[Premiere] This Lonely Crowd adapta poemas revolucionários para a música extrema
A arte de contar histórias é milenar. Da idade da pedra com seus desenhos rupestres, passando pelos sábios pajés e pelos contadores de histórias. É de certa forma uma necessidade humana narrar histórias de todas as formas. Sendo elas verídicas e factuais a contos místicos, crenças, religiões ou folclore.
É um universo paralelo, diria até de certa forma mágico. A magia mora nos detalhes e o melhor de tudo, a interpretação de quem escuta, lê ou assiste jamais será igual. Talvez a literatura seja a arte que o apreciador tem mais liberdade de viajar por diferentes cenários e imaginar como seriam as características e personalidades dos personagens de maneira única.
Aquelas letras esculpidas em um papel branco com letras pretas conseguem em algumas linhas te transportar para lugares coloridos, mágicos, com seres com personalidades caricatas (ou não) que dão margem de certa forma a escaparmos da vida mundana. Algumas destas carregam ensinamentos, outras leituras provocam reflexões e outras histórias até influência no modo de ver a vida e agir perante o próximo.
A cada leitura podemos conhecer realidades e planos diferentes. Como pegar O Amor Nos Tempos de Cólera do escritor colombiano Gabriel García Marques e não querer dar mais uma chance para o amor? Como ler 1984, lançado em 1948, do anarquista George Orwell e não fazer paralelos com governos autoritários ao redor do globo? Como ler alguma obra do Neil Gaiman – e sua extensa lista de lançamentos para todos os públicos – e não viajar para universos mágicos e fantásticos? Como não se angustiar lendo Vidas Secas? Como não rir da astúcia, ironia e escárnio da geração de 98 espanhola?
A música por sua vez utiliza todo esse universo na hora de compor com certa frequência, através de versos, estrofes, citações, ideologias e homenagens. Algo que podemos ler em dois posts realizados pelo Hits Perdidos em colaboração para o Crush em Hi-Fi (Parte 1 | Parte 2).
O cinema, os curtas-metragens, os clipes e até comerciais de televisão também bebem da fonte desse universo imaginativo. Não é de surpreender o sucesso de franquias como O Hobbit, Senhor Dos Anéis, O Hobbit e de filmes O Lobo de Wall Street nas telonas. Por muitas vezes essas adaptações também ficam a anos luz da obra como é o caso de Dorian Grey.
Já no campo das artes plásticas, das charges, dos grafites o reflexo da literatura é evidente. Assim como nos tempos da idade da pedra as histórias são narradas através de rabiscos e gravuras. Talvez seja essa a mágica da arte, conseguir juntar diversas formas de expressão e convergir de formas que permitam ao expectador a ter sua própria – e única – interpretação.
Por coincidência ontem (quinta-feira) enquanto eu escrevia me deparei com este artigo do portal Asteroid (Sorocaba/SP) no qual de uma maneira mais lúdica e atual mostrava um belo exemplo desta convergência entre as artes. É excelente observar como cada uma delas agrega de maneira ímpar.
Em homenagem ao icônico artista inglês David Bowie, Neil Gaiman no ano passado escreveu o conto: The Return Of The Thin White Duke para a coletânea Trigger Warning que faz alusão a canção “Station To Station”. Para quem não conhece, Thin White Duke foi a última persona que Bowie deu vida – algo que o escritor Fernando Pessoa fez muito através de seus heterônimos – e que foi imortalizado principalmente no álbum, Station To Station (1976).
Impecavelmente vestido com camisa branca, calças pretas e colete, o “Duke” era um homem vazio que cantava canções de amor com uma intensidade desesperada, enquanto nada sentia, “gelo mascarado de fogo”. O personagem era um “aristocrata demente”, “um zumbi anormal”, uma pessoa segundo Bowie: desagradável. Muito disso pois nesta fase era o auge de sua loucura no mundo das drogas, em que se entorpecia com altas doses de cocaína.
