A In Venus é uma das bandas com um dos discursos mais afiados do underground paulistano e com muito a dizer. Tanto que a expectativa para ouvir Ruína era gigantesca desde que saiu o single “Mother Nature”. Já com todo aquele plano conceitual de a cada linha da canção passar vários ensinamentos e aprendizados.
Em Ruína a faixa “Mother Nature” é a de número 5. E consegue te pegar logo nos primeiros acordes com toda sua vitalidade e vontade de lutar contra as injustiças de um mundo tão devastado e problemático. A produção artística ficou por conta do Lucas Lippaus (Sinewave Label).
Na época do lançamento do single Cintia Ferreira (Teclados e Vocais) comentou para a Noisey:
“Todas nós mulheres carregamos um passado histórico de termos sido colocadas como bruxas por questionarmos o patriarcado e de termos sido mortas queimadas por termos cuidado umas das outras”, disse. “‘Mother Nature’ é uma saudação de que todas nós temos a Mãe Natureza dentro de nós e de que todas somos fortes, tal qual a Natureza vem provando todos os dias”.
O lançamento do single veio logo com um Zine acompanhando. Que você pode ler aqui. Sobre ele Cint comentou em novembro:
“Por causa do tema da música, resolvemos convidar algumas mulheres para escrevem sobre o assunto — tanto poesias, quanto textos mais explicativos ou de linguagem mais leve — para compor os textos do zine. As ilustras foram feitas pela Carol Serrano, que apavorou nos desenhos”
O video clipe saiu em abril e claro que estou a lista dos 60 clipes independentes lançados no mês do Hits Perdidos. Sobre este no começo do mês comentei por aqui:
Como sempre fui muito fã de Babes In Toyland, Breeders, Savages, Rakta e Sonic Youth quando pude conhecer o som da In Venus foi paixão a primeira vista. Estou inclusive animadíssimo para o show de estreia do primeiro álbum da banda paulistana, Ruínas, que acontece na sexta-feira (26/05) no Estúdio Aurora (Pinheiros – São Paulo). O disco sai pelos selos Howlin’ Records, PWR Records, Efusiva e Hérnia de Discos.
No começo de abril foi a vez de fazer o devido “esquenta” com um clipe feito com imagens “Creative Commons” que juntas – através da edição da Cintia Ferreira – passam uma mensagem forte e de transformação.
Nas palavras da banda: “O mundo desmorona em grande velocidade. A Grande Mãe dá seus últimos suspiros antes de convalescer e o caos completo se estabelecer. Aceleramos o tempo, desenvolvemos máquinas e destruímos nossa essência, o que nos criou, o que nos mantém vivos nessa selva de cimento. Esquecemos daqueles que zelam, prezam e sobrevivem por Gaya, à troco de migalhas. O resultado dessa caçada é a morte lenta e sufocante. Arquétipos precisam ser mudados. IMEDIATAMENTE. COM VOCÊS, MOTHER NATURE”
Mas como disse anteriormente elas tem muito a dizer então nada melhor do que separar trechos do manifesto que foram soltando aos poucos no Facebook da banda para aquecer para o grande lançamento. O discurso toca em diversas feridas de nossa sociedade doente, nefasta e repleta de problemas, injustiças, preconceitos e desigualdades.
Manifesto da In Venus
“Das ruínas, os destroços, os vestígios de uma estrutura sólida que desmoronou de forma incontrolável e desesperadora. A ânsia em massa de uma perturbação individual que sufoca, pressiona. Um esgotamento abatido expresso em forma de inquietação.
Esgotamento chamado de stress e ansiedade por aqueles que dizem deter conhecimento sobre nossos corpos, mas que não auxilia em nosso equilíbrio e só nos direciona a uma medicina burra, na verdade inteligente sob a ótica da riqueza.
Equidistantes, corremos contra do capital, que massacra nosso corpo, dilacera nossa mente, reduz-nos a números. Junto aos mecanismos do Estado, esse sistema tira-nos direitos, a liberdade e as garantias fundamentais, explorando-nos até a total exaustão da nossa matéria.
Quanto mais trabalhamos, quanto mais nos esforçamos, mais riquezas produzimos para poucos. Trabalhamos pra quê? Pra quem? Por que nos dedicamos em troco de miséria? Por que renunciamos nosso tempo?
Do trabalho, o dinheiro para sobreviver. Os instintos de conforto aos quais somos submetidos. Compras programadas sem necessidade real. Uma das técnicas que esses sistema encontrou de nos acorrentar. Nos tornamos impulsivos, graças a ansiedade. A insônia que congela e paralisa o tempo. Tudo é pra ontem, mas não dormimos. Então o amanhã é o ontem, que é a próxima semana. A próxima semana é o próximo mês, o próximo mês é o próximo ano, e nunca encontramos uma brecha para nós mesmas/os.
O tempo, tão sagrado e onipresente, é sacrificado por aquilo que nos foi imposto como obrigatoriedade. Ele, que até à pouco era lento, se tornou rapidamente devastador. A destruição é inevitável. Destruição que nos coloca em face a derrota.
