A simplicidade e a paz do campo. O ritmo, o som do riacho, o barulho da cigarra e o vento batendo na cara. O distanciamento da tecnologia e a rotina agitada de uma grande urbe sendo um combustível para lembrarmos das coisas que realmente importam na vida. Nossa essência, nosso lado “bicho”, nossos instintos e a valorização das experiências e trocas de afeto se destacam no horizonte. Todo esse sentimento permeia o clipe para “Calçada” do Bernardo Bauer.
O músico vive em Belo Horizonte (MG), onde ele e sua companheira trabalham de casa, e sempre quando podem reservam um tempo para se refugiar em uma casinha isolada no alto da Serra do Intendente (MG) (uma vastidão sem quase nenhuma intervenção humana entre Lapinha da Serra e Tabuleiro).
“O álbum que gravei totalmente na roça foi o anterior, pelomenosum (2017)…e “Calçada”, curiosamente, é uma música que eu fiz na época do pelomenosum, e só não entrou pr’aquele disco porque eu sentia que ela merecia um arranjo de banda completa para passar a mensagem de uma forma mais certeira, acentuando a dinâmica dessa narrativa que começa como uma reflexão introspectiva e explode na conclusão da história, sintetizando o sentimento de todo aquele ambiente na frase final, “celebro hoje o bicho que sou.
A Calçada é uma casinha no meio do nada, é preciso caminhar quinze quilômetros para chegar lá, não tem energia elétrica, não tem sinal de telefone, mas tem água por todos os lados e o conforto básico que precisamos para viver: cama, fogão de lenha, chuveiro.”, conta o músico em entrevista exclusiva para o Hits Perdidos
Bernardo Bauer “Calçada”
“A ideia central da música é relembrar que antes de qualquer coisa, somos bicho.”
É por esse caminho que Bernardo Bauer ao lado da diretora Julia Baumfeld e Raul Sampaio percorrem na narrativa do videoclipe que busca “apresentar a pequenez e solidão que sentimos nesse paraíso onde o luxo está na própria falta de luxo.
Tentando trazer um pouco desse mundo antigo e perdido no tempo que se faz cada dia mais precioso, remetendo a um imaginário dos sonhos. Lá não tem nada, mas tem tudo.”
Filmado ainda em 2019 por Julia Baumfeld e Raul Sampaio, o vídeo mostra em seus trechos a caminhada realizada ao lado de Bauer durante 4 horas em direção da cainha. Para a produção eles carregaram apenas os equipamentos, roupas e mantimentos suficientes para os 4 dias de locação.
A estética passa por diferentes mídias, digitais e analógicas, com a ideia de transmitir o ambiente, as sensações e para conseguir a imersão do espectador para se teletransportar para o local.
Versos como “cuidem das suas cabeças” ganham novos significados em meio a pandemia e as crises geradas pelo isolamento. A liberdade e a cura do campo sendo fundamentais para este respiro.
Entre o verde, a vida animal e o azul do céu sem poluição, o vídeo faz um belo retrato da vida no campo. A imensidão do horizonte e o ritmo desacelerado fazem o contraste desta emotiva canção com espírito – e alma – animal.
O vídeo foi selecionado pelo projeto Sesc Projeta e será projetado em prédios do centro da capital mineira. O encontro entre o urbano e o campo será um choque para alguns mas permitirá uma ótima experiência para uma cidade que aos poucos foi ganhando cara de metrópole.
“Acho que projetar esse clipe no centro da cidade vai trazer esse sentimento de pertencimento e de saudade, e isso tem tudo a ver com o que eu quero passar. As pessoas vão ver das janelas de seus apartamentos um tipo de paisagem que tem lugar cativo no coração de quase todo belo horizontino, vai ser um experimento curioso.
O meu sonho é que elas se animem a soltar o bicho e uivar no fim da música, uivando pelas janelas, fazendo uma grande orquestra da floresta de concreto – talvez essa imagem seja só utopia minha, mas seria demais.”, conta Bernardo Bauer
Conversamos com o Bernardo Bauer para saber mais sobre a vida em pandemia, urbanismo, videoclipe e a paz do campo.