Este personagem que pode ser comparado com vários políticos e personalidades do mundo atual ganha agora em 2017 uma convergência entre Música-Poesia-Ilustração. Já que o artista japonês Yoshitaka Amano – conhecido pelo trabalho no jogo Final Fantasy – fez especialmente para o livro estas artes incríveis. (imagens acima).
Assim chegamos a o disco em que faremos a Premiere hoje. O quinto trabalho da banda curitibana, This Lonely Crowd. O grupo que está na ativa desde 2009 – tendo seu início oficializado em 2010 – faz “rock de conto de fadas” (Faerie Rock).
Em sua formação a banda conta com: Hurleburlebutz (Guitarra), Bonijov (Guitarra), King Trushbeard (Bateria), Rainha Branca (Baixo), Hamelen (Guitarra). Como podem ver até os nomes dos integrantes permeiam o universo do realismo fantástico!
Ao longo de sua carreira eles vem incrementando a cada lançamento novos estilos musicais como influências além do campo da literatura – que permeia desde o começo do projeto. Eles passam por estilos como Post-Rock/Metal Extremo/Shoegaze/Rock Alternativo, sempre somando camadas da música obscura.
A narrativa que passa pelo universo mágico da literatura e seus desdobramentos é uma forma interessante que eles encontraram de introduzir seus filhos ao mundo mágico das letras e do som do rock obscuro. Segundo eles tem funcionado de maneira maravilhosa. É muito legal observar que a cada música tem sua atmosfera que pode ir da delicadeza do Depeche Mode ao rock extremo do Napalm Death.
Assim como os artistas da Sinewave em geral, eles conseguem trabalhar as canções por camadas sonoras repletas de detalhes que abrangem estilos específicos que tem sim um nicho de público a ser desbravado. Talvez são selos assim que façam com que nossa paixão pela música e por descobrir mais gêneros (e sub-gêneros) musicais, cresça.
De pouco em pouco o This Lonely Crowd vai colorindo seu universo poético através de canções que sempre despertam sensações distintas. Da leveza ao peso. A cada álbum – ou EP, gravado com suor e aos poucos, por conta da rotina e de correr atrás do alto investimento que a industria fonográfica proporciona – eles vão contando estas mágicas histórias para os mais exigentes leitores. Fazem isso por sua vez de forma bela e delicada.
Um outro destaque também é a maneira que observam a arte da música. São adeptos do copy left ou seja: a música autoral, gratuita e sincera e conta com o apoio da comunidade musical, amigos, fãs, blogueiros e jornalistas para difundir sua música.
Mesmo não tendo lançado material em 2016, eles tiveram uma significativa conquista no ano passado: a faixa “Snorphan”, do primeiro disco, fez parte da trilha sonora do longa metragem Amores Urbanos, exibido nos cinemas do país. Além claro do lançamento do clipe para a canção “Geborgenheit” (Meraki – 2015).
Mas para explicar um pouco mais sobre o lançamento confiram o vídeo que a equipe da Sinewave preparou. Aliás, sigam o novíssimo canal de youtube do selo para mais novidades do casting. Parabenizo desde já o Elson Barbosa e o Lucas Lippaus por está nova estratégia implementada pelo selo na divulgação.
This Lonely Crowd – This Lonely Crowd (2017)
Depois dessa completíssima introdução do vídeo e esquenta para o quinto álbum. Vamos falar mais propriamente sobre This Lonely Crowd (2017) lançado hoje. Contendo nove faixas, o álbum é o sucessor do disco instrumental, Meraki (2015). E diverge do último lançamento tanto pelas suas influências, como por sua narrativa e tempo.
É um álbum relativamente curto com duração de pouco mais de meia hora. Gravado no Guerrilla Dreaming’ Studio e Nico’s Studio ambos localizados em Curitiba. A bela arte da capa foi feita por Julian “Nightingale” Fisch. Para mais informações sobre as letras e dados técnicos a Sinewave disponibilizou em seu site todas informações através do encarte do disco.
O berço da literatura e do mundo imaginário está vivo e presente. As letras são adaptações de poesias de Florbela Espanca, Mary Shelley, Cora Coralina, Maya Angelou, Delmira Augustini, Jean Ingelow, Oscar Wilde e Emily Jane Brontë.
