Sopa Primordial é o álbum de estreia da Meyot
Certos discos quando sabemos da histórias por trás ressoam como grandes vitórias da vida, de ciclos que precisam de um desfecho. No caso de Sopa Primordial da Meyot o processo foi profundo e teve até mesmo a entrada de Giuliam Uchima no grupo que atualmente é composto pelo músico e o fundador, Arthur Montenegro.
O som da Meyot é marcado pela complexidade, da mistura de gêneros mais cabeçudos como o rock progressivo, o jazz e o post-rock, aos mais acessíveis como a MPB setentista e a música eletrônica. Algo que acaba sendo complexo até mesmo de executar. Pudemos estar presentes no show de lançamento e vimos como todas as camadas e projeções sonoras se destacam feito um arco de sentimentos e melodias. É essa contradição, o compasso e descompasso que dá a graça para o som experimental do duo que ganha um adendo de músicos para executar sua obra.
“Nós sempre tivemos uma relação de curiosidade e pesquisa com a música. E muitas vezes estamos pesquisando coisas completamente diferentes de maneira simultânea. Enquanto um tá se aprofundando em jazz, o outro tá mergulhando no industrial, e por aí vai. Tudo tem a sua interessância e move a gente pra algum lugar.
O que aconteceu de diferente desde o último EP foi a pandemia, que veio 3 meses depois do nosso último lançamento (o que nos impediu de trabalhá-lo da melhor maneira). É difícil falar em pontos positivos sobre um período tão horrendo, mas foi uma época em que ficamos trancafiados em casa sem a menor certeza do que viria pela frente.
Acho que esse sentimento apocalíptico fez com que a gente se agarrasse ainda mais forte ao que dá sentido às nossas vidas: a música. Pesquisamos como nunca. Ouvimos como nunca. Estudamos como nunca. Criamos como nunca. E saiu isso”, eles sintetizam.
Tudo isso para transmitir os sentimentos mundanos como ver o colapso social moderno, a tediosa estrutura, o papel do trabalho e a sensação de não se sentir parte de algo. Sentimentos esses tão explorados por filósofos e pensadores modernos.
Sobre o nome do disco eles vociferam em coro: “Esse nome surgiu no início da banda, quando o nosso primeiro disco era apenas um vislumbre. Brincávamos sobre potenciais nomes quando estávamos conversando no bar e esse foi unânime, acabou pegando internamente e ficando desde então.
É uma boa analogia para um primeiro disco de estreia, já que a teoria da sopa primordial afirma que a vida na terra foi concebida a partir de uma mistura de compostos orgânicos. A gente sempre achou que o nosso som era uma densa mistura de vários ‘compostos’ de diferentes gêneros, que juntos dão vida a nossa identidade”, os músicos resumem, que gravaram o disco ao lado do ex-integrante Lucas Berredo, que é um dos compositores de todas as faixas.
O material lançado pela Eu Te Amo Records sucede dois EPs, Meiote (2018) e o mini-EP Anchorage/Vento Seco (2020).
Convidamos os músicos para contar mais detalhes sobre a odisseia que envolve o disco, entre a concepção de arranjos, referências e reflexões filosóficas que os inspiraram. Quem assume o comando a partir daqui é o duo que discorre livremente um faixa a faixa de Sopa Primordial.
Essa foi uma das faixas que mais dedicamos tempo no álbum. Criamos uma demo na transição de 2020 para 2021, mas não estávamos totalmente satisfeitos com a sonoridade. Então concebemos uma versão mais eletrônica. Àquela altura, já considerávamos essa música como a faixa de abertura do disco, e tínhamos em mente que ela precisava iniciar com um certo senso de urgência. A introdução ‘experimental’ no sintetizador surgiu de forma imprevista durante os arranjos para a demo. Posteriormente, já no estúdio, aperfeiçoamos a ideia com uma programação de sintetizador modular que se auto alimenta de forma randômica e este é o resultado que podemos ouvir no álbum e que nunca mais conseguiremos reproduzir de maneira igual. Mais adiante, surgiu a ideia de encerrá-la com uma coleção de ruídos e trechos desconstruídos de filmes, em vez de um final mais tradicional.
A letra fala de um eu-lírico delirante que experimenta as dores da inconstância da vida moderna. Os arranjos, glitches e samples usados em formato de colagem na canção tentam ilustrar essa psique perturbada e frequentemente interrompida por ruídos do cotidiano. A música passa por diferentes paisagens sonoras, da agressividade da introdução, versos – o grave do synth bass queimou um dos alto falantes durante a gravação – e final, para o refrão solar e melódico. Para atingir tal sonoridade inclusive utilizamos duas baterias diferentes, a primeira com ar mais seco e eletrônico e a segunda inspirada nos arranjos orquestrais da fase final dos Beatles.
