. A volta aos palcos veio em 2014 e toda essa energia e vibração os motivou a tirar composições ainda dos dois anos em que a banda esteve na ativa com sua formação original.
Assustadoramente as canções presentes em Vendavais (2019) dialogam com o sentimento que nos últimos anos tem se aflorado. Se na década de 70 eles contestavam e ironizavam a Ditadura Militar em letras como “Seu Waldir”, em um Brasil pós-2018 encontramos um governo que mesmo eleito por vias democráticas carrega uma ideologia que exalta um dos períodos mais tristes da história do Brasil.
“O repertório do novo álbum persegue as características recorrentes do grupo: do divertimento escrachado à morbidez de temas sombrios, da crítica social implacável ao mais delirante psicodelismo, da agressividade dos rocks pesados ao lirismo acústico das baladas”, diz Marco Polo.
O tempo deixa marcas, é bem verdade, e isso afetou a formação do grupo pernambucano. Originalmente um sexteto, a volta do Ave Sangria trouxe três membros originais, o vocalista Marco Polo, Almir Oliveira (guitarra e backing vocals) e Paulo Rafael (Guitarra). Se juntam a eles Juliano Holanda (baixo e backing vocals), Gilu Amaral (percussão) e Júnior do Jarro (bateria e backing vocals).
Em entrevista para o jornal Correio Braziliense ainda no ano passado, eles citam que quando sentiram que não iam conseguir continuar a banda, mediante a repressão, eles liberaram os outros músicos para tocar em outros projetos como por exemplo, a banda que acompanha Alceu Valença.
Embora se fale sobre “clipes dos Beatles” misturando cinema e música ainda na década de 60, o advento do videoclipe como conhecemos só foi existir mesmo no começo da década de 80.
Nos Estados Unidos, o primeiro vídeo a ser exibido na MTV, por exemplo, foi “Video Killed the Radio Star”, da banda The Buggles no ano de 1981. Fato é que até o começo de Agosto de 2020 a Ave Sangria nunca tinha lançado um vídeo promocional.
Foi através do diretor Pablo Polo que essa possibilidade ganhou as lentes das câmeras. A produção audiovisual foi filmada em um casarão do Coletivo de Teatro Magiluth.
“Passei um tempo escutando a música e tentando encontrar um fio de inspiração para ancorar a narrativa. Trechos dela chamaram a atenção e daí veio uma forte relação de opressão versus ação para se libertar e para ser si mesmo”, conta Pablo.
Com direito a performers para construir uma narrativa capaz de passar a mensagem de se libertar da inércia. A contra-cultura em sua essência mais pura, através das telas ganha sensíveis narrativas e diversas metáforas visuais.
“Quando conheci este espaço veio a ideia do final do clipe, quando todas as pessoas, unidas, partem do espaço confinado e abrem suas janelas. Literalmente escancarando os portais e as possibilidades de identidades livres e da imaginação”, conclui o diretor.
Conversamos com o Almir de Oliveira (Vocais, Guitarra, Composições) para saber mais sobre a receptividade, repressão da ditadura militar, histórias e o novo videoclipe do Ave Sangria.
Como tem sido essa tônica entre redescobrir canções antigas, se conectar com um público mais jovem e ver o período de regresso que o país tem passado?
Almir (Ave Sangria): “Esse processo de retomada da carreira do Ave Sangria, vem de 2008, quando Marco Polo me convidou para fazer um show com ele, no Projeto Sábado Mangue, no Pátio de São Pedro, em Recife. Levei a banda que tocava comigo naquele momento.
O público eclético, era de jovens e pessoas da nossa geração. Fizemos diversos outros shows, o público foi aumentando, e os jovens predominaram. Ainda nesse ano, descobrimos a Comunidade Ave Sangria no Orkut, com mais de 900 integrantes jovens. Entrei na comunidade e foi uma alegria geral. Nesse período, circulava um CD Ave Sangria pirata na mídia digital, e muita gente ouvindo e compartilhando. Até que um grupo de rock olindense, Anjo Gabriel, depois de fazer shows com a gente, aprovou projeto no Funcultura, e lançamos CD e LP Ave Sangria e CD e LP Perfumes y Baratchos do último show daquela fase.
Em 2015, quando tocamos no Festival Psicodália em Santa Catarina, depois de pensarmos em fazer um segundo disco, falamos aos jovens que gravaríamos músicas compostas na mesma época do primeiro disco. Foi uma forma de dar sequência ao trabalho que foi interrompido, e ter um link com a linguagem musical do primeiro disco.
Até hoje, nosso público é jovem em sua grande maioria, que se identifica com nossa proposta musical e existencial, visão da vida e do mundo. Isso é inusitado e maravilhoso. Ter sido chamado pelos jovens, de forma espontânea, a voltar aos palcos e seguir nossa história, dessa vez com 7 componentes. Os seis que estão no palco, e o sétimo que é a plateia. De jovens, que compartilham conosco, a nossa obra musical.”
Almir (Ave Sangria): “Voltar ao mesmo palco, onde fizemos o último show daquela fase da banda, foi de uma emoção indescritível. Uma felicidade imensa.
