Festival Cecília Viva 2025: Entre a Resistência e o Recomeço
Rakta retorna para show único no Festival Cecília Viva 2025 – Foto Por: André Penteado
Há espaços que transcendem a ideia de apenas paredes e um palco. A Associação Cultural Cecília sempre foi mais do que um endereço no centro de São Paulo, foi um ponto de convergência para a música independente, um refúgio para artistas fora do circuito comercial e um grito de resistência cultural. Agora, após anos de regresso político, uma pandemia e um roubo de equipamentos e outras peças da infraestrutura da casa no ano passado, a Cecília se movimenta para um novo ciclo. E é nesse contexto que acontece o Festival Cecília Viva 2025, no próximo dia 23 de fevereiro, no Cine Joia.
Entre despejos, burocracias e a indiferença do poder público, a cena independente segue buscando formas de sobreviver. Renato Joseph, fundador da Associação Cultura Cecília, músico e produtor cultural, sente isso na pele. “É uma grande junção de coisas e descasos que a gente vai sentindo, que vem da parte municipal, desde o Haddad, cada vez mais diminuindo o incentivo à arte, cultura, apesar de ter gente lutando, vereador, deputado, mas está enfraquecendo.”
A falta de incentivo, os impasses e golpes que espaços como a Cecília sofrem deixam um vácuo na cidade. “Você viaja para outros países aqui da América Latina, para outros lugares fora, você vê que é normal das pessoas irem ver coisas que elas não conhecem, e aqui parece que é uma cultura mais de simplesmente sair, aonde você vai para beber, paquerar, vai ter outras coisas, e aquilo lá, a parte cultural, fica de escanteio. A gente acaba indo gastar dinheiro e na hora de realmente ver coisas artísticas vamos para o mais estabelecido, que está no mainstream, então o pequeno e médio artista no Brasil tem uma dificuldade muito maior do que em outros lugares, na minha opinião. Ainda mais com música alternativa, você busca fazer coisas que não são o padrão.”
Os problemas da noite de São Paulo
Ele fala com a propriedade de quem viu, de perto, o esvaziamento da vida noturna paulistana. “A vida noturna de São Paulo é cada vez pior comparada a outros lugares. Você vai pro Rio, pra Belo Horizonte, Curitiba, tem ruas, lugares, você se sente seguro pra sair.” O impacto desse abandono reflete diretamente nos espaços culturais independentes, a Cecília, no entanto, nunca se rendeu. Mesmo após a invasão que sofreu em março de 2024, envolvendo moradores da Cracolândia, a associação manteve viva sua missão de ser um espaço para artistas que não se encaixam nos moldes tradicionais. “Espaços como o nosso, que são independentes, tentam não depender de patrocínio ou incentivos públicos fiscais, porque isso acaba te amarrando a certas coisas”, explicou Renato. A liberdade de criar e oferecer um palco para vozes alternativas sempre foi a essência da Cecília.
Diante desse cenário, o festival surge como um ato de resistência. “A ideia é que seja como uma noite na Cecília, só que como lá é muito grande, a gente vai fazer em outro lugar. O Mancha, o Facundo, o Lúcio Ribeiro, o pessoal lá do Cine Joia, acolheram o evento de primeira. Assim que falei com eles, eles me abraçaram muito forte.” Renato completa dizendo que “Estamos vivos, produzindo, criando. Queremos mostrar que bandas que não fazem o óbvio também atraem público e são viáveis”.
As atrações do Festival Cecília Viva 2025
O evento, que servirá também como arrecadação de fundos para a reestruturação da casa, traz um line up que reflete a essência do espaço: Rakta, Boogarins, Kiko Dinucci, Test, Crizin da Z.O. e DJ Nuts. “São artistas que fazem parte da história da Cecília de alguma forma. O Rakta, por exemplo, participou de praticamente tudo o que já fizemos. O Kiko Dinucci era nosso vizinho, tocou com todos os seus projetos lá. O Test? Uma banda que define a Cecília. O João e o Barata fizeram literalmente tudo dentro da casa. Qualquer ideia que eles traziam, residência, parcerias. Tocaram no festival junto com o Tom Zé, sabe? Test com o Tom Zé. Isso pra mim é uma coisa que foi demais ter feito. O festival é um recorte do que somos.”