“São criaturas singulares com histórias maravilhosas, cheias de reinvenção, de dor e esperança, de persistência e paciência. Com mais essa obra, nos confortamos de que, por um momento, a saudade delas é suficiente pela força da música.” – conta o This Lonely Crowd
O álbum se inicia com “Florbella Ex Punk” uma adaptção do poema “Mais Alto” da poetisa portuguesa Florbella Espanca. A obra dela conta com as seguintes fortes características: erotização, feminilidade e panteísmo.
Já a canção transforma toda essa vida intensa que a poetisa teve e faz uma epopéia que mescla metal extremo com distorções do post-rock. O interessante fica por conta do vocal masculino declamando de maneira “punk” um poema que exalta a feminilidade. E a alternância entre intensidade e leveza. Em seu instrumental a canção consegue ir do peso do Slayer a leveza do Teenage Fanclub.
A segunda faixa, “Cliodhna’s Wave” a homenageada da vez é a escritora inglesa Mary Shelley (1797-1851) que se destacou por seus romances já em idade mais avançada, já que seus primeiros manuscritos foram perdidos depois que esta saiu da casa em que vivia com o pai. A obra mais conhecida da escritora é o Romance Frankenstein ou o Moderno Prometeu, e pode ser considerada a primeira obra de ficção científica da história.
O mais legal é que Mary escreveu a obra com apenas 19 anos, porém a versão mais conhecida e apreciada é sua terceira edição (datada de 1831), na qual ela já estava com 34 anos.
“A invenção, devo modestamente admiti-lo, não consiste em criar disciplinadamente, mas sim em criar a partir do caos.” – Mary Shelley
Caos este que o This Lonely Crowd tratou de exacerbar com peso e transgressão para dar vida ao curto poema da romancista. Com vocais melódicos alá Brian Molko a canção mais uma vez consegue aliar o peso – e cavalgadas – de grupos como Fear Factory ao rock alternativo.
A saudade também tem espaço na poesia e na música e para este disco, o TLC teve a sensibilidade de escolher uma poetiza que fala sobre o tema de uma maneira muito tocante. “Vancian Noise” é uma adaptação de “When You Come” da escritora estado unidense, Maya Angelou.
Pseudônimo de Marguerite Ann Johnson, uma mulher muito forte, aos 17 ela se tornou a primeira motorista de ônibus mulher e negra em São Francisco mas nada fez ela parar de superar obstáculos na vida. Pouco tempo depois ela se tornou a primeira mulher negra a ser roteirista e diretora em Hollywood.
Uma mulher de fibra que nunca deixou de lutar pelos direitos civis, foi historiadora, poetisa, atriz, dançarina e cantora. Ufa!. Nada mais merecida a homenagem através de seu poema que tem como mote a saudade.
Uma curiosidade: este não é o primeiro poema da escritora a ser musicado, Jon Secada ao lado da estrela pop Cindy Lauper em “Still I Rise” utilizam de seus fortes versos.
A canção “Vancian Noise” consegue exprimir toda a angustia dos fortes versos da poetiza e tem como marca a leveza de riffs que poderiam ter saído de algum disco do The Cure ou The Jesus and Mary Chain. O vocal tem a entonação de Billy Corgan (Smashing Pumpkins) e ao longo de seus quatro minutos nos faz sentir um pouco dessa dor. A suavidade também mora nos delicados backin vocals da Rainha Branca. A atmosfera flerta com o fim dos anos 80 e começo dos 90. Agradará fãs de Catherine Wheel, Television Personalities, Ride e Loomer.
Desta forma chegamos a canção “Furiosa”, uma adaptação para o poema I Live, I Die, I Burn, I Drown da poetisa uruguaia, Delmira Augustini. Ou seja mais uma mulher forte que lutou pelo crescimento da participação da mulher na sociedade.
