Pelados cria um manifesto sonoro em Contato: experimental, divertido e provocador

 Pelados cria um manifesto sonoro em Contato: experimental, divertido e provocador

Pelados lança seu segundo álbum, Contato, pelo selo RISCO. – Foto Por: Gabriela Luiza

Contato, segundo álbum de estúdio da Pelados chega pelo selo RISCO

Pelados lança nesta semana talvez um dos discos mais ousados em um mercado que flerta com o cômodo e o careta, fórmulas de ocasião e a corrente invisível dos algoritmos das plataformas de streaming. Quebram todas essas amarras, métricas e também se permitem sair da zona de conforto que seria lançar um segundo disco de indie rock pautado em guitarras sleazy.

Gui Jesus, do RISCO, durante a audição de Contato até confessou que o processo de produção do grupo é bastante diferenciado e que tem uma das músicas que volta para ouvir toda a semana de tão surpreendente que ficou. E quando uma música fica na cabeça de quem respira música é porque ali certamente algo tem.

A audição coletiva me levou para alguns lugares. Alguns deles no passado e outros voltados para o contemporâneo. Tendo vivido o indie do começo dos anos 2000, imerso por um tempo naquela estranheza upbeat, quase acidental, do LCD Soundsystem e HADOUKEN!, e ter curtido muito uma proposta sonora mais voltada para o swing do baixo, de grupos como Primal Scream e The Rakes, e até de ter mergulhado nos ecos inventivos das camadas sonoras de grupos mais antigos como Happy Mondays, My Bloody Valentine, Talking Heads e nos lançamentos dissonantes da cultuada Creation Records.


Pelados lança o álbum Contato - Foto por Gabriela Luiza
Pelados lança seu segundo álbum, Contato, pelo selo RISCO. – Foto Por: Gabriela Luiza

Pelados e seus pontos de Contato

Essa inventividade, que ganhou maior destaque quando os jornalistas da época a intitularam como New Rave, nos direciona para um tributo a Manchester… no disco nos traduz como uma releitura contemporânea de quem não viveu tudo isso, mas que se diverte com os revivals tanto do próprio indie quanto do drum & bass, e de uma vasta pesquisa sonora por querer tirar mais dos instrumentos que fazem desta novidade interessante para quem viveu aqueles dias. É sempre interessante quando uma banda de rock se dispõe a flertar com a música eletrônica e o fato de as músicas não terem uma sequência óbvia deixa tudo mais interessante.

Os próprios nomes das músicas, divertidos, aleatórios e provocadores, aliados a letras muitas vezes abstratas, mostram como o experimento é também parte de um processo de autodescoberta. Ao mesmo tempo que pode não ser considerado um disco de rock, ou de pop, ou de experimental, ele acaba, por sua vez, sendo tudo isso. Mesmo que de forma acidental. Nomes como “planeta oxxo”, “boy, so confusing”, “whatsapp 2”, “instruções para descongelar o gilberto gil no estúdio”, “enel” e “modrić” mostram como o cotidiano, a internet, a velocidade e a distopia dos tempos acabam entrando no radar atento de quem muitas vezes está cansado de telas e deseja viver o ao vivo. O nome Contato cai como uma luva, vindo de quem vê a vida precarizada e tenta buscar por refúgios para se sentir vivo.

As relações com outros seres humanos, as pressões, as fofocas e amenidades, os memes, a espiral de coisas do cotidiano e suas armadilhas… a política, o existencialismo, o amor, o futuro e todos os receios provenientes do capitalismo acabam ecoando de uma forma ou outra ao longo do trabalho. Não necessariamente de uma forma direta. Mas sim, entre as curvas que o som traça, numa frase colocada de forma sutil, como parte de um conceito estético mais abrangente. Muitas vezes intangível como nossos sentimentos.

Em uma mensagem amplificada justamente por transpor os limites do que é o individual e o coletivo. Essa tentativa de irmos juntos até o final por uma compreensão mais profunda e empática acaba estabelecendo um diálogo entre o ouvinte e o interlocutor. Até por isso o recurso dessa narrativa Sci-Fi encaixa bem nesta parte lúdica de tentativa de descobrir o que está por vir. Ou melhor dizendo, como lidar com tudo isso. Onde linguagem, experimento e o contato se estabelecem além da superfície. Como um aconchego de quem também está disposto a tentar entender o que está vivenciando.