O show do Rakta, que retorna após um hiato de cinco anos, promete ser um dos momentos mais marcantes da noite.
“A Rakta foi difícil, uma conversa demorada, porque elas estavam sem tocar há muito tempo e não sabiam se queriam fazer isso agora ou não. E deu certo, porque participaram de praticamente tudo o que a gente já fez na casa. Foi uma conversa longa para trazê-las de volta, mas conseguimos. Isso mostra a força do festival”, conta Renato.
Ele ainda compartilha: “Crizin da Z.O., principalmente depois da pandemia, frequentou bastante a casa. Eu acho que ele traz um som novo, de banda, com uma ideia nova. Por ser uma galera que também não é de São Paulo, eu acho que é legal para somar. E o DJ Nuts é um clássico. Fez residência na casa por cinco anos, todo domingo, literalmente todo domingo. E está junto nessa. Vai fazer um set autoral, não vai ser discotecagem, balada, que ele vai ficar tocando os clássicos da música brasileira. Ele vai fazer uma apresentação de meia hora e quarenta minutos de beats autorais, sons que ele desenvolveu”. Será um festival onde é todo mundo amigo, um pessoal muito próximo e que se solidarizou e que quis participar.
Além da celebração, o evento reforça a importância da união entre os espaços independentes. É um movimento muito importante. “A gente tinha uma preocupação muito grande de como fazer essas coisas sem ser no ambiente da Cecília. Mas a gente entendeu, principalmente depois do Bikini Kill, que quem cria o ambiente somos nós e as pessoas que frequentam, os artistas, independente de qual é o teto e o chão que está.”
A Resistência do cenário independente
A cena independente sempre viveu de ciclos de autossuficiência e colaboração. A Cecília, ao longo dos anos, se tornou um símbolo disso, resistindo ao abandono político e urbano que a cultura enfrenta. “Nunca vi São Paulo tão descuidada. O descaso é generalizado. No setor cultural, vários espaços são fechados ou inviabilizados. O Estado censura não dizendo ‘você não pode’, mas criando entraves e burocracias impossíveis de superar. A gente fazia shows na Paulista, montava equipamento e tocava. Agora, você precisa de dezenas de autorizações e, no fim, a prefeitura pode negar sem justificativa. Isso é censura disfarçada”, reflete Renato.
Renato acredita que existem medidas que poderiam ser implementadas para fortalecer os espaços independentes. “Então, existem políticas e coisas que eu acho que dariam para ser feitas. Eu acho que, por exemplo, cada Sesc poderia muito bem fomentar as casas de cultura, teatros e galerias de arte dos seus bairros. Uma ideia seria mapear os centros culturais independentes e financiar apresentações neles. Mas isso não acontece. Em vez disso, vemos a cultura cada vez mais centralizada, e quem está na margem precisa lutar sozinho”.
Para ele, falta uma articulação real do poder público para fortalecer a cultura alternativa. “Incentivos da Prefeitura e Secretaria de Cultura, quando se vai fazer uma Virada Cultural, por exemplo, se gasta milhões montando palcos e outras coisas, onde esse dinheiro poderia incentivar outros lugares, como as casas independentes, a produzirem shows que elas não teriam condição naturalmente, e fazer com que o público fosse lá.”
As dificuldades para desenvolver o cenário
A dificuldade de organização coletiva também é um desafio para a cena. Renato comenta sobre sua tentativa de criar um circuito de casas independentes: “Tentamos reunir 10 casas para organizar um festival, mas é muito difícil. Cada casa tem sua própria realidade e necessidades. Essa união é essencial, mas ainda precisa amadurecer”.