Vindo de uma família conservadora ela se especializou na sexualidade feminina em uma época em que o mundo estava dominado pelos homens. Apesar da poesia conter imagens sexuais, sua poesia não é vulgar. O mundo das fantasias neste campo pertence a primeira fase do modernismo.
Curiosidades a parte a canção viaja através das ondas do shoegaze cheia de texturas e camadas. É como se o campo das emoções fosse expandido, a sensação que a canção mais nos passa é a de liberdade.
A próxima homenageada é a escritora inglesa, Jean Ingelow. Tendo uma criação religiosa forte ela passou boa parte da vida escrevendo com temas no campo da religião. Porém outra faceta revelada quando mais velha foi justamente as histórias para crianças. Estas que tiveram influências de Lewis Carroll e George MacDonald.
A canção “Go Where People Sleep And See If They Are Save” teve como inspiração Mopsa the Fairy (1869). A história é sobre um menino que descobre um ninho de fadas e uma mágica floresta fantástica de fadas á bordo de um Albatroz.
Uma música que tem tudo a ver com o This Lonely Crowd já que uma das premissas da banda é justamente contar histórias para seus filhos e introduzi-los a música extrema. Na canção o grupo experimenta a música eletrônica, assim ganhando corpo do rock industrial. A faixa foi o primeiro single a ser lançado para promover o disco. Um destaque fica pelo casamento entre as camadas eletrônicas e a percussão da bateria.
A sexta canção “Mytilda” mais uma vez é em português, algo raro dentro da discografia do grupo porém que neste disco mostra ser uma boa nova faceta em seus composições. A homenageada da vez é Cora Coralina uma das mais importantes escritoras brasileiras.
Uma curiosidade é que seu primeiro livro foi apenas publicado aos seus 76 anos, tendo a maior parte da sua obra sendo publicada de maneira póstuma. O interior do Brasil era sua grande inspiração na hora de escrever. Ainda em vida teve seu reconhecimento quando em 1983 foi premiada com o prêmio Juca Pato, dois anos antes de falecer.
A música foi extraída do poema “Minha Cidade” que fala justamente sobre sua cidade natal, Goiás. De certa forma este poema fala justamente sobre sua vida:
“Eu sou aquela menina feia da ponte da Lapa.
Eu sou Aninha.
Eu sou aquela mulher
que ficou velha,
esquecida,
nos teus larguinhos e nos teus becos tristes,
contando estórias,
fazendo adivinhação.
Cantando teu passado.
Cantando teu futuro.
Eu vivo nas tuas igrejas
e sobrados” – trecho de Minha Cidade de Cora Coralina
Já a adaptação do TLC carrega essa energia de descontentamento com a humanidade. Do medo do que esperar pelo futuro, do desequilíbrio, dos conflitos e da insegurança que isso nos traz. Seria este mundo que queremos deixar para nossos netos?
O peso traz exatamente a instabilidade que essa reflexão profunda nos causa. “Queimados pelo fogo, bastardos, calcinados e renascidos.” é o trecho que ecoa na mente do ouvinte que é forçado a por a mão na cabeça.
O lado Korzus x Nepalm Death x S.O.D. é violento na explosiva e com exato 1 minuto: “Pirlimpimpim”. Tem o lado do crust somado a brutalidade do Death Metal que te deixa tonto. Com toda certeza deve ser uma das mais divertidas de tocar e deve agradar fãs de Krisiun.
“The Penguin Dictionary Of Curious And Interesting Numbers” tem como inspiração o poema Requiescat, do fantástico poeta inglês: Oscar Wilde. Oscar dispensa apresentações, porém é sábia a escolha do autor dentro de uma seleção de mulheres tão fortes e transgressoras visto que em uma de suas obras, Uma Mulher sem Importância (1893), ele justamente trata de mostrar de maneira cômica como personagens femininos ganham espaço e se tornam fundamentais para contar a história. Um gênio e dando um tapa na cara da sociedade com seu humor refinado.
A energia da canção poderia ser um um B-Side de Adore (1998) do Smashing Pumpkins pela ótimo trabalho de somar as influências do rock alternativo ao post-rock. A faixa com certeza é um dos pontos do fim do disco.
