Vitreaux comenta os bastidores na Espera da Fila
Em 2016 o sentimento do que estamos vivendo hoje já estava presente. Aliás até antes. Embora a consumação do pior viesse a prosperar com as eleições de 2018, desde 2013 o cenário político e as redes sociais inflaram sentimentos como o ódio, o revanchismo, a insanidade e conservadorismo. Tudo isso acabou afetando a rotina de milhões de brasileiros e tem inspirado diversas composições e canções de resistência. A Vitreaux depois de um longo processo de pré-produção, experimentação, e até mesmo residência artística, lançou recentemente seu ótimo segundo disco Na Espera da Fila.
Certamente seria injusto resumir a onda de conservadorismo ao Brasil. O fenômeno tem afetado as principais nações do mundo moderno e trazendo de volta fantasmas de outrora. A resistência esta sim vem como resposta. Seja através de passeatas, seja através de conflitos, discussões, rebeliões ou desentendimentos. Fato é que até mesmo uma pandemia consegue escancarar ainda mais as desigualdades ao redor do planeta.
Resistência como modelos que flertam com o autoritarismo e a censura sempre tivemos. Dos grandes poetas, passando pelos músicos e pelas revoluções da contracultura que de tempos em tempos surgem como pequenas revoluções em meio ao caos. Cada época com a sua linguagem, potência e modo de se fazer serem ouvidos. Desta transgressão e luta que se constroem a união e quem sabe o era da normalização do absurdo, do caos e do preconceito comece a chegar ao fim.
Vitreaux Na Espera da Fila
Naquele ano de 2016 Lucas Gonçalves, Ivan Liberato e João Rocchetti moravam no mesmo teto. Guib Silva morava a menos de dois quilômetros, e com a bateria já montada na sala de estar, era o cenário perfeito para a rotina da banda se confundir com o convívio e a amizade.
Sendo assim uma residência artística onde feito um reality show eles puderam trocar experiências em um nível que talvez não pudessem imaginar antes de vivenciar tudo aquilo. E nem por isso foi um processo simples ou rápido, foram vários momentos que marcaram a concepção do disco. A casa ganhava vida em seus cômodos e a alegria também fazia parte do amadurecimento deste intenso processo.
A proposta era para lá de ousada: “A intenção dos músicos era que o disco se estruturasse como um romance ou o roteiro de um filme, quando um elemento quase imperceptível dos capítulos/cenas iniciais, é retomado lá na frente, ganhando outra dimensão na narrativa.”
Para isso as faixas se conectam com sinais e trechos de narrativas feito um quebra-cabeças e desafiam os ouvintes a desvendar as nuances da história.
As Influências da Vitreaux
A política e a pungência das ditaduras sul-americanas e a inspiração no rock argentino acabam reverberando. Como Almendra, mas também se inspira nos sopros do grupo canadense The Band. Ambas foram bandas formadas em 1967.
As bandas de rock que lutaram contra estes nefastos regimes acabam fazendo parte do escopo…mas não se restringe apenas a isso. A MPB, o rock dos anos 60 e 70 e até mesmo indiretamente as músicas de emancipação de nossos tempos, acabam equalizando dentro das referências diretas e indiretas ao trabalho da Vitreaux.
Entrevista: Vitreaux
Conversamos com a Vitreaux para entender mais sobre o longo processo do disco, D.I.Y., verve política, desdobramentos, influências e o caos do mundo moderno. Recomendamos ouvir o disco enquanto lê a entrevista e boa viagem!
Sinto vocês mais soltos nesse novo álbum, arriscando mais, trabalhando os arranjos com delicadeza, explorando mais texturas e timbres e também com um viés político mais acentuado. Bom foram quatro anos. Quais sentiram que foram os aprendizados? Como observam o processo de produção e os arranjos?
Ivan Liberato: O aprendizado é claro e muito árduo. Tivemos o começo da construção de nossas carreiras na música durante esses quatro anos, e isso envolve desde aprender a cantar sem retorno de voz no palco, levar calote de casas de show, até escrever um projeto de editais, aprender pra que servem os ISRC’s e trocar essas informações entre nós. Isso influenciou totalmente a nossa criação e produção, em todos os sentidos.