Respire, se acalme, seja zen, seja rebelde, seja princesinha, seja playboy, seja o padrão, saia do padrão, crie novos padrões, seja o que o sistema quer. Por que ele se apropria de nossas crenças e filosofias. Por que ele é quem dita as regras. Será?
Pensamos em desistir, em nos render. O sistema quer nos derrubar para nos manter eternos submissos. Como estimulamos em nós mesmos a saída desse sistema? De onde achamos a força para derrubá-lo?”
“Em meio aos edemas da sociedade, nossas vidas particulares. Egocentrismo, aparência, vantagens, posses, servidão física, ostentação, realização profissional, status, família tradicional, concorrência, meritocracia, religião, relacionamentos superficiais, confusão mental, o extremo sentimentalismo, a auto-cobrança. A globalização levada ao seu extremo. A padronização coletiva não deixa nossa essência fluir.
O desespero pela integração e aceitação. O caos social. A implosão individual. A RUÍNA.
E a reclusão e a reflexão se fazem necessários. Um momento de repensar conceitos, de analisar o mundo, de observação interna. Quietude necessária que é antagônica à inquietação do cosmos. O universo conspira contra. É um eterno nadar contra uma correnteza intensa.
Mas Gaia é sábia. Sua energia é vital e ela compreende o tempo de forma que nós, mortais, nunca explicaremos. O caos é necessário. A ruína é inevitável, para que novas flores renasçam dos escombros.
A renovação chega. É um processo lento. Todas estruturas serviram de base para que algo novo fosse construído. Carcaças rígidas que não se tornaram restos em meio a babel que caía diante dos olhos agora são sustentações de uma nova e magnífica era, individual e coletiva.
Nos tornamos mais fortes, resistentes e resilientes. Adaptamo-nos, aprendemos com nossas falhas, ressurgimos e seguimos numa desconstrução e reconstrução constantes…
Em meio a milhares de acontecimentos, nós, meros grãos de areia na terra finalmente nos conectamos uns aos outros. Distribuímos força, energia, vitalidade, afeto, apoio, respeito. Características que só retomamos após contato com nossa ancestralidade, com o meio, com o outro, com os iguais, com os diferentes e com a grande mãe.
E ela nos chama. É ela que nos diz que o momento de renovação chegou.
E estamos aqui enaltecendo a renovação através de ondas sonoras.
A espera é chegada ao fim.”
Nos últimos dias foi divulgado o segundo single do disco, “Youth Generation” e também foi um belo tapa na cara dado ao comodismo da juventude atual e ânsia por seguir padrões como comentou Cintia para o Popload:
“A música foi inspirada na ideia de ‘Youth Culture’ e como o capitalismo se apropria dessas ideias. A letra fala de uma geração perdida e egocêntrica, que está mais interessada nos padrões impostos pelo sistema, algo presente em nossa geração”.
É com esse manifesto impactante e essa aura transformadora que apresentamos a bela obra que é Ruína, o disco de estreia da banda paulista In Venus. O álbum foi gravado no Estúdio Aurora por Billy Comodoro entre fevereiro e maio (com excessão de “Mother Nature” gravada em Outubro de 2016) e teve produção de Lucas Lippaus (Sinewave / Dolphins On Drugs).
Um manifesto riot grrrl com ares do post-punk oitentista, discurso empoderado, atitude, dream pop, punk, shoegaze e rock altenativo. A alguns anos pude ver um show das meninas do Rakta com a Belgrado, esta última da Espanha com influências de bandas alemãs como Einstürzende Neubauten e Can. E a sensação de volta no tempo, força e impacto foram muito similares ao ouvir o disco.
O álbum já começa dando um tapa com luva de pelica em “Youth Generation” – e daqueles bem dados. Como Cintia diz logo acima, é uma crítica a como somos de fato domados pelas garras do capitalismo através da busca de aceitação e satisfação do ego. Um dos tantos males de uma geração perdida e deslumbrada. Que sofre com a ansiedade, a depressão, o peso das coisas, e vive das aparências.
A sonoridade lembra ótimos nomes como Siouxsie & The Banshees, Joy Division, Killing Joke e The Fall e as já citadas Belgrado e Rakta. Gosto como ela cresce e vai ficando cada vez mais sombria feito um túnel sem saída. A sensação de angústia e perdição de seu instrumental que dão toda a profundidade que o tema da canção grita.
Já imersos nesse cenário de degradação humana – e na falta de humanidade e respeito com o próximo – chegamos a segunda faixa, “Burn”. Esta focada na condição feminina e a sociedade querendo controlar o teu corpo. As guitarras equilibrando o peso e a distorção me lembram o rock revolucionário do Sonic Youth.
“Better Days” já vem com os ares de Manchester e como fã de The Jesus And Mary Chain – banda escocesa – e Babes In Toyland eu peguei a perspectiva fria, dark, contemplativa e desesperada por ajuda.
