Ente embarca em um sonho lúcido no experimental “Voltarei a Ser Parte de Tudo”

 Ente embarca em um sonho lúcido no experimental “Voltarei a Ser Parte de Tudo”

Ente lança o álbum de estreia “Voltarei a ser parte de tudo”. – Foto Por: Nina Wolf

Em nosso radar desde o ano passado, o quarteto carioca Ente apresentou, no começo de abril, álbum de estreia: Voltarei a Ser Parte de Tudo. Experimental por natureza, o projeto surge da união dos compositores Lucca Valadares e Arthur Bittencourt com o baterista Gael Sonkin (Mundo Vídeo) e o baixista Nicolas Geraldi.

O debut lançado no dia 09/04, conta ainda participações especiais de Bruno Berle e Marina Nemésio nos vocais, Marcelo Callado na percussão, Stephanie Doyle no violino, e Alberto Continentino e Paulo Emmery, no baixo. O álbum foi produzido por Eduardo Manso (Negro Leo, Caxtrinho) e mixado por Estevão Casé (Arto Lindsay, Ava Rocha), sendo mais um lançamento do selo Seloki Records (saiba mais).

Entre as referências citadas pelo grupo estão nomes como Red House Painters, Connan Mockasin, Clube da Esquina, Panda Bear, John Fahey, André 3000 e Pedro Santos. A sonoridade mistura rock progressivo, folk, MPB, psicodelia e outros universos, resultando em um som tão instigante quanto imprevisível. Entre a calmaria e a inquietude, a introspecção e a expansão dos sentimentos — existencialistas ou de emancipação — o álbum percorre uma ampla paleta emocional.

As diretrizes de Voltarei a Ser Parte de Tudo

“A música sempre foi uma espécie de escapismo fantasioso para nós quatro, onde podemos vagar e nos aventurar por cenários sensíveis que nós mesmos criamos, individualmente ou em conjunto, e com isso, transmitindo essas tantas vivências diferentes através de nossas composições e arranjos.

Assim, um tema recorrente nas letras acabou sendo o encontro com a beleza em momentos solitários e existenciais perante a natureza e perante os desafios emocionais internos, que quase sempre partilhamos uns com os outros.”, comenta Arthur

Se a indústria incentiva o consumo de singles, nessa megalomania por plays e resultados comerciais, o Ente segue na contramão, encorajando o velho (e bom) hábito de ouvir um disco em sua ordem original, para captar o conceito da obra em sua totalidade.

Os momentos do dia também fazem parte dessa narrativa: o amanhecer (“Eternamente Sua” e “Nesse Verão”), o entardecer (“Sou Novo no Paraíso”), o pôr do sol (“Dub” e “Ausência”), o anoitecer (“Pogo”, “Amor” e “Muska”), a madrugada (“IMPLS”) e o reluzir de um novo dia (“Voltei a Lembrar”).


Ente Voltarei a ser parte de tudo - foto por Nina Wolf
Ente lança o álbum de estreia “Voltarei a ser parte de tudo”. – Foto Por: Nina Wolf

A abertura dos horizontes

A audição, por si só, é como o abrir das nuvens no horizonte. É nesse instante que a proposta de atravessar as primeiras horas do dia, passar pelo anoitecer e alcançar um novo amanhecer ganha contornos quase oníricos — como se o ouvinte experienciasse um sonho lúcido.

Em meio a vertigens, horizontes que se tingem de novas cores e luzes que se espalham pelo céu, um universo de sensações à flor da pele extrapola os limites da epiderme. É nesse tom que o single “eternamente sua”, com participações do alagoano Bruno Berle e de Marina Nemésio, abre o registro. A faixa conduz suavemente para “nesse verão”, onde as luzes se tornam ainda mais irradiantes. Sua natureza psicodélica e as progressões de acordes volúveis fazem tudo flutuar, como se a fantasia colidisse delicadamente com a realidade

“seu novo paraíso” utiliza a voz como um instrumento que guia o andamento canção. A fusão entre o peso das guitarras e a percussão ritmada do samba subverte a lógica tradicional da construção musical, o que acrescenta camadas e nuances à jornada sensorial do ouvinte.

A despedida do sol aparece no horizonte com “Dub”, faixa que, além de fazer alusão ao ritmo jamaicano e explorar frequências mais expansivas, abre espaço para experimentações e soluções sonoras ousadas. Com mais de sete minutos de duração, ela mergulha na esquizofrenia e na pungência sonora dos anos 60. De certa forma, é como se narrasse a caminhada de um leão rumo ao topo da montanha.

A chegada da noite….

Com a elegância do jazz, “ausência” anuncia a chegada das nuvens que fecham o horizonte em um fim de tarde melancólico.

Lançada ainda em 2024, “pogo” remete à inventividade de artistas como Elvis Costello — que transitou do punk ao jazz —, ao universo expansivo do King Crimson e à catarse épica que Damon Albarn costuma experimentar em seus projetos. É uma faixa que intriga logo na primeira audição, ao construir imagens vívidas no imaginário do ouvinte.

“amor” ressoa como uma continuação natural da anterior, mas opta por compassos mais lentos. A sensibilidade brilha no horizonte, evocando os ensinamentos dos Beatles sobre esse sentimento tão humano, agora trazido para a primeira pessoa.

“muska” vira tudo de ponta-cabeça. Com espírito rebelde, evoca um encontro épico entre Gang Of Four e Pink Floyd, criando um dos momentos mais intensos — e punks — dessa odisseia astral. É o ponto de tensão máxima, o choque entre Yin e Yang.

A reta final começa a abaixar a guarda com “impls 2”, faixa lenta, já em tom de despedida. Entre receios, degradação, acordes dissonantes e distorções da realidade, a música conduz o ouvinte a um encontro entre céus — em um plano que mistura sonho e perturbação. Uma travessia que, ao mesmo tempo que tortura, convida à abertura dos portões de outra dimensão.

Encerrando o álbum, “voltei a lembrar” surge como uma faixa psicodélica e progressiva que dialoga com os Mutantes, Clube da Esquina, Ave Sangria e até mesmo nomes da vanguarda paulista. É nesse momento que o sonho lúcido ganha asas e encerra o ciclo com o florescer de um novo dia — entre viagens internas, questionamentos existencialistas e uma boa dose de chá.

A foto da capa é de Nina Wolf, com arte do finado Caio Paiva, músico, artista e amigo, para quem a banda dedica este lançamento.

Ouça: Ente Voltarei a Ser Parte de Tudo


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