Vivíamos embebidos na ideia de não alimentar o sistema alienante, de não participar das panelas, não ajoelhar aos pés dos curadores do SESC ou da milionária assessoria de imprensa pra conseguir um show que te paga duas cervejas quentes, uma linha num site com o nome do seu disco errado e um abraço com tapa nas costas.
A Produção
Então, a produção seguiu um caminho, com pessoas que estavam realmente envolvidas conosco, próximas, presentes e sensíveis.
Tivemos uma produção longa, todas as etapas e pessoas que cruzaram nossa trajetória foram intrinsecamente importantes para entendermos quais eram os timbres, as texturas e as sensações que imaginávamos no espectro sonoro.
A primeira tentativa de tirar as músicas do sofá da nossa sala, foi com os amigos Mancha e Sérgio Ugeda. Fomos para uma casa em Cotia, montamos todos os equipamentos, gravamos tudo ao vivo em dois dias, e voltamos para casa com as tracks. Depois de algumas audições, chegamos a conclusão de que não havíamos tido tanto cuidado com os timbres. A sensação foi muito confusa, porque envolveu um trabalho colossal e isso gerou um desânimo no processo.
A Segunda Tentativa
A segunda tentativa de gravação foi com Vitor Loureiro. Dessa vez tentamos algo novo: gravamos todos os instrumentos separadamente, e claro, não conseguimos trazer a sensação da nossa performance ao vivo, que por unanimidade era a coisa mais importante no nosso fonograma: que estivéssemos juntos.
A Terceira e Última Tentativa: Deu tudo certo!
Por fim, um grande amigo surgiu na jornada desse disco: Caio Alarcon, que trabalhava na Toca do Tatu, estúdio do Guilherme Kastrup. Ele tinha algumas horas de estúdio que poderia usar como quisesse. Ao saber do nosso novo disco, ele abraçou a produção.
Nossos arranjos foram escritos, majoritariamente, por mim (Ivan) e João Rocchetti, que estávamos mais acostumados com a escrita e com as harmonias das músicas. Escrevemos exatamente um dia antes do dia da gravação, então foi uma experiência muito arrepiante e arriscada. Me lembro até de um dos takes de cordas, quando eu me enfurnei quieto num canto da sala e chorei de cabo a rabo.
…Os Imprevistos
Após o disco ter sido gravado, tivemos imprevistos na mixagem. Caio havia tido um problema pessoal que o impediu de continuar o trabalho. Tivemos uma conversa franca e muito triste, foi outro momento de muita tensão e acreditávamos que por tantos infortúnios, o disco não era pra sair. A banda chegou no seu momento mais crítico, tivemos o período mais tenso pra cada um de nós e chegamos a desistir de tudo, tivemos o fim da banda por uma semana e alguns dias.
Foi quando Lucas me mandou uma mensagem falando que tinha escutado uma das faixas e achava que aquilo não devia se perder no universo. Concordei. Voltamos a nos falar e fazer reuniões no “D.P.” e até ensaiar (que saudade) ensaiamos e marcamos um ou dois shows pra nos colocar nos eixos novamente.
Numa dessas apresentações, Pedro Serapicos, um amigo produtor de longa data, apareceu e perguntou do disco engavetado, contamos a história e depois de algumas cervejas ele sugeriu de fazer a mixagem e a masterização conosco, enfim, tínhamos o disco pronto.
Contudo, éramos um quadro clássico de produção independente: músicos sem estratégia de divulgação, e foi aí que Cuca Ferreira do Bixiga 70 e Ro Fonseca do Atônito, ambos da Baticum Discos, e Carime Elmor nos abraçaram com a estratégias, ideias, textos e contatos para colocar nosso disco nos trilhos novamente.”