E assim chegamos a última canção do álbum, “Redibenzed”. Este que homenageia Emily Jane Brontë escritora inglesa mais conhecida por Wuthering Heights e com certeza vocês já ouviram a adaptação dessa obra na voz de Kate Bush, não é mesmo? A canção que é uma das mais belas e emblemáticas da cantora inglesa foi lançada em 1978. A inspiração é claro a forte Emily.
Nada foi fácil na vida de Emily que tinha que escrever abaixo do pseudônimo masculino de Ellis Bell. “Redibenzed” foi inspirada pelo poema Hope (1846). De certa forma é uma maneira esperançosa de finalizar o disco, visto que Emily conta em seus versos que a esperança é um amigo tímido da mesma forma que viaja pelo campo das suas emoções entre o equilíbrio e desequilíbrio que a tal da esperança nos traz. A vida de Emily não foi fácil e talvez ela tenha falecido no seu auge criativo, já que nos deixou apenas um ano após o lançamento de sua obra mais conhecida (Wuthering Heights).
É com paixão, reflexão, ensinamentos e doses de cidadania que o disco se encerra. “Redibenzed” marca a busca por redenção por um futuro melhor. Isso culmina no peso da canção que sintetiza todas facetas instrumentais da banda em um som. Onde há vida há esperança e é essa frase que fica na cabeça do ouvinte.
Podemos sim pegar um pouco da luta destas mulheres incríveis e ver através de suas conquistas: uma maneira de melhorar o mundo que passa por tempos tão retrógados e caóticos. De certa forma esse caos também faz parte da obra.
This Lonely Crowd merece uma salva de palmas pelo conceito e pesquisa literária antes de tecer qualquer tipo de comentário. Através de mulheres de personalidade forte, lutas sociais e espírito transformador o This Lonely Crowd mostra medo, fúria e vontade de lutar em momentos politicamente e sócio-culturais perturbados.
Nos provoca trazendo uma porção de mulheres que lutaram tanto pelo seu espaço na sociedade, para que esta luta ganhe mais vírgulas e novas heroínas. A mensagem do disco vem através do peso da angústia, da delicadeza de acordes que flertam com o post-rock e da elegância das camadas sonoras. Através de apenas 30 minutos eles dão vozes a personagens revolucionárias que nunca deveriam ter sido caladas.
É um disco para se ouvir e se re-ouvir faixa a faixa com atenção. Ele permite que aprendamos com essas histórias que nada está perdido porém o campo de batalha está armado para o combate. E se música, poesia, cinema permitem manifestar essas inquietudes: porque não tentar lutar contra tudo de errado que está em nossa frente? Porque não escrever e musicar a próxima vanguarda?
[Hits Perdidos] Vocês se definem como “Rock de Contos de Fadas”, algo que na literatura também tem seu viés desprendido através do incrível realismo fantástico. Um rico universo de inspiração para escritores como Neil Gaiman. Bandas de metal de renome também já exploraram as obras de Tolkien como inspiração. Como surgiu esse interesse de vocês pelo universo da literatura se somando a música que produzem?
HAMELEN: “O TLC existe justamente por causa desses universos. Somos fascinados por mundos fantásticos e pela relação complexa que eles têm com o real. Então desde a nossa primeira música (“Tinkerbell”, do primeiro EP) a gente explora isso, tentando contar histórias e estórias através do som barulhento. É dessa forma que cantamos para os nossos filhos! Assim eles aprendem a gostar de ler bastante e, de quebra, a admirar a música obscura.”
RAINHA BRANCA: “Até agora tem funcionado em casa!”
[Hits Perdidos] Vocês estão lançando o álbum This Lonely Crowd agora no fim de janeiro. As letras são adaptações de poesias de Florbela Espanca, Mary Shelley, Cora Coralina, Oscar Wilde, dentre outros. Como foi adentrar ao universo de cada um? Como foi o trabalho de reconstrução de importantes obras da literatura mundial?