Casas de cultura deveriam ter acesso automático a alívio de impostos e incentivos, desde que comprovasse determinados critérios, sem a necessidade de participar de editais burocráticos onde a seleção muitas vezes favorece conexões pessoais. Afinal, espaços como a Cecília e outras casas de show realizam um trabalho que o Estado, a Prefeitura e o Governo não fazem, atuando de forma alternativa e independente. Se esses espaços deixarem de existir, uma parte essencial da cena cultural desaparece. Muitas casas só operam quando conseguem um edital, um patrocínio ou um incentivo, mas, na visão de Renato, é fundamental que se viabilizem sem depender disso. O ideal é estruturar-se para funcionar de forma sustentável, de modo que, quando um incentivo chega, ele se torne um lucro para o projeto, e não sua condição de existência.
Mas depender exclusivamente de editais e incentivos fiscais pode ser um problema. “Quantos projetos legais eu vi não acontecerem porque o edital não selecionou? Ou coisas legais que poderiam estar acontecendo porque é estruturado e é pensado pro dinheiro que é ganho do edital. Se ele não entra, não acontece. A gente tem que começar a tentar ensinar pessoas, ou entender modos, e viabilizar maneiras de as coisas acontecerem sem depender disso, senão não vai acontecer.”
Apesar das dificuldades, a resistência persiste. O Festival Cecília Vive 2025 também serve como um incentivo para reabrir a Cecília em outro lugar. “Queremos um novo espaço, um novo ciclo. Algo próximo do que já fizemos, mas com novos ares.”
Renato completa: “Não vai ser a mesma, mas a gente quer tentar fazer algo muito próximo do que a gente fazia. E em breve. Então esse festival é para dar esse impulso, dizer que a Cecília não morreu, que a gente está aí viva, fazendo coisas bacanas, produções legais, com artistas interessantes que saem do óbvio, do mainstream”.
Para além da música, o festival também representa uma forma de envolvimento ativo do público. A campanha de arrecadação oferece opções que vão desde ingressos simples a pacotes com vinis exclusivos, camisetas e carteirinhas socioculturais. “A ideia é que todos possam contribuir de alguma forma. Quem quiser e puder ajudar, estará apoiando não só o festival, mas o futuro da Cecília.”
O Festival Cecília Viva é mais do que um evento. É um manifesto pela música alternativa, pela existência dos espaços independentes e pela importância de resistir, criar e celebrar. “Se a gente parar, tudo se perde. Mas enquanto houver música, arte e gente disposta a fazer, a resistência segue viva. A Cecília segue viva.”
Serviço Festival Cecília Viva 2025
Data: 23 de fevereiro de 2025
Local: Cine Joia (Praça Carlos Gomes, 82 – Liberdade, São Paulo)
Horário: Abertura às 16h
Em sua terceira edição, o Festival Cecília Viva se consolida como símbolo da resistência cultural. A colaboração com o Cine Joia viabilizou a edição neste ano, e a arrecadação da bilheteria será destinada ao início de um novo ciclo para a associação, que investirá o montante obtido no espetáculo na compra de equipamentos para impulsionar seu recomeço em um outro espaço.
O público poderá escolher como participar da campanha, adquirindo acesso ao festival a preços que vão de R$ 75 a R$ 450 (taxas inclusas), e fazendo jus a benefícios como carteirinhas sócioculturais, ecobags, camisetas e um disco de vinil duplo exclusivo com faixas de diversos artistas da cena. Há, também, possibilidade de doação via PIX.
Doações disponíveis:
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R$ 75 – acesso ao festival
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A partir de R$ 150 e até R$ 450 – benefícios como carteirinha sócio cultural, ecobag, poster, camiseta e vinil exclusivo com gravações ao vivo de grandes artistas que marcaram a história da Cecília.
Para quem deseja contribuir além do acesso ao show, a Cecília Cultural está aceitando doações via PIX (CNPJ: 10.717.826/0001-20).
Para mais informações e ingressos, clique aqui.