Outro dia acabei lendo uma frase de uma artista que viveu tempos difíceis de repressão, racismo, intolerância e misoginia. Era algo como “Um disco para ser sincero tem que refletir seus tempos”. E se eles são sombrios, eles tendem a ser nebulosos, tristes, confusos e desafiadores. Não adianta, a sensibilidade de um artista de fato sempre acaba captando essas energias pairando no ar.

Fato é que o conservadorismo no Brasil não vem de hoje, não vem de 2014, e sempre teve que ser combatido ao longo de nossa jovem democracia. Por diversas vezes vimos tentativas de derrubá-la e por si só estamos vivendo “tempos loucos” onde a intolerância, os preconceitos e radicalismos acabaram saindo do armário.

Em tempos de um tiroteio de Fake News, acusações não fundamentadas, amizades sendo quebradas, e agressividade em cada esquina do país, fica até difícil encontrar um canto de paz. Por mais que tentemos ficar alheios ao que está acontecendo, acabamos não tendo tempo para refletir e manter conversas sadias.

Ouço até falar de pessoas saindo de casa para sua jornada habitual e no transporte público já olham para os outros pensando “esse tem cara de que vota em fulano”, “esse tem cara de isentão” e por aí vai. De fato estes “tempos loucos” acabam deixando todos nós, um tanto quanto insanos. Muitos artistas traduzem esse medo, reflexão, e sufoco, em poesia.

“Os problemas vão ficar
Mas foi bom te encontrar
Estamos juntos numa mesma dimensão
Flutuamos nessa mesma direção

Tempos loucos por aí
Feche a porta agora
Tempos loucos por aí
Feche a porta agora

Deixe tudo lá fora
E esqueça o que faz mal”, The Outs “Tempos Loucos”, 2018


The Outs lança seu segundo álbum e divaga sobre os “Tempos Loucos” em que estamos vivendo. – Foto Por: Coagula

Após divulgar o álbum de estreia, Percipere, nos últimos 2 anos através de criativos videoclipes, que inclusive ganharam destaque no Hits Perdidos, os cariocas chegam neste fim de ano para lançar seu segundo álbum, Enquanto o Futuro Não Vem.

Agora, com a saída do antigo vocalista Tiago Carneiro, o trio traz uma gama diferente de influências. Ainda com o pop psicodélico nas veias, eles trazem também referências de Clube da Esquina, um tom ainda mais açucarado e diversas referências a música brasileira.

Mudanças, toda banda acaba inevitavelmente passando por elas, tanto é que quando pude assistir ao show do The Outs em Santa Rita do Sapucaí (MG) em sua formação eles contavam com Murilo Sá. O novo registro também conta com a novidade de ter sido gravado de maneira tranquila e ao lado do produtor Rafael Ramos. Eles ficaram um mês confinados no Estúdio Tambor (RJ) e assim como o disco anterior, o álbum saiu pela Deck.

Em sua formação eles contam com Dennis Guedes (guitarra/baixo/vocais), Gabriel Politzer (bateria) e Vinícius Massolar (guitarra/teclado/vocais). Sobre o processo do novo álbum eles comentam:

“Apesar das canções já existirem em versões demos, a partir do momento em que entramos no estúdio, algo muito mágico sempre acontece. Pequenas mudanças em interpretações, um errinho que acaba somando para a música ou até um imprevisto que transforma aquela interpretação em a algo mais, um barulho que não foi planejado, mas que soou bem. Tudo isso foi tornando a experiência ainda melhor”, conta Gabriel.

A insanidade de nossos tempos e o que esperar do futuro talvez seja o ponto de equilíbrio do álbum que traz diversos aspectos sobre o momento recheado de inseguranças, ansiedade e repleto de questionamentos.

“De um modo geral, as músicas falam de como está sendo viver e encarar o mundo nesse cenário mais estranho e conservador que estamos vivendo. Tratamos de angústias mais pessoais como ansiedade, medo de onde vivemos, mas também de ter esperança e lutar por um futuro melhor, sem a ameaça do fascismo, opressão e preconceitos”, explica Vinícius. 

The Outs – Enquanto o Futuro Não Vem (19/10/2018)

É até curioso escrever sobre o The Outs pela primeira vez após tantos anos ouvindo o som da banda. Pude conhecer o trabalho deles através do Spiral Dream EP (2014). Nesse meio tempo, além dos discos autorais, eles ainda estiveram presentes nos tributos ao Oasis, influência perceptível dos primeiros trabalhos, e do Pato Fu, este último promovido pelo Hits Perdidos em parceria com o Crush em Hi-Fi.