Lucas Gonçalves
“Sim, como foi um processo mais coletivo, acabou indo para outros lugares. Tem música que o João Rocchetti fez o arranjo de cordas, outra em que o Ivan escreveu a partitura para os metais. Enfim, o disco foi se abrindo para outros instrumentos. Os timbres de guitarra são os da banda mesmo, criados ao vivo, em show.
Usamos praticamente os mesmos instrumentos e pedais na gravação. O João foi quem usou outros contrabaixos nas sessões, e dois pianos que são do estúdio do Kastrup. De bateria, também conseguimos um som bem encorpado da caixa e dos tambores.
Acho que a escolha do Caio Alarcon para esse disco foi um grande acerto. Somado ao seu conhecimento de engenharia de som, ele foi sugerindo algumas ideias para os arranjos também, com muita calma e abrindo possibilidades para experimentações.
Nós já tocávamos o disco desde o final de 2016. Daquele tempo até a gravação definitiva, nós estávamos seguros em relação aos nossos arranjos, enquanto banda. Só que as músicas pediam algo mais. Os arranjos de metais e flauta entraram quase que no final do processo de produção do disco. Foi uma correria danada, mas definiu bem a estética sonora que a gente buscava.”
João Rocchetti
“Os aprendizados foram múltiplos. Começando pelo fato de que nunca havíamos tido a experiência (e que experiência boa!) de ter músicos queridos gravando arranjos junto com a gente no estúdio, geralmente arranjos escritos na partitura, como os arranjos para metais em ‘Na Avenida’ e em ‘Prestes Prestes’, e o trio de cordas em ‘Quando a gente apaga a luz’ (que era para ser executado como quarteto de cordas, mas que no fim acabou sendo trio mesmo, por falta de mais um ou uma violinista!).
A banda aprendeu muito nesse processo… essa coisa de morar todos juntos na mesma casa – tirando o Guib, que morava próximo – ajudou muito no sentido de termos bastante tempo para trocarmos ideias e experimentar caminhos sonoros novos. É interessante notar como a bateria e o baixo estão quase colados na gravação, e como as duas guitarras conversam tão bem entre si.
Isso revela um amadurecimento da banda, sem dúvida… na concepção dos arranjos, das bases, das letras, da coisa toda. Banda morando na mesma casa dá nisso! (risos) E numas briguinhas também.”
A capa é chocante. Mostra trabalhadores indo para o enforcamento em praça pública. Tem a ver com o momento da reforma da previdência, autoritarismo e a perda de direitos? Contem detalhes sobre a sua concepção.
Ivan Liberato: A ideia surgiu de algumas conversas entre eu e o Lucas sobre as coisas que nos fustigavam enquanto pessoas que vivem dentro de um sistema de organização e hierarquização das massas. A “fila” se tornou um símbolo muito frequente nestas discussões. De todos os ângulos que essa ideia se mostrava, nós víamos o sistema se alimentando e crescendo com voracidade e violência a partir apenas das expectativas. Meio ao som de “Comportamento Geral”, de Gonzaguinha, a ideia foi tomando forma.”
Lucas Gonçalves
“Sim sim, bastante. Tentamos ilustrar essa valsa triste do operário e do oprimido pelo sistema. Do sufoco que é trabalhar duro a vida toda, de dar o suor para sobreviver, e no fim, não conseguir gozar a vida. Não sobra tempo para aproveitar o “presente”.
Sobre a capa, nós pensamos em uma fila com sete pessoas – trabalhadores para serem enforcados. Muitos perguntam do Ivan, mas ele já está lá, com um capuz na cabeça, esperando o golpe do carrasco.
Do outro lado, convidamos alguns amigos para representar algumas entidades. Tem um guia espiritual com um disco na mão. Tem a revolução, representada pela Gabi Magalhães, de vestido vermelho. Um artista tocando violão na praça, com o case aberto esperando algumas moedas. Um bêbado, uma viúva e um ex soldado que está tentando meditar. Pensamos em convidar alguns amigos que nos rodeavam na época. Alguns conheciam bem o disco, porque frequentavam a casa e assistiram aos ensaios.”