De retomar, e graças a maravilhosa e iluminada juventude, que nos fez viver aquele momento ímpar. Único. Receber de volta tudo o que nos foi tirado de forma violenta, na proibição de “Seu Waldir”, fez tudo em minha vida ficar mais fortalecido. A vontade cada vez maior de fazer música, de viver e de lutar pelos valores de liberdade, de respeito e de amor a todas as pessoas, com suas diferenças.”
Como tem sido a recepção do disco? Vocês estão lançando o primeiro videoclipe da banda depois de tanto tempo, como isso aconteceu?
Almir (Ave Sangria): “Vendavais é um retrato postado com nitidez, desses tempos turbulentas e de infelizes retrocessos nas relações sociais e humanas. que estamos vivendo hoje, no mundo e no Brasil.
Vendavais também aponta alternativas inteligentes e corajosas, para quem quiser pensar e agir de acordo com a sua natureza própria. Houve muita expectativa do público ao que seria esse disco, depois de 45 anos do primeiro. A receptividade foi excelente, o que vem nos dando mais prazer e vontade de seguir no front, vendo em nossa frente, jovens que compartilham com a gente, a nossa obra musical.”
Além disso a canção “Seu Waldir” foi alvo de críticas e foi considerada “contra a moral e os bons costumes da sociedade pernambucana”. Como foi essa história na época e como veem essa situação nos dias de hoje?
Almir (Ave Sangria): “Aquele foi um período obscuro e sem luz, onde eram negados, princípios básicos de direitos humanos. Censura, repressão eram pratos cotidianos, onde pf não significava de forma alguma, prato feito. “Seu Waldir” foi recebida muito bem pelo público.
Estávamos em 8° lugar no hit parade, com apenas pouco mais de um mês e meio de lançado. A censura proibiu a música. A capa do disco foi modificada pela gravadora. Estamos agora, num período de retrocesso, onde a censura se faz mandando tirar do ar, vídeos promocionais de um banco, por ter um transsexual no elenco de atores.”
Almir (Ave Sangria): “Nós utilizamos um recurso que é o exercício do imaginário, para criar estórias. Às vezes sobre uma música, como foi com “Seu Waldir”, ou com fatos do cotidiano da gente. Quando moramos em Salvador, em 1973, alugamos um casarão antigo no bairro de Rio Vermelho. Um amigo nosso foi nos ver, e dormiu em cima da porta.
E contamos esse estória aqui em Recife, quando voltamos. As pessoas ficavam surpresas e admiradas como esse nosso amigo conseguiu esse feito extraordinário. O fato é que não dissemos um detalhe: a porta estava deitada. Era utilizada como mesa sobre tijolos.
Depois a gente contou esse detalhe, e o mistério foi desvendado.
Acho que o que está faltando é mais divulgação nos meios de mídia convencional, dos intérpretes e bandas que tem uma proposta mais aberta, mais crítica, sem amarras nem apelações.
Almir (Ave Sangria): “Exatamente. O nome da banda foi fruto de uma divagação poética e imaginária, onde uma ave vermelha sobrevoava uma cidade cinzenta. A tonalidade vermelha e a ave, se fundiram e surgiu a expressão “Ave Sangria”, que passou a ser o nome da banda.
Ave Sangria é uma ave dona de seu próprio voo. É a liberdade de ser, de se expressar. De escolher o caminho a seguir. Ave Sangria passou 40 anos sobrevoando o deserto, até voltar ao palco, onde fez o seu épico de partida. E parte para novos voos e novos horizontes.”
Almir (Ave Sangria): “Isso tudo ocorreu de forma imprevisível.
A fase inicial da trajetória do Ave Sangria, durou 2 anos. Uma carreira meteórica, até aquele momento. Após a proibição do disco, e último show em dezembro de 1974, o Ave Sangria interrompeu sua trajetória. Não poderíamos imaginar o que iria ocorrer depois de mais de 30 anos.
A descoberta da existência da banda na era digital, pelos jovens. Ficamos surpresos e felizes, quando vimos que isso estava acontecendo. Afinal, a partir de 1975, cada músico seguiu seu caminho, e não houve mais shows do Ave Sangria. Enfim, retornamos a estrada, e estamos produzindo o que mais gostamos de fazer: música.
Outras bandas como Devotos (Recife), The Baggios (Aracaju), projeto Reverbo (Recife), Geraldo Maia, Cássio Sete, e muitas outras bandas e intérpretes, fazem muito boa música. E diversas bandas da nova cena, que afirmam ter influência da música do Ave Sangria.
Isso é gratificante, e nos incentiva a continuar cada vez mais firmes na luta.
Pela música e pela vida.”
Almir (Ave Sangria): “Esse fato, da forma como aconteceu, mostra claramente que vida é um permanente processo de transformação, e que ninguém ou nada é capaz de manipular ou impedir que aconteça.
Os jovens e a Internet se uniram e mudaram a história. Estamos valorizando essa oportunidade, realizando esses trabalhos, essas obras musicais. Temos vários projetos, e vamos utilizar os meios digitais possíveis para levar nossa música ao público. Vamos fazer lives, isso estamos planejando e preparando, o que acontecerá em breve.”
This post was published on 17 de agosto de 2020 11:59 am
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