HAMELEN: “Cada uma dessas autoras tem sua própria beleza. São de momentos e lugares diferentes, quando tudo era muito mais difícil, quando havia muito mais obstáculos para se expressar. Pra mergulhar em cada uma não teve dificuldade alguma; o desafio é encontrar qual trabalho usar, quais palavras seriam mais fácil de desenvolver como uma música. Então a nossa reconstrução aconteceu revendo as obras e escolhendo o que fluísse melhor com guitarras.”
RAINHA BRANCA: “O processo era assim: “essa poesia é perfeita, como isso pode virar uma barulheira?”
[Hits Perdidos] Este é o quinto álbum da banda. Como enxergam a evolução no campo das composições?
HAMELEN: “No começo fazíamos músicas mais simples, até tinham refrão (as vezes). Hoje em dia a gente trabalha com muito mais facilidade, nosso ‘encalhe’ reduziu, conseguimos otimizar a produção e estamos mais pacientes, mais focados nos instrumentos. Mesmo estando há 2 anos sem tocar ao vivo, somos muito disciplinados para compor e, quando alguém participa menos em uma música, tem papel fundamental pra criticar.
A evolução ocorre sempre, cada novo disco tem que ser melhor que o que veio antes; a gente sempre vai tentar fazer nosso melhor. Isso pode não ter relevância nenhuma para o mundo, mas o último sempre será o nosso melhor.”
BONIJOV: “Tem que ir de master system pra megadrive, e não o contrário…”
HURLEBURLEBUTZ: “Não temos medo de nossas limitações como músicos. O TLC sempre tem um pé na tosqueira mesmo, então faz parte. O difícil é diferenciar ‘desistir’ de ‘terminar’ um disco. As vezes você desiste ao invés de finalizar o trabalho porque já está esgotado, já encheu o saco ou não teve tempo nem grana pra deixar do jeito que deveria. A gente tenta com todas as forças ‘terminar’ nossos discos…”
[Hits Perdidos] Algo que não pude deixar de reparar é a panela do som da banda que mistura gêneros opostos mas que na hora de ouvir: faz todo sentido. Como o metal pesado, o shoegaze, o post-rock e o indie rock. Qual seria o cenário perfeito para apreciar o disco?
HAMELEN: “Qualquer lugar entre uma canção de ninar e um stage diving em show do GG Allin… Quer dizer, o limite é o que o freguês quiser. Pra mim, o disco funciona muito bem em fones de ouvido ao longo de uma madrugada sem sono, mas também vai funcionar para sair chutando tudo pela frente as sete da manhã!”
[Hits Perdidos] Como funciona o processo de composição com tantas influências e emoções distintas?
HAMELEN: “Cada faixa tem que funcionar junto com o tema do disco. A maioria das músicas vem de brainstorm coletivo e, eventualmente, planejamos mais demoradamente porque as vezes você fica horas gravando e só sai bobagem. Quando a gente vê que não sai nada, deixa guardado e tenta tempos depois; ou descarta mesmo, sem dó. A instrumental veio inteira primeiro, coisa que a gente faz desde o Möbius (2014); só quando estava tudo pronto que os vocais foram bolados, apenas para explicitar a inspiração/homenagem.”
HURLEBURLEBUTZ: “Primeiro definimos o tema, que quem fez todas as vezes foi o Hamelen. Depois a gente pergunta: “como isso pode soar?” e se responde falando coisa tipo “um Reign in Blood pra namorar” ou “um Mr. Beast com Apetitte for Destruction” ou “Família Do-ré-mi com Kreator”. É uma fórmula com infinitas possibilidades. Daí com as peças na mão, a gente monta o mostrinho. Vale também a história do ‘desistir’ versus o ‘terminar’.”
[Hits Perdidos] O DIY é algo enraizado na banda. Vocês inclusive acreditam na música autoral e distribuída de maneira gratuita. Gostaria que falassem mais sobre essa perspectiva e como enxergam o mercado de música independente no país.
HAMELEN: Eu nunca penso em mercado porque a gente não lucra com o TLC, nem somos uma ‘empresa’. O pouquinho que entrou até hoje foi usado para financiar os artistas que trabalham com a gente, com a arte e tudo mais, e para cobrir gastos das raras apresentações ao vivo.
