A ideia de um quarteto vocal evoca imediatamente imagens da era de ouro da rádio, ou talvez algo meio bossa-nova da época dos festivais da canção. Porém basta a primeira nota de guitarra soar para perceber que com a Quadrilha estamos em território bem diferente.
A sofisticação das harmonias e arranjos vocais vem envolta por uma constelação de percussões, guitarras com ecos invertidos e distorções estridentes, baixos hipnóticos e uma boa dose de onomatopeias. A sonoridade do grupo está tão próxima da mais fina psicodelia nordestina quanto dos quartetos cariocas de setenta anos atrás.
Essa é a maneira simples de tentar descrever a Quadrilha. A verdade é que a combinação dos elementos resulta num EP de sonoridade particular, ao mesmo tempo familiar e inédita.
As referências ao universo do interior nordestino são muitas: o próprio nome do grupo, as ocasionais levadas de triângulo e zabumba costuradas por uma linha de sanfona, algumas referências diretas nas letras e a capa do disco, enfeitada de bandeirinhas de São João e até um megafone dublando de cuscuzeira.
Porém as canções são universais: relatam paixões atravessadas, ressacas morais e físicas, diversas odes à madrugada e toda sorte de coisas fantásticas que nela habitam.
É dessa atmosfera surrealista da madrugada, com suas cores, cheiros, fumaças e abismos que é feito o universo da Quadrilha. A poesia fantástica é na verdade bem real: o habitat natural do quarteto é a boemia da zona sul pessoense. O grupo nasceu quase por acaso nos palcos do Recanto da Cevada, um dos principais redutos de música autoral da cidade.
Em 2018, o trio Pedro Índio Negro, Guga Limeira e Elon Barbosa se juntou para participar do evento Terças Parahybridas, organizado pelo também compositor e cantor Titá Moura, cujo objetivo era apresentar uma formação efêmera dessas por semana. Ninguém contava com a afinidade imediata que o trio teve.
Quando, numa dessas semanas, Guga se ausentou para sair em turnê com a banda-fôrra, entrou em cena o quarto elemento, Amorim. Com a volta de Guga, em vez de voltar para o formato de trio, o quarteto se consolidou. O circuito etílico do bairro dos Bancários foi fermento para a Quadrilha, que rapidamente se espalhou para outros palcos e para madrugadas de outras cidades.
No grupo não há voz principal. Todos são solistas, todos acompanham, todos compõem e todos já tinham um trabalho anterior consistente. Pedro Índio Negro, segundo Guga, o homem cujo nome é um verso.
Criado em lar musical, filho do compositor Pedro Osmar e da cantora Gláucia Lima, começou a cantar cedo e já era bastante íntimo dos palcos. Comandou por algum tempo a banda Flor de Pedra, com a qual lançou um EP em 2017, e também apresentava seu show solo, acompanhado pelo alto escalão dos instrumentistas paraibanos.
Compõe maracatus, cirandas, sambas e lambadas, mas a voz capaz de agudos afiados trazem a marca de quem passou a adolescência escutando Guns ‘n’ Roses e Deep Purple.
Foi num show de Flor de Pedra que Elon Barbosa, o baixo da Quadrilha, fez sua primeira aparição num palco pessoense como convidado especial para cantar “Abismo”, composição de Pedro Índio que anos depois se tornaria o primeiro single lançado pelo quarteto. Mas Elon mexe com música desde a primeira infância em Pombal, no sertão paraibano.
A primeira composição foi feita aos quatro anos de idade, registrada anos depois num disco de seu pai, o cantor e compositor Luizinho Barbosa. Na adolescência, tocou bastante pelo interior, participando de festivais, concursos, programas de televisão, até pousar na capital para estudar e eventualmente conhecer seus futuros colegas de Quadrilha.
Guga Limeira não apenas já tinha um trabalho consistente como já tinha experiência em quartetos vocais. A Troça Harmônica foi onde Guga experimentou suas primeiras composições ao lado dos primos Regina e Chico e do amigo Lucas Dourado.
O grupo, que tem um disco lançado em 2015, foi responsável por acostumar o público paraibano às possibilidades dessa formação. Além da experiência no naipe de vozes, Guga tem treinado suas habilidades de frontman na banda-fôrra, com a qual lançou um EP em 2015 e um disco em 2018.
Amorim é o único que não tem a voz como instrumento principal e que tem uma educação musical formal. Graduado na UFPB e educador há muitos anos, além das composições e performances tomou para si os trabalhos mais técnicos do quarteto.
Ele gravou a maior parte dos instrumentos das bases do EP e até registrou os arranjos vocais em partitura. O ouvido científico de Amorim garante o polimento dos contrapontos mesmo nos shows mais espontâneos.
Graças à experiência do time, a Quadrilha flui tranquilamente na espontaneidade. Os arranjos são feitos cantando, com contribuição de todos. Gravar um grupo assim tem tudo pra dar certo em qualquer situação. Mas o resultado do trabalho no estúdio Gota Sonora teve a importante contribuição dos produtores Helinho Medeiros e Jader Finamore.
Além do trabalho técnico excelente, o single Abismo também mostra os produtores em ação. Jader, cavaquinista da banda de forró Os Fulano, empresta o triângulo, enquanto Helinho, tecladista de Chico César (dentre muitos, muitos, outros), entra com a sanfona sendo quase que uma quinta voz no grupo.
O EP só não faz jus a um aspecto importante da Quadrilha: com menos de 25 minutos, é uma seleção reduzida do que o grupo é capaz.
Os shows chegam facilmente à marca das duas horas, e dependendo do tamanho da madrugada podem ir bem mais longe entre improvisos, o vasto repertório de composições próprias de cada um dos quatro e versões arejadas de compositores paraibanos: de clássicos como Cátia de França aos mais lado B como Paulo Ró e Adeildo Vieira até contemporâneos como Titá Moura.
O alento é imaginar que todo esse baú deve se converter em lançamentos futuros. Aguardemos.
This post was published on 27 de janeiro de 2020 12:43 pm
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