“Fricção”, assim como outras canções do disco, foi uma música composta inteiramente a distância em tempos de pandemia, onde Arthur, Lucas e Giuliam desenvolveram uma dinâmica de construção em que cada membro compunha os arranjos e as seções de forma seriada, juntando partes que gradualmente se tornaram o todo.
Esta é uma das canções mais antigas do disco, composta em 2019. A introdução com metais foi inspirada em ‘Little Red Riding Hood Hit the Road‘, do Robert Wyatt. A intenção era que evocasse a imagem de alguém adentrando uma floresta no meio do céu: algo ameaçador e fascinante ao mesmo tempo.
Para cumprir a missão, o músico Lucas Melifona veio para o estúdio e ouviu nossas referências de arranjo de metais. Então, ligamos os microfones e ele gravou várias versões da introdução. A versão final que ouvimos no disco é uma sobreposição de inúmeros takes diferentes.
A adição de guitarras arpejadas no arranjo das estrofes tinha como propósito instaurar uma sensação de movimento acelerado na música, refletindo a ideia do homem em busca de uma saída para a selva. O refrão, por sua vez, surge como um meio de “acalmar” essa sensação de fuga e daí o foco na melodia dos metais como acompanhamento.
A parte final é uma de nossas sequências mais marcantes no disco, tanto em termos de arranjo quanto de vocalizações. No estúdio, incorporamos camadas de theremin e sintetizadores ao final, resultando em um elemento meio fantasmagórico para a música.
A letra de “No Túnel” aborda nossos tempos de espírito bélico, agressivo e melancólico, como a bateria em ritmo de marcha sugere. A intenção por trás do texto foi evocar a sensação de aprisionamento e desalento, como uma caminhada em um beco escuro e soterrado, sutilmente iluminado por um vacilante feixe de luz.
Em “Casa Abandonada”, experimentamos uma formatação diferente, conduzida por piano, ruído e sintetizadores. Essa faixa foi uma das mais trabalhosas em termos de timbre, desde o loop do início – uma criação surgida na demo que continuou até a versão final – até a utilização de samples de torcida de futebol, sons de “liquidificador” instrumentados por um theremin com distorção e síntese granular. Nas guitarras, incorporamos a guitarra como um elemento ornamental em vez de basal, seguindo uma abordagem mais jazzística.
“Casa Abandonada” também foi uma música composta inteiramente à distância, em tempos de total isolamento na pandemia. A inspiração para a letra partiu da percepção de que a casa (ambiente exterior) pode representar um reflexo de questões interiores. A analogia da casa em destroços também fala sobre o corpo e como ele reage a um tempo sufocante.
No intuito de abordar um tema oculto na sociedade, a letra trata do suicídio por tédio. Embora a depressão e a solidão sejam frequentemente associadas a razões para tirar a própria vida, pouco se fala como a falta de sentido no tempo pode afetar negativamente as pessoas, em especial os idosos.
O título da música é uma referência a ‘Marceneiro Paulo’, um tema instrumental do guitarrista carioca Hélio Delmiro. A inspiração para a canção lida com um personagem mais jovem, por volta dos 40 anos, que percebe que a sua vida perdeu completamente o sentido. No caso de Paulo, um burocrata por vocação (por isso a escolha da profissão de advogado), não se trata de não ter pessoas ao seu redor, mas sim de um cotidiano tedioso e automático.
O formato escolhido para o texto foi uma espécie de diálogo-opereta, onde os personagens são Paulo, sua mãe e sua esposa. Cada um desempenhando um papel de fricção na narrativa. Devido ao conteúdo da letra, “Paulo” foi uma música arranjada de forma mais cinematográfica, onde os instrumentos interagem com as imagens do texto e acompanham a sua intensidade.
“Paulo Advogado, de 2018, é a música mais antiga de “Sopa Primordial” e que curiosamente foi um caso raro de canção que não sofreu tantas alterações desde a sua composição. Aqui, temos uma pequena mudança na formação, com Lucas assumindo a voz principal e Giuliam fazendo uma participação vocal pela primeira vez no disco.
Enquanto estamos constantemente focados nos temas do “bem-estar” como ‘planejamento’ e ‘construção de carreira’, no fundo é a contingência que determina o que pode ser ou o que poderia ter sido de forma diferente em nossas vidas. Em resumo, o futuro é incerto para todos nós.