João Rocchetti
“É possível ter várias interpretações a respeito. Eu não participei do momento da concepção da capa (que foi uma ideia do Lucas) e, de início, até tive algumas reservas em relação a ela figurar como capa do álbum. Essa ideia da gente representar um enforcamento em praça pública me dava arrepios!
Enfim, acho que a capa simboliza a vida árdua de muitos trabalhadores/operários que tiveram que se submeter a condições ruins de trabalho, e que labutaram intensamente nas fábricas boa parte de suas vidas e que no fim – muitas vezes não recebendo aposentadoria digna, é claro – vão embora sem ter tido tantas oportunidades (ou tempo) de fruir a vida…
Há outros personagens também, cada um simbolizando algo diferente e, claro, há a figura do carrasco, que personifica Thánatos – ou a morte – nessa pequena narrativa. Enfim, isso ainda era um pouco antes da eleição do Bolsonaro, mas à partir do momento em que esse terrível acontecimento ganhou forma (a eleição do Bolso, claro), seguido desse (des)governo medonho e desestabilizador, a ideia da capa foi ganhando sentido para mim, ou novos sentidos, até. Enfim, pode-se ter várias leituras à partir do contato e posterior reflexão do que está retratado na capa.”
Queria que contassem sobre como a casa e o convívio influenciaram no processo e como foram absorvendo influências sonoras que não apareciam no álbum anterior.
Acabou que foi uma residência mas também funcionando como residência artística, se é que me entendem. Contem mais sobre isso e também sobre o processo de amadurecimento das faixas. Como foi para vocês se despedir da casa?
Ivan Liberato: Acho que todas as formas de vivências coletivas são, em algum lugar, uma fuga do “conforto” que nos é vendido, que está enraizado numa matriz de individualismo, de consumo da propriedade privada.
O salto quântico que se dá quando você se propõe cuidar de alguém e deixar ser cuidado por alguém, deixar o espaço individual de cada um se manifestar num mesmo espaço, é transformador e político.
Acredito que seja uma das esperanças que guardo em mim desde a minha chegada e saída do Departamento de Cordas, onde aprendi a ser escutado, ouvir, falar, ser atravessado, ouvir outras músicas, passar café pra oito, seis pessoas, fazer vaquinha pra comprar arroz, feijão, enfim, o “Departamento” não era só um lugar onde eu, Lucas e João morávamos, era um ponto de encontro de muitos amigos músicos e artistas, então, ali nasceram muitos projetos, ensaios, festas, loucuras. Fizemos do Departamento uma segunda casa pra uma galera.
Acho que esse constante atravessamento de um ao outro com as ideias da madrugada, o riff que você escutou enquanto pegava no sono, a letra que achou atrás da geladeira, o barulho que cada um colocava ali foi se afinando e o resultado foi essa coesão, uma sensação de unidade, estávamos muito afinados entre nós e entendemos como cada um se expressava e como jogar com isso.
A despedida da casa foi muito tranquila, eu fui o primeiro da banda a sair de lá, então foi um tanto melancólico, mas foi para melhor, eu morava no quarto de baixo que era um quarto sem ventilação, sem luz e com muita umidade, todos entenderam que eu precisava sair de lá, não era nada saudável.”
Lucas Gonçalves
“Acho que foi ótimo criar um disco de banda sob essa circunstância. Morar junto não só descomplicava os ensaios, como também dobrava o tempo da liberdade criativa do grupo. Sempre tinha um violão presente no ato de passar um café. Havia muita troca de referências musicais.
Ouvimos bastante The Band, que também foi uma banda que dividiu uma casa para compor o primeiro álbum deles, o “Music from Big Pink“. Lembro da banda ensaiando “Na Avenida” pela 43ª vez e ainda vibrando, todos energizados. A gente gostava muito dessas músicas, mas não menos de tocá-las em um volume exagerado!”
João Rocchetti
“O convívio a três influenciou bastante na elaboração do álbum. Geralmente a composição das músicas acontecia na sala, com o Lucas e o Ivan abrindo umas cervejas e pegando os violões e eu sentando junto com um violão ou um piano digital que tinha lá em casa (e eventualmente, pegando umas cervejas também, claro).