Sendo assim, ver a evolução sonora e trazer novas gamas para sua sonoridade acaba sendo um processo interessante pelo ponto de vista mais analítico. Ao meu ver abraçar o pop e composições em português foi um grande acerto. O disco conta com 10 canções e 35 minutos de duração.



“Tempos Loucos” chega derretida e sintetiza o portal que é aberto após apertar o play. Esses tempos confusos onde o conservadorismo, ódio e conflitos acabam sendo protagonistas do dia-a-dia.

É também um olhar para o futuro, em que não será em uma eleição ou governo que vamos resolver todos os problemas. O escapismo de toda essa loucura acaba até sendo um recurso para manter sua mente sã. Os teclados sessentistas dão todo o charme para a canção.

No mês passado o single inclusive ganhou um bem humorado videoclipe que claro teve destaque na lista de melhores clipes do mês do Hits Perdidos.



Com um tom mais tropical e psicodélico, “Mistério”, é um pop chiclete e tem o poder de embalar os fãs nos shows. Fãs de Beatles vão simpatizar com a canção de cara, com suas passagens melódicas e seu refrão que fica na cabeça.

A brasilidade, de grupos como Clube da Esquina e Mutantes, acabam reluzindo na pop e cativante “Águas Que Passam”. Esta que traz uma energia nostálgica, conta com solos de guitarra sinestésicos e poderia ganhar um videoclipe em V8.

Mais calma e com tom de balada temos na sequência “Mágica”, que retrata a fuga como algo mágico. Me lembrando muito o filme “El Labirinto Del Fauno” onde para maquiar tempos duros da ditadura franquista, a personagem vive em um “mundo de faz de conta”. Mágica, poeira espacial e clima de guerra civil.

O pesadelo parece equalizar em “Sem Você”, com direito a monstros, tempestades e um cenário de completa perdição. Solitário, se auto-sabotando e afogado entre lágrimas e desilusões.

Flertando com o folk temos “O Tempo Pode Passar” que poderia até fazer parte da trilha de Twin Peaks. Sua melodia ainda lembra alguma das canções da série estadounidense. Destaque para o trecho “Abra sua porta veja o sol brilhar / desperte desse sono que é de amedrontar / o muro que você acabou de derrubar / ruiu em direção ao que já foi e não adianta mais pensar que você vai falhar no final”.

Com um espírito mais oitentista temos “Balada de Qualquer Lugar” que fala sobre como a companhia, embriaga pelo amor, consegue fazer você atravessar qualquer situação por mais adversa que ela seja.

“Perceber que o mundo assusta mas não temos o que fazer / vamos seguindo assim / vou me perder em qualquer lugar / já não tem nada demais aqui / e com a força que só você pode me dar / eu vou lutar também”

“Crença” já traz aquela aura mais suja do rock psicodélico com um pé no garage rock de grupos como o The Black Angels. Com um pouco mais de um minuto e meio, e para um disco de baladas, pode se dizer que é quase um punk rock do disco e mergulha na escola do The Sonics.

O lado good vibes volta a ser protagonista em “Janela Azul”, uma das mais joviais do registro. Ela reverbera nostalgia e traz elementos que deixam ela ainda mais imersiva como se estivéssemos à bordo de um carrossel.

Quem tem o papel de encerrar o álbum é justamente “Sonho” que chega com teclados densos e empatia. Uma canção sobre estender a mão para mostrar que não estamos sós no meio deste conturbado universo. Com direito a solos, abstrações, viagens psicodélicas à lá Syd Barrett, delírios e refúgios o álbum se encerra.



Um olhar para futuro em tempos confusos. Seria provavelmente uma boa forma de sintetizar o segundo disco do The Outs. Amadurecidos e com novas referências que vão Syd Barrett a Clube da Esquina, os cariocas traduzem através de metáforas o medo do que o futuro nos reserva.

Mas ao invés de simplesmente querer fugir para as colinas, eles mostram maneiras de como podemos suportar a pressão – e o clima de guerra à céu aberto. Seria algo como sobreviver a 1984? Talvez. Mas o álbum mostra como a empatia pode sim ser uma forma de transformação.

This post was published on 26 de outubro de 2018 11:10 am

Rafael Chioccarello

Editor-Chefe e Fundador do Hits Perdidos.

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