Na vida de um artista nada é tão libertador quanto conseguir alinhar sua persona artística com quem você realmente é. Entre o palco e atuação muitas vezes só os mais próximos conseguem captar o que realmente está sendo dito naquelas entrelinhas.
Porém a partir do momento em que tudo se confunde e o que antes era tão pessoal começa a ter uma resposta capaz de tocar as pessoas das mais diversas formas…que faz com que o quebra-cabeça comece (realmente) a se encaixar.
Já conhecia o trabalho do Luis Gustavo Coutinho com sua viola no Falso Coral. No começo do ano vi o videoclipe de “Gostar de Quem”, no qual ele de cara mostra a perspectiva gay sobre relacionamentos e seus desenrolos.
O clipe dirigido por Thais Taverna consegue traduzir toda a subjetividade da passagem de maneira bastante delicada. Lembro até que escolhi o vídeo para passar no Udigrudi da Play TV logo no programa de estreia da parceria.
“Esse projeto solo como um todo fala sobre dilemas e reconstrução pessoal, que são temas universais, mas que eu contextualizei no ponto de vista de um cara gay que mora numa cidade imensa que não é onde ele nasceu. Eu senti a necessidade urgente de falar sobre isso e fazer um clipe sobre isso, porque a questão da representatividade é importantíssima e por estarmos construindo uma rede tão legal de produções LGBTs na música brasileira”, diz o músico.
“A faixa “mãe” de todo este projeto surgiu turbulenta. Por semanas não me imaginava cantando-a sozinha mas também não via ninguém além de mim cantando uma letra tão
pessoal. Me convencer que eu poderia sustentar um trabalho solo foi um processo longo.
Em Janeiro desse ano, depois de ter lançado “Gostar de Quem” como primeiro single e clipe do projeto, recebi tantas mensagens e um retorno tão lindo de gente que se identificou com a música e foi muito tocado por ela e pelo clipe, que pensei muito sobre como nossas experiências tão íntimas podem ressoar tanto. E isso me deu mais força pra dar tudo de mim na jornada que foi concretizar esse álbum.
O primeiro verso dela vem de algo que ouvi um dia antes de terminar definitivamente um relacionamento que durou 6 anos entre idas e vindas: “Olha, é você que traz névoa em dia de sol”. E era literalmente um dia de sol que ficou cheio de neblina de repente. O paralelo foi inevitável e o resto é história.”
O mineiro, de Serra da Saudade (MG), radicado em São Paulo trouxe para o projeto batizado de Bemti beats eletrônicos, pop, histórias pessoais, parcerias e sua viola. Este ponto de partida permitiu com que ele conseguisse trazer a tona outros recortes de suas frustrações, enfrentamentos e bagagem para um disco que narra diversas transições de sua vida.
O resultado tem agradado bastante o músico que tem se sentido abraçado pelos feedbacks. Pessoas que tem se solidarizado com as histórias e que a tomam para si como ponto de reflexão. O que para um artista é algo sem preço.
Formado em audiovisual, Bemti faz parte da Falso Coral a 6 anos onde toca viola. O músico relata que o voo solo começou a ganhar asas durante um festival.
“O primeiro tijolo do disco surgiu no estúdio Casa do Chá, em Goiânia, onde gravei “Gostar de Quem”, durante o Festival Bananada do ano passado (2017). Quando ouvi a primeira mix dessa música o conceito sonoro do disco já estava claro: a viola caipira misturada com vários layers de synths e a minha voz sendo pela primeira vez a voz protagonista de uma música”, conta.
Gravado em São Paulo entre os estúdios Traquitana, estúdio do Bixiga 70, e o estúdio Flap, ele também trouxe um pouco dos diversos “brasis” presentes no país através de participações especiais.
Entre os artistas participantes encontramos: o pernambucano Johnny Hooker em “Tango” (que ganhou um videoclipe lançado recentemente), Natália Noronha (Plutão já foi planeta), em “Às vezes Eu Me Esqueço de Você; e Tuyo, em “Outro”; Fernanda Kostchak; além de um coro gravado entre Belém e Cuiabá por Marisa Brito e Edvaldo Oliveira.
O que talvez conscientemente ele não tivesse pensado é que suas histórias poderiam gerar uma identificação com outros públicos além do esperado. Visto que histórias do cotidiano, migração, fins de ciclo, problemas, aceitação e perspectiva são temas universais.
Porém acredito que seu ponto de vista tão aberto e confessional que conseguiu de fato com que os diálogos fossem se construindo. A identificação não por sua visão ou narrativa mas sim por também ter uma outra história para compartilhar.
Afinal as pessoas sentem as dores por mais que as histórias não necessariamente tem o mesmo background, perspectiva ou correlação.
São dez canções, 34 minutos, confissões, perspectivas, desabafos e caos libertador. Talvez seja desta humanidade e olho no olho que façam com que o álbum logo dê a liberdade para que um diálogo imaginário seja construído entre artista e ouvinte.
Nada como começar um disco tão confessional e pessoal do que voltar ao começo da história: “De onde eu vim”. É desta forma que o músico mineiro passa de maneira simbólica em sua introdução que conta com sons ambientes gravados direto da fazenda de sua avó em Serra da Saudade (MG).
A viola herdada pelos avós pede passagem e o disco já inicia falando sobre a “queda livre”, apontando o fim do relacionamento e a mudança para uma grande metrópole como São Paulo.
De maneira esperta já engata em “Me Dei um Novo Nome” que fala sobre a liberdade em se soltar mas a dor em recolher “cacos” de um coração por muitas vezes esfacelado que insiste em o pertencer. A viola carrega o drama e os beats reforçam o processo de reconstrução.