Na época estávamos ouvindo muito The Band, Grateful Dead, Beto Guedes, Lô e Milton… também Wilco, Almendra, Raíces de América, Tarancón. ‘Meia Luz’ é uma espécie de guarânia, ritmo que nunca tínhamos usado antes em composições da banda. Gostei muito de escrever e transcrever os arranjos em algumas músicas. Ivan escreveu/transcreveu em outras… e tivemos a colaboração do Beto Mejía, que adicionou ao arranjo lindas melodias de flauta transversal.
Quanto à despedida da casa, isso poderia ser um capítulo à parte! O processo de dissolução da formação clássica do (assim chamado) Departamento de Cordas foi um processo um tanto doloroso… mas até hoje sinto saudades das festinhas e das experiências musicais que aconteceram naquela sala e dos aspectos positivos da nossa convivência ali. Amigos e amigas queridxs pintavam por lá frequentemente e havia um certo senso de coletividade que nutria o ethos daquele espaço.”
O rock teve um protagonismo na época do fim da ditadura brasileira e isso também acabou ocorrendo em outros países. Como é para vocês ver que essas bandas que inspiraram enfrentando governos tiranos? Quais mais marcaram e porque?
Ivan Liberato: “A arte vive nos ensinando coisas maravilhosas. Acredito que tem um poder de transformação do pensamento coletivo pelas mínimas coisas até sociedades inteiras, esses artistas conseguiram, num momento de muita tensão e medo, expressar tudo que se passava na cabeça deles, e é um parto e tanto.
Quem cria sabe que qualquer empecilho da vida traz consigo uma dificuldade na produtividade se você não conseguir canalizar aquela sensação direito. E num contexto onde parentes, amigos, jornalistas e artistas começam a ser presos, agredidos, simplesmente sumir, se suicidar, serem suicidados e apagados da história, o grau de dificuldade de entender o seu papel e colocar sua expressão como possível agente e talvez o mais importante dos agentes dessa transformação que a sua realidade passa, é quase inimaginável.
Acho que nesse sentido Mercedes Sosa, Atahualpa Yupanqui, O Clube da Esquina, Os Doces Bárbaros, Novos Baianos, Os Mutantes, Chico Buarque, Gonzaguinha, Raul Seixas, Elis Regina, Taiguara, Nara Leão, Secos e Molhados, Clara Nunes, são alguns dos artistas que mais me inspiram desse contexto, por simplesmente traduzirem aquele tempo da maneira que conseguiam enxergar.”
Lucas Gonçalves
“O rock, no passado, sempre teve uma postura imoral, de subversão, de pregar o nado contra as marés, principalmente as marés conservadoras. Então, seja em seu volume exagerado, no seu twist acelerado ou em seus modos…
Era, em suma, um movimento pela liberdade artística, de expressão, amor livre, drogas… Durante os governos autoritários, onde você se vê preso em padrões, aí é quase instintivo você lutar contra. Mesmo artistas consagrados embarcavam nesses movimentos de libertar o povo. John Lennon, Bob Dylan, Roger Waters, etc… e aqui no Brasil, nosso eterno Raul Seixas, que brigou até o fim empunhando a sua guitarra contra a dita cuja.
A musa Rita Lee, sempre contra a censura. O Ivan Lins, com o seu “Modo Livre”. O Caetano e o Gil refazendo o rock and roll e transformando a música brasileira. Milton, Lô e Beto Guedes, com a sua poesia abstrata, “raspando as cores para o mofo aparecer”.
Tem um disco do Gerson Conrad (que fazia parte do Secos e Molhados) com o Zezé Motta. É de 1975 e tem uma faixa maravilhosa que se chama “1974”. A banda ao vivo no estúdio, quente, segurando a “barra” dos tempos. Indico super essa faixa. O primeiro disco da banda argentina Almendra, homônimo, de 1969, carrega aquela áurea acinzentada do que foi a ditadura na Argentina. Isso foi o que eu persegui em termos de climas para o disco.”