Frieza essa que transparece logo em “Digital Relationships” que tem todo aquele ar delicioso do encontro do Pixies com Einstürzende Neubauten em nos corroer por dentro e por fora com seu ácido desespero e bateria dançante típica do post-punk.
Este ar congelado das relações interpessoais seja ela de amizade, amor ou família a distância medido a base de likes, comentários e outras amenidades. A própria faixa chama estes de “a praga da vida” e confronta a liquidez destes relacionamentos. Como já dizia o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, que nos deixou no começo do ano, em sua teoria da Modernidade Líquida.
O espírito riot girl se manifesta de maneira mais enfática em “Mother Nature”. Uma faixa que dialoga não só com a mãe natureza e toda sua carga energética – e necessidade de respeitarmos mais ela mas como o passado histórico das mulheres que por muitos séculos – olá Idade Média – foram colocadas como bruxas por questionarem o patriarcado como frisa Cintia.
Gosto desse universo que ela permeia em sua sonoridade também, um dream pop que flerta com o som de alguns discos do Dinosaur Jr. em sua potência. Ela parece que vai ligar uma sirene para sairmos correndo junto a qualquer momento. A mixagem dela é um show a parte e quem gostar de analisar produção com certeza vai se deliciar com as camadas.
Desta forma chegamos a balada mais contemplativa que é “Go”. Que me lembra uma ótima artista que merecia mais destaque, a talentosa: PJ Harvey. A canção tem uma percussão tribal que te leva para a conexão direta com a natureza. Uma faixa sobre a longa jornada que temos que percorrer mesmo que nosso tempo neste plano seja breve. Ou seja mais uma canção que faz o paradoxo de viver intensamente versus seus males como o stress e ansiedade.
O espírito da sororidade está presente em “What Do You Fight For”. Esta que dialoga das minas para as minas, olho no olho falando sobre resistência. Se colocar no lugar e lutar juntas por transformar aos poucos uma sociedade que sofre com o mal do patriarcado. Um post punk ferrenho com o melhor espírito punk de grupos como X-Ray Spex.
We are fighting for our rights
Against the sexism
We’ll break the patriarchy
And will have to resist
We are fighting for respect
We’ll break the Patriarchy
We are not alone
And we’ll have to resist – trecho de “What Do You Fight For”
O álbum fecha com duas faixas em português. A primeira delas é “Cotidiano”, segundo Cintia quando questionado pela Noisey:
“Quando a gente mudou, percebemos que não precisávamos ficar tão presas a um idioma que não era o nosso original. Não posso dizer que daqui pra frente vai ser só isso, mas já estou mais acostumada”.
Ela também relata que a faixa é sobre uma situação de abuso passada por uma amiga dela, e que teve uma repercussão dada a fama do homem acusado. O espírito do punk/hc dos anos 80 indo de encontro com o som de ótimas bandas que saíram pelo selo Midsummer Madness e Baratos e Afins na época mostra que a banda tem várias influências e tem a maturidade para lidar com tudo isto.
Noto uma inspiração nas Mercenárias que merecem todos os aplausos pela luta e resistência. Sempre vale lembrar delas e o legado está sendo passado para frente a cada geração que passa. Sandra Coutinho ainda continua frequentando os rolês do independente e foi muito legal vê-la em um show do La Burca e do Porno Massacre no ano passado.
A canção que tem a árdua missão de fechar esse ótimo disco é “Inverno da Alma”. E que pancada, um verdadeiro chute na costela com os dois pés. Eletrizante, magnética, violenta e mesclando o punk, o post-punk e o espírito caótico de revolução. Os vocais berrados dão ainda mais “punch” para os versos fortes e densos.
A cidade, a sociedade, a vida, o stress, o mercado de trabalho, o tempo, a globalização, o medo de passar a vida toda e não deixar sua marca, a ansiedade, o desespero e o medo de viver marcam a letra que te leva ao sufoco no fim com um discurso avassalador. É o som da alma em desespero pedindo por ajuda.
É o degringolar da Ruína. A dor e o fim.
Ruína é o álbum de estreia do In Venus e conta com 9 faixas que carregam memórias. angustias, indignações, esperança, espírito de transformação e ânsia por um mundo melhor. É um disco urgente e que toca em várias feridas que a sociedade insiste em deixar sangrando. As cobranças, a ansiedade, a depressão, o mal de uma sociedade patriarcal e corrosiva, o se perder para se encontrar. Vivemos para trabalhar ou trabalhamos para viver? Aceitamos os erros do passado ou olhamos para frente? Nos unimos ou nos deixamos cair ruína abaixo?
São alguns dos questionamentos desta complexa e detalhista obra que surpreende o amante de música e explora sonoridades como o Dream Pop, o punk rock, o post-punk, o shoegaze com o espírito riot girl. É urgente, é o grito que sai da alma e ecoa sobre nossas cabeças. É um disco para se refletir e pensar na maneira como agimos em nosso dia-a-dia. Me faltam palavras, vocês quebraram a banca. Parabéns In Venus.
This post was published on 26 de maio de 2017 5:37 pm
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