Não temos competência para falar muito a respeito, o nosso nicho é muito pequeno e, infelizmente, faz parte de algo pouco valorizado em um lugar caótico como o Brasil. Tem que matar um leão por dia pra manter essa chama acessa. Ser adeptos do DIY e do copyleft não aumenta a quantidade de pessoas que vão nos ouvir, mas permite que quem nos procure escute livremente, sem nenhuma restrição.”
BONIJOV: “A gente curte demais fazer o TLC. É fuleiro mas é triunfante, fazemos com muita seriedade, então vai sendo um projeto de cada vez, feito da melhor maneira. O pouquinho que rende, a gente investe de volta, fazendo versão física dos disco etc e tal. Pelo meus cálculos, com mais uns cento e oitenta anos seremos famosos!”
[Hits Perdidos] O interessante da obra é exatamente ver como os contos mesmo não tendo uma relação explícita conseguem contar uma história de dor, de transformação e paixão. Por outro lado algo que foi morrendo na cultura popular são os contadores de história, anônimos que com apenas o recurso da fala levavam ricas histórias para vilarejos distantes. Acreditam que a música de certa forma consegue imortalizar estes versos e amplificar a difusão de outras formas de arte?
HAMELEN: “Sem dúvida! A música acalma nossa alma e faz com que os versos fiquem mais ainda na memória, misturando sentidos na hora de lembra-los. Chega um ponto que você não sabe se leu ou se ouviu e, de repente, você também consegue ‘ver’. Quanto mais existir essa integração de sensações e emoções, melhor.”
[Hits Perdidos] Com uma abertura sonora tão ampla, quais seriam as influências diretas e indiretas de vocês?
HAMELEN: “Costumava ser o rock alternativo dos anos 90, há uns 5-6 anos atrás. Depois a gente foi abrindo o leque e tentando sair da nossa zona de conforto a cada novo lançamento. Hoje a gente se influencia muito também com o rock pesado dos anos 70. Indiretamente, se for rock e estiver na nossa playlist, tá valendo. Eu, por exemplo, só escuto rock, nunca fui de escutar outra coisa.”
TRUSHBEARD: “Sou filho de maquinista da RFFSA. Eu carrego uma bagagem musical deixada como legado pelo meu pai. A maioria dos vinis que ele tinha eram de Jazz, ligados ao fusion, alguma coisa nacional de soul e funk; Black Rio era uma delas, Raul de Souza, Azymuth ele colocava direto nas filmagens em VHS quando ele descia a serra de trem. Mas ele me gravava em k7 coisas do tipo Billy Cobham (e eu ODIAVA os solos de bateria), George Duke, Stanley Clarke, Quincy Jones (em especial o disco The Dude), Chaka Kahn, Weather Report, Chic Corea.
Lembro que a banda preferida dele era o Led Zeppelin. Tinha toda a coleção, mas nunca consegui ouvir, até hoje. O disco mais pesado que ele tinha era o disco de estreia do Sabbath, mas acho que era exceção na coleção. Por isso minha maior influência vem de toda a década de 1980, tinha que ter synths, teclados, programação e uma boa parte dos 1990.”
RAINHA BRANCA: “Rock alternativo; post-rock; metal extremo; pop dos anos 70-80, por que não?”
[Hits Perdidos] Acredito que o audiovisual também complementa a convergência entre literatura-música-cinema. Assim ganhando novas narrativas. Como veem a importância dos clipes como ferramenta de divulgação na era da internet?
HAMELEN: “É muito importante! Só que nem sempre é viável porque as vezes requer muito gasto para ter um resultado próximo do imaginado. A gente nunca interfere na criatividade dos artistas que fizeram clipes para nossas faixas. Todas as vezes deixamos eles totalmente a vontade para interpretar a música e adoramos incondicionalmente todos os clipes que foram feitos. Só que, como estamos naquele nicho pequeno, é óbvio que vamos ter poucos cliques e as pessoas que trabalharam conosco merecem muito mais.”