Bernardo Bauer: “A minha onda como compositor é muito ligada à minha vida pessoal, então isso tudo que está acontecendo está totalmente entrelaçado com o que faço. Sou daqueles artistas que acredita que as percepções e expressões, quanto mais íntimas, mais coletivas.
Lá no âmago nós somos todos feitos da mesma matéria, quando mergulho fundo em mim sinto que encontro um denominador comum com outras pessoas e é aí que percebo o potencial mais forte da minha comunicação. E o momento tem sido muito estranho, mas renovador em várias formas, né?
Essa história das relações totalmente digitais me deixa um tanto atordoado, como todo mundo que é de carne e osso, mas em paralelo a isso eu estou vivendo um dos momentos mais bonitos da minha vida durante essa pandemia, com o nascimento da minha primeira filha, Rosa (em fevereiro). A minha vida revirou de cabeça pra baixo, meu sono já não é o mesmo e tenho me sentido cansado. Os boletos não param de chegar e tá difícil de trabalhar com música. Junto a isso tudo tem uma dose forte de euforia e esperança na presença dessa neném que desvirou o jogo.
Então aproveitei pra começar a bolar um novo disco, em parceria com a Laura Moretzsohn (minha companheira e artista responsável pelas capas de todos os meus discos e singles) em homenagem à nossa menina e à este momento.
A gente está começando a desenvolver juntos um projeto audiovisual para esse disco, num processo de composição e linguagem totalmente novos para nós, e isso tem sido o que mantém a chama acesa. Usando o tempo de reclusão para mergulhar num percurso novo, tentando perceber esse momento como um casulo para gestar um projeto futuro.
No fim das contas, é mais um substrato pra deixar alguma coisa que vai ser relevante pra mim até o dia que eu morrer, então, na média de todas as loucuras, eu me sinto mais feliz do que triste.
“Calçada” sintetiza bastante esse sentimento e até barulhos dos bichos e ambiências você quis trazer para ela, como vê que a busca pelo eu interior se ressignificou nestes estranhos tempos?
Bernardo Bauer: “Na verdade o álbum que gravei totalmente na roça foi o anterior, pelomenosum (2017). O Pássaro-Cão (2019) foi gravado na Ilha do Corvo, estúdio capitaneado pelo Leonardo Marques, que produziu o disco. E “Calçada”, curiosamente, é uma música que eu fiz na época do pelomenosum, e só não entrou pr’aquele disco porque eu sentia que ela merecia um arranjo de banda completa para passar a mensagem de uma forma mais certeira, acentuando a dinâmica dessa narrativa que começa como uma reflexão introspectiva e explode na conclusão da história, sintetizando o sentimento de todo aquele ambiente na frase final, “celebro hoje o bicho que sou”.
A Calçada é uma casinha no meio do nada, é preciso caminhar quinze quilômetros para chegar lá, não tem energia elétrica, não tem sinal de telefone, mas tem água por todos os lados e o conforto básico que precisamos para viver: cama, fogão de lenha, chuveiro.
Hoje, nesses tempos loucos, percebo que lá será o bunker perfeito do pós-apocalipse. Acho que essa pandemia veio só pra confirmar um sentimento que eu já tenho com o mato, de que a salvação da depressão (pandemia que se alastra mundo afora há muito mais tempo que o COVID-19 e agora se acentua nas grandes cidades) está na fuga para o mato, no contato com o dia e com a noite.
No apagar das luzes, na orquestra das cigarras ao entardecer – e essa parte de pesquisa sonora dos ambientes é a paixão da minha vida.
Pode parecer pura poesia mas eu estou falando de uma coisa totalmente prática e real: quatro dias sem contato com a tecnologia na Calçada podem provar isso para qualquer um, mesmo o mais urbanóide dos paulistanos é tão bicho quanto eu, e a gente precisa dos estímulos da natureza para gerar os hormônios que nos iludem – ou confirmam – de que viver é sim uma coisa boa.”
Bernardo Bauer: “Belo Horizonte é esse contraste purinho. Aqui quase todo mundo tem uma relação com o interior de Minas. Eu acho que pra quem é daqui, esse contraste é uma coisa ainda mais estranha, porque todo mundo tem um certo amor pelo mato. Mas tem esse lance, cada avenida é um rio canalizado por baixo do concreto.