Construção, frequência e coletivo

Para além de tudo isso, é um disco em que a construção e o processo acabam sendo tão ou mais interessantes que o resultado. Em tempos de obediência, planejamentos estratégicos infinitos e fórmulas, entre os limites do que é pop e o que é alternativo, isso acaba sendo um alento de quem se permite cruzar as fronteiras. Ao mesmo tempo, o entorno e o espírito de coletividade, dos tantos projetos que os músicos já puderam se envolver, ajudam a encurtar as fronteiras de gêneros como krautrock, new rave, eletrônico, experimental, neopsicodelia, house, drum & bass, MPB e outras frequências sejam encurtadas.

No campo lírico, as brincadeiras e ironias, entre cacofonias, remixes e até mesmo usando a voz como instrumento de apoio, acabam servindo como elementos para suavizar o cotidiano. Tirar aquele peso do entorno e torná-lo mais palpável. Tudo mais possível. Essa forma de criar vínculo com o ouvinte nos traz para 2025 e toda a hipérbole e esvaziamento das coisas, entre rotina, problemáticas, teorias da conspiração, TikTokização das coisas, mudanças, desajustes, ódios e dicotomias.

A audição é tão provocadora que este texto saiu completamente do controle. E talvez seja justamente essa falta de controle que sinto tanta falta na arte contemporânea. Quando vejo novas provocações sobre formas e estrutura, uma parte de mim me faz lembrar porque gosto tanto de música, e mais do que isso, das imperfeições mundanas. Da forma como transformamos nossas relações e nós mesmos.

A viagem psicodélica que nos faz entrar quase em transe, de “modrić”, é um caso à parte, daquelas que realmente ficam ecoando audição após audição. Tudo isso entre o destempero, o receio, a mudança e o compasso quebradiço. Entre a poesia quebradiça, a desilusão e toda a viagem cósmica das progressões de acordes dissonantes. “estranho efeito”, single previamente lançado, cruza fronteiras, condensa e sintetiza um pouco do que a obra permite, entre loops, frequências eletrônicas e linguagem.

As curvas da viagem…

Viajar a bordo desta espacionave não é das missões mais tranquilas. Mas nem por isso eles não trazem momentos mais leves, como na percussiva e clean, “boy meets girl”, que abusa das texturas e das linhas de baixo entrelaçadas aos loops, entre frequências mais darks cheias de efeitos. Essa natureza anárquica faz com que repensemos até o qual seria o lado A e o lado B do disco, justamente por sua capacidade de confundir. O lado cowboy de Lauiz em seu disco Perigo Imediato, ganha ares galácticos na interessante “boy, so confusing (lauiz e doutor smirnoff enfrentam seus fantasmas no planeta xcx)”.

“music is supposed to be fun” é daquelas que gritam: LCD Soundsystem é minha religião e nada me faltará. E talvez seja isso mesmo, se divertir, mesmo sem aquele compromisso com a seriedade, onde o canal de contato é tão importante como a mensagem, assim como o CSS fazia em seus discos dos anos 2000. Se você for pensar, música sem se divertir, se transforma em algo burocrático quase sem alma. Então, é mais um acerto da produção essa lembrança.

As transições entre as canções, principalmente na segunda parte mais dark do material, são um caso à parte. Elas se interligam feito um set de DJ, o que deixa tudo mais fácil e interessante dentro da narrativa. “Instruções Para Descongelar o Gilberto Gil no Espaço Sideral”, tem toda aquela narrativa mais espacial que vemos, por exemplo, em discos como Ladies and Gentlemen We Are Floating in Space (1997), do Spiritualized. Daquela calmaria em marcha de comunhão, onde temos a certeza de que não estamos sozinhos.

Contato é o disco que não sabíamos que precisávamos ouvir, mas que mesmo assim recai como um abraço.

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