BONIJOV: “De pouquinho em pouquinho, vamos deixando um rastro na internet. Não dá pra apagar mais!”
HURLEBURLEBUTZ: “É um caminho de migalhas de pão. Se procurar, acha. Tá lá.”
[Hits Perdidos] “Go Where People Sleep And See If They Are Safe” é o primeiro single que deve ganhar um webclipe. Qual foi o maior desafio em adaptar a obra de Jean Ingelow para a “sétima arte”? Quais foram os responsáveis pela direção e como foi o processo?
HAMELEN: “Essa música tem um eastern egg grande, que é o fato do título dela vir de um poema da Survival Series da Jenny Holzer. Misturamos isso com uma poesia da Jean Ingelow, do Mopsa the Fairy, e deu no que deu, funcionou muito bem.
Sabe que os detalhes do webclipe a gente nem bolou ainda? Vamos deixar pra isso acontecer ao longo do ano e daremos carta branca pra quem quer que for filmar/reimaginar.”
[Hits Perdidos] Quais livros teriam interesse em adaptar para um disco? E quais vocês tem lido recentemente?
HAMELEN: “Adaptações: Imajica, The Great and Secret Show ou Weaveworld do Clive Barker! Neverwhere do Neil Gaiman, ele é um grande recontador de histórias. El Aleph (o conto) do Borges. Eu tenho lido muito, então no momento estou no livro 5 da Roda do Tempo, lendo as crônicas completas do Conan e devorando biografias, onde costumo reouvir os discos em questão. A última foi a do João Gordo, um livro espetacular. Foi legal reouvir os discos do RDP enquanto lia cada capítulo.”
RAINHA BRANCA: “Um disco para as Crianças Peculiares seria legal, porque o filme não tá com nada. Estou lendo a trilogia do Hannibal Lecter.”
HURLEBURLEBUTZ: “Er…estou lendo A Guerra dos Tronos!”
[Hits Perdidos] Quais os planos após o lançamento do disco?
HAMELEN: “Vamos ver se sai show em 2017, estamos articulando com a Sinewave para o meio do ano em diante. É muito empenho, a gente tem que trabalhar bastante, falta tempo para ensaiar, tem que cuidar dos filhos e tudo mais…mas vamos dar um jeito, eles já estão começando a se juntar conosco na bagunça. Claro, vamos gravar mais. E mais. Nosso livro ainda não acabou.
RAINHA BRANCA: “Talvez um EP só de versões, quem sabe?”
[Hits Perdidos] Quais bandas recomendariam para os leitores do Hits Perdidos?
HAMELEN: “Hanging Freud, que lançou um disco matador em 2016, uma pérola desconhecida. ruído/mm e Kalouv, sempre impecáveis; The Sorry Shop e Loomer, de quem estou esperamos discos novos esse ano. A Herod vai lançar um de versões do Kraftwerk mês que vem, estou curioso porque não vi eles tocando isso ao vivo. Tem o Erudite Stoner, uma one-man-band de uma qualidade e beleza impressionante, e o Varney, do RJ, uma sonzeira finíssima.
Das bandas ‘famosas’, só escutei o último do Kreator, do Helmet, do Alcest e o Minor Victories. Não consigo mais acompanhar tudo, então o foco acaba sendo no independente, porque sempre nos inspira!
Playlist Exclusiva para o Lançamento no Spotify
Para o lançamento do quinto álbum, This Lonely Crowd (2017), a banda curitibana preparou uma playlist especial contendo canções que os inspiram ou fazem o elo com a literatura da mesma forma que a banda faz com maestria. O Resultado vai da leveza do Of Monsters and Men ao peso do Fear Factory!
Não deixe de seguir o perfil do Hits Perdidos no Spotify pois sempre levaremos para vocês extensão do conteúdo do site para a plataforma.
This Lonely Crowd
Facebook
Bandcamp
YouTube
Site Oficial
Sinewave
Site Oficial
Facebook
Youtube
Bandcamp
Instagram