João Rocchetti
“Os artistas do rock tupiniquim e da nascente MPB – bem como o pessoal do cinema, das artes plásticas, os tropicalistas e os chamados poetas marginais – tiveram um protagonismo importante não só no final da ditadura, mas também no começo… É só a gente se lembrar de Gil, Caetano, Chico, Gal, Jorge Mautner, Novos Baianos, Helio Oiticica, Glauber Rocha… Artistas que sabiam expressar muito bem o descontentamento das pessoas minimamente sensíveis diante dos abusos do poder, da censura, da perda do direito de se expressar livremente.
O pessoal dos Mutantes, dos Novos Baianos e gente como o Zé Celso Martinez Corrêa e o Augusto Boal me fascinam, porque estavam revolucionando, também, nos costumes e na maneira de se apresentar nos shows ou no modo de se fazer teatro, assimilando o que a contracultura dos anos 60 ofereceu de melhor: liberdade de costumes, de pensamento e essa busca tão especial em relação a novas formas de se viver em sociedade… e em provocar – muitas vezes com graça e poesia – a caretice e o establishment conservador da época.”
Bom, em nossos tempos talvez o rock não tenha pego tanto esse protagonismo, quais artistas de outros estilos veem que tem abraçado de forma bacana essa luta política muito além da música?
Ivan Liberato: Acho que temos grandes artistas no Brasil. Temos aí figuras como o Edgar, Jup do Bairro, Maria Beraldo, Djonga, Baco Exu do Blues, Rincon Sapiência, Ava Rocha, Josyara, Negro Leo e entre outros, todos eles têm um forte apelo político sem ser panfletário, no sentido que acho que mais me contempla artisticamente.”
Lucas Gonçalves
“Acho que o Rap nasceu com esse propósito de denunciar, de contar a realidade, de apontar todos os problemas sociais que os donos da bola esqueceram. Esses artistas têm contado boa parte da história real do país nos últimos anos. O que o movimento punk também fez pelo país nos anos 1980.
Hoje, vejo (ouço) muitos artistas que, dentro de qualquer proposta musical, vem se posicionando muito bem e nos fazendo repensar o nosso papel, como cidadãos e artistas, na atual situação. É preciso negar o estabelecido e aceitar a evolução, permitir-se à desconstrução. São várias pérolas: Giovani Cidreira, Juliana Perdigão, Djonga, Chico Salem, Bia Ferreira, Arnaldo Antunes, Teago Oliveira…”
João Rocchetti
“Muito do que se tem feito em termos de rock hoje em dia não tem muito de revolucionário… Artistas do hip-hop tem tido um protagonismo e uma importância política muito maior, visto que são, de um modo geral, mais eficazes em traduzir esse anseio por mudança social, descontentamento dos menos favorecidos e/ou refletir em suas letras os problemas novos e antigos de comunidades inteiras.
Nesse segmento, gosto do Mano Brown, do Emicida e de gente mais nova como a rapper/musicista Brisa Flow (que conheci pessoalmente e de quem tenho admirado muito o trabalho). Falando em outras estéticas sonoras, gosto muito do trabalho da Ava Rocha, do Negro Leo, do Pedro Pastoriz, do Giovani Cidreira… artistas que sabem provocar e colocar o dedo na ferida de maneiras muito inusitadas.
Essa coisa do “rock coxinha” também não reflete cem por cento a realidade do rock atual, logicamente. Claro que há um monte de banda retrógrada por aí, mas há também muitas e muitas bandas novas que têm abraçado pautas progressistas em suas músicas e muitas vezes tem um bocado de roquenrou em suas estéticas de som.
E não só: é um pouco rock, um pouco nova-mpb, uma pitada de psicodelia/doideira, um pouco de jazz ou um tanto afrobeat. O espectro das misturas musicais é muito amplo! Então, hoje em dia, vejo o rock como um lance mais de atitude, de se tocar “com sangue nos olhos”, de tocar e abraçar uma performance com intensidade e certa visceralidade.”