Claro que existe uma galera que chama isso de progresso, e nessa polarização doentia do campo das idéias e dos caminhos que a gente deve tomar os ânimos se acirram nas discussões: mas eu sei que até o tio reaça sente prazer em ver o sol se pôr no horizonte, ou em sentar na beira de um riacho limpo e ver as folhas flutuando sobre a água morro abaixo.
Então eu falo neste assunto muito mais como uma forma de relembrar esse sentimento, de despertar uma saudade do mato e uma vontade (mesmo que inadmitida) de preservar o que há de bonito do que como uma forma de crítica direta a esse tal progresso – a sugestão fica no ar. Acho que projetar esse clipe no centro da cidade vai trazer esse sentimento de pertencimento e de saudade, e isso tem tudo a ver com o que eu quero passar. As pessoas vão ver das janelas de seus apartamentos um tipo de paisagem que tem lugar cativo no coração de quase todo belo horizontino, vai ser um experimento curioso.
O meu sonho é que elas se animem a soltar o bicho e uivar no fim da música, uivando pelas janelas, fazendo uma grande orquestra da floresta de concreto – talvez essa imagem seja só utopia minha, mas seria demais.”
Bernardo Bauer: “Cara, acho que você disse tudo. As coisas simples foram escancaradas, a pessoas passaram a perceber mais suas casas e toda a forma que vivem. Muita gente na cidade usava a casa só como dormitório, passava a semana inteira fora e quando tinha um tempo livre corriam pra rua. Agora é hora de olhar pro nosso ambiente e pras nossas relações mais próximas, né?
Quem já cultivava essas coisas simples teve menos dificuldade pra se adaptar. Acho que eu tive muita sorte nisso tudo: eu e a Laura sempre trabalhamos de casa, e por isso a gente curte muito cuidar das nossas plantas, cozinhar nossa comida, os espaços são agradáveis e organizados de um jeito que nos deixa confortável pra passar o dia-a-dia. Além disso, nós vamos pra roça sempre que o trabalho permita ficar uns dias sem internet. E lá a vida acontece de verdade.
É muito bom ficar sem a opção do celular, o dia parece durar bem mais sem esse vício, a gente dorme e acorda mais cedo, produzimos mais. Eu costumo levar computador, placa de som e microfone e deixo no jeito pra quando bater qualquer idéia eu gravar, e dessa vivência estão surgindo coisas novas, então sinto que está sendo produtivo sim.
Só sinto saudade dos amigos, dos shows, dos ensaios (eu amo ensaiar), de carregar instrumento pra lá e pra cá, viajar com a banda. Esse processo solitário tem um outro tipo de mágica, mas depois do pelomenosum (2017) eu tinha prometido pra mim mesmo que eu ia coletivizar mais a minha música, e quando comecei a empolgar com os shows com banda estou sendo obrigado a voltar pras raízes por um tempo. Fazer o quê? Vamos vivendo cada dia de uma vez.”
Julia Baumfeld: “O processo de realização do clipe foi a própria experiência de viver a Calçada, desde sair da cidade, atravessar a serra e chegar no lugar de natureza pulsante, que a música do Bernardo traz pra gente através do som e palavras.
As imagens buscam mostrar a sensação de estar lá, lugar onde se percebe o dia e a noite nas mudanças do céu, vemos o horizonte, as plantas e os bichos, e tocamos a água logo quando brota do chão.
Filmamos a paisagem e a interação do Bernardo no ambiente, usando imagens digitais e em fita 8mm analógica, trazendo a sensação de um tempo que está em outra lógica, dilatado, um mergulho fora do calendário.
Ao voltar da viagem, reunimos todas as imagens e a montagem segue o fluxo da música, começando lentamente e adentrando no universo da Calçada aos poucos, seguindo o ritmo de uma travessia.”
This post was published on 12 de agosto de 2020 2:04 am
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Obrigado, Bauer! Canção e imagens pra cuidarmos das nossas cabeças, um remédio, um respiro!
Essa música é linda mesmo!