O pop e radiofônico hit “Gostar de Quem” é a primeira que mostra ao que o disco vem. Não por ser o single mas sim por deixar a máscara social de lado e mostrar sua perspectiva sobre voltar a caminhar após o baque do fim de um longo relacionamento de maneira bastante íntima. O depois, o seguir em frente, o errar (por diversas vezes) e o se descobrir.
As paixões fulminantes ganham contornos em “Tango”, música que conta com a participação de Johnny Hooker. Curiosamente o artista revela que ambos tiveram relacionamentos intensos e com final não muito feliz envolvendo cariocas.
A intensidade, os receios, os bloqueios, aprisionamentos e frustrações ganharam contornos em uma letra que sabe voltar para o refrão – e conta com violinos que deixam ela ainda mais dramática feito um desmoronar do Pão de Açúcar até Copacabana.
“Eu Te Proíbo De Ter Esse Poder Sobre Mim” deixa claro desde seu nome que fala sobre a ruptura. A libertação de algum relacionamento nocivo, seja ele amoroso como de uma amizade que se revelou não muito verdadeira.
Esse tom de “emancipação” mostra só como ele se sente melhor agora que não tem mais uma pedra em seu caminho. O interessante é que a viola caipira mostra o choque entre o passado e o presente com seus beats – e samples – modernos.
A próxima, “Às Vezes Eu Me Esqueço de Você”, é um pop chiclete que conta com a participação de Natália Noronha da banda potiguar Plutão Já Foi Planeta. Luis até brinca que durante a composição ele passou a chamar ela de um “reggaeton
indie futurista”.
Fato que ao ouvir lembrei direto do disco Give Up do The Postal Service tanto pelo dueto quanto pelo seu tom um tanto quanto de trilha de videogame – e por sua vez estar recheada de nostalgia.
Feito o lembrar de uma história de verão. Aquele amor que não sobe a serra, possuí algumas doses de loucura mas que ajuda no processo de autoconhecimento e reconstrução.
Já “A Gente Combina” tem a atmosfera das pistas de dança dos anos 80 com um synthpop bastante reverberante. Segundo Bemti, a música é sobre lidar com aplicativos de relacionamento, como por exemplo Tinder e até se dar bem com isso.
Ele até brinca que a ideia para o som era ser um hit perdido do brit rock do começo dos anos 00. Eu diria que o instrumental remete até mesmo ao CSS que levou o nome do BR para fora com uma estética parecida e por sua vez nostálgica.
“Carta a um Marinheiro” conta com a participação de Marisa Brito (Euterpia) e Edvaldo Oliveira, um amigo de adolescência que foi colega de Luis durante o ensino médio e de um curso técnico em mineração.
O mar aparece no sentido figurado na canção que fala sobre estar apaixonado e aprender com um relacionamento que por sua vez é aberto pois a outra pessoa se sente melhor assim.
O contraste com o interior (da viola) e o mar de seu ritmo que mostra ainda mais como sair do eixo (se apaixonar novamente) dão a tônica do balançar que a vida pode proporcionar.
Dizem que você só é feliz em sua plenitude junto de outro alguém quando você se basta com si mesmo e tem amor por quem é, o que representa e de onde veio. Pensando nisso Luis gravou “Jaguar”. Única canção em inglês do álbum que traz batuques, coro de crianças e finalmente mostra a libertação.
“O coro cantado pelas crianças veio na minha cabeça embaixo de uma cachoeira imensa no meio da Amazônia (uns 100 km ao norte de Manaus, em Presidente Figueiredo).
Após 10 minutos levando uma torrente de água no corpo, comecei a ouvir o coro e as palavras na minha cabeça.
Cantei, gravei no celular, e depois encontrei todas as palavras em subdivisões do tupi (peixe preto, água-casa, onça-mãe). Tive sorte de encontrar um coro de crianças
que cantou tudo exatamente do jeito que eu “ouvi” da cachoeira, mas como tudo pode ter sido só um estado de transe provocado pela quantidade de água, prefiro não chamar o que eu ouvi de tupi.
É um coro “inspirado” em tupi, captado nos ares da Amazônia. A letra em inglês que
começou a fluir assim que eu gravei o coro no celular é inspirada por situações vividas pela família da minha mãe que é de origem indígena. Situações como atravessar 300
km pelo interior de Minas a cavalo nos anos 50, tendo que esconder os filhos das onças que vinham caçar à noite.”, conta o músico
Chegamos a última canção do disco – e a da entrega. Isso mesmo a solar, romântica e apaixonada “Outro” que conta com a participação do incrível trio Tuyo, de Curitiba (PR). Com direito a teclados, coros, emotividade e passar por cima do passado que o disco vai chegando ao seu final em tom otimista e vislumbrando um futuro melhor.
Da queda, passando pelo recomeço, descobertas, erros e alcançando a plenitude. Este é o roteiro de Era Dois, primeiro voo solo de Luis Gustavo Coutinho, o Bemti. Com sua viola em mãos e uma porção de convidados do mais alto escalão do indie brasileiro, ele abre o coração para falar sobre rupturas, paixões desenfreadas, auto-aceitação, inseguranças, tensões, desequilíbrios e retomada da confiança.
Em um disco que flerta abertamente com o pop, synthpop, rock alternativo e que experimenta o rústico do campo (viola) com os beats modernos de programação.
O resultado agrada a diversos ouvintes que acredito eu que ao ouvir também se sentem a vontade em compartilhar suas histórias e celebrar os diversos recomeços que a vida nos permite.
This post was published on 21 de agosto de 2018 11:10 am
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