Como veem as outras lutas políticas e sociais que acontecem em paralelo e a normalização do absurdo? Regredimos tanto assim?
Como acreditam que devemos enfrentar esses tempos para que sejamos ouvidos?
Ivan Liberato: Me parece que as duas coisas só andam em direções opostas por estarem paralelas, por estarmos absolutamente segmentados entre dias numa avenida; é esse o problema, evitar conflitos acaba acentuando e extremando ambas as partes, é um ponto crítico, estamos tendo que lutar contra a polícia que não apenas protege fascistas como assassina exatamente quem os fascistas querem assassinar.
Acho que a partir do presente não existe regressão, o que estamos vendo é um produto final de algo plantado há muitos anos.
Os ideais que nos vomitam pelas telas, as agressões virtuais, o culto ao individualismo e a matéria, a mentira, o sonho americano e a grana são só galhos dessa árvore morta, e é só tempo até que isso caia por terra e comece a adubar um novo solo, ali eu acho que precisamos estar juntos, acho que um bom jeito de começar a se juntar é se propor a cuidar uns dos outros, conhecer uns aos outros, seja lá quem for, só podemos ser ouvidos se entendermos que precisamos ouvir também.
Lucas Gonçalves
“Acho que todas essas lutas sociais são pontos de partida para uma revolução, no modo de viver e fazer política. Não dá para fechar os olhos agora. Analisando a história você vê que sempre foi constante o abuso da força policial, e direcionada. Vivemos em uma sociedade preconceituosa, racista e muito violenta. O golpe de 2016, a demonização do PT, a caça ao ex-presidente Luis Inácio. Daí, o Sergio Moro, que engendrou todo esse plano assume o ministério da justiça.
Tudo aconteceu de maneira muito suspeita.
Está rolando essa onda de extrema direita pelo mundo, né. Vai passar. É cíclico. Pode passar mais depressa se a gente tomar as ruas, de forma pacífica e, a plenos pulmões, soltar a nossa voz.
O que o movimento negro fez pelos EUA foi emocionante! Foi a gota d’água o assassinato do George Floyd. Na Inglaterra, a estátua de um escravocrata foi jogada rio abaixo por manifestantes. Lindo!
Aqui também vai rolar, mas é um plano pós-pandemia. Seguimos firmes, enquanto não é desenvolvida uma vacina, ou medicação com eficácia comprovada. Mas o manifesto segue, seja pela arte, pela janela ou pelas redes afora.
João Rocchetti
“Nesse momento tão triste de descaso, omissão e rechaço em relação aos povos indígenas, às minorias e aos mais pobres e vulneráveis socialmente, vejo como extremamente necessárias e urgentes certas lutas sociais.
A luta por direitos negados e muitas vezes vilipendiados: o direito do índio de não ter a sua terra (garantida pela Constituição) explorada de modo insustentável pelo garimpo ilegal ou pelos madeireiros (bem como seu direito inalienável de preservar a sua cultura e os seus costumes); o direito de não ser discriminado, humilhado, agredido ou morto por forças repressoras racistas enquanto se anda pela rua; o direito de uma família sem-terra por um pedaço de terra em que possa produzir e erguer uma moradia digna.
Devemos ficar vigilantes para não nos acostumarmos com todos os absurdos diários que vem acontecendo, e não regredir nesse sentido, de aceitar passivamente a gradual destruição da nossa democracia e ficarmos de braços cruzados na posição de “telespectadores alheios” em relação a toda essa perversidade que tá rolando.
União entre bandas independentes
Falando na perspectiva de banda independente, para sermos mais ouvidos precisamos ter ainda mais união entre as bandas, entre os pares. Deixar um pouco de lado essa cultura da “minha panela não se mistura com aquela outra” porque, enfim, no meio dessa dificuldade toda para sermos ouvidos, estamos todos juntos no mesmo barco… ou na mesma casa! e a nossa casa, devido a esse momento tão desafiador, corre o risco de ser fechada: aquela casa de shows que a gente ama ou um espaço público que