É nesse contexto que o personagem da canção busca se posicionar, não como um sujeito automático, preso a um papel preestabelecido (peão<), nem como um sonhador transcendental. Em vez disso, ele prefere jogar com as expectativas, pois reconhece que tudo está sujeito à experiência do acaso.
Várias músicas de “Sopa Primordial” possuíam uma abordagem mais rítmica em suas primeiras versões. À medida que elas foram se desenvolvendo no nosso processo criativo, essa característica foi dando lugar a um som mais atmosférico. Acreditamos que em “Polaramine” conseguimos resgatar essa característica, com presença constante de grooves conduzidos pela guitarra principal. O fim da música representa um retorno ao universo eletrônico que imprimimos no disco, como se estivéssemos sintonizando os sintetizadores ao próximo fio de música que virá.
“Viagem” é uma música de 2019 que passou por inúmeros arranjos, começando com uma versão indie rock, passando por uma abordagem mais jazzística, até encontrar sua versão final em uma estética eletrônica e com influência de post-punk na segunda parte da canção.
A faixa foi construída com uma mentalidade diferente do restante do disco, partindo de blocos de sequenciadores, seguindo uma lógica de música eletrônica. Na demo, ruídos de guitarra acompanhavam a cama de sintetizadores e a voz principal. Na gravação do disco, esses ruídos foram reinterpretados pela violoncelista Giovanna Airoldi, que também faz acompanhamento melódico na canção.
A letra fala de uma realidade do nosso tempo: o trabalho e como ele passava a absorver outras instâncias da vida, a ponto de você se confundir com o que é a partir dele, e assim “abdicar” de uma vida inteira a ser explorada fora desse trajeto. É como lidamos, por vezes, com o lazer em nossas vidas em nome de compromissos com o trabalho, em vez de nós mesmos. Também trata dos desencontros vivenciados no cotidiano urbano.
A ideia inicial em ‘Mais Forte do que o Sol’ era falar sobre delírios de supremacia branca. Durante a gravação do álbum, o título de trabalho da canção (‘Ânus Solar’) evocava o caso do juiz alemão Daniel Schreber, examinado por Freud no início do século 20. Schreber nutria um delírio de que o Sol queria transformá-lo em uma mulher e, assim, formar uma nova raça de seres superiores: um misto de homossexualidade reprimida com um delírio recalcado de supremacia.
Posteriormente, a narrativa evoluiu para a ideia do delírio fascista: isto é, como essa ideologia precisa construir uma história alternativa e acientífica (inautêntica memória de elipses sem razão) para elaborar seus ideais de supremacia racial. Essa interpretação do fascismo como um delírio esquizofrênico 一 baseado no que Gilles Deleuze e Félix Guattari exploram em O Anti Édipo 一 vai de encontro com a mitologia criada por Schreber.
Essa faixa também foi a que sofreu as maiores transformações no álbum. A composição data de 2019. No entanto, essa versão original se diferenciava consideravelmente da presente no disco.
Nesse novo arranjo, optamos por uma base de bateria mais marcante – a inspiração surgiu de ‘Ascension Day’, do Talk Talk. O refrão, por sua vez, passou por uma dúzia de modificações até alcançarmos a versão final. Apenas uma semana antes do início das gravações conseguimos finalizá-lo.
É importante falar que, apesar de todas as transformações ocorridas ao longo dos anos, mantivemos intacto o ‘tema do faroeste’, a seção instrumental que conclui a música.
Fina solidão é uma música que fala sobre o não-pertencimento, onde o eu-lírico se encontra em estado cético sobre a passagem do tempo e das incertezas com o futuro, que te afligem em sua solitude. Composta no contexto pandêmico, a faixa dialoga com as angústias vividas mediante ao desconhecido.
“Fina Solidão” foi uma canção que se deu no processo clássico de composição voz e violão. Então, fizemos um arranjo no piano inspirado em uma canção do Grizzly Bear que acabou conduzindo a bateria, o baixo e aí por diante. Foi a primeira música em que construímos todo o arranjo em torno do piano.
Existe uma parte C na música que também é o encerramento do disco. Ela pertence, ao passo que se descola, de “Fina Solidão”, criando um clima mais otimista e ao mesmo tempo irônico, com a frase “nunca mais vai ser natural” constatando um presente interrompido. Optamos também por terminá-la com o piano, em uma espécie de retorno ao início da canção, e um ruído de fundo. O drone no final se minguando representa o encerramento da construção sonora da introdução do disco (“Fricção”).
This post was published on 22 de janeiro de 2024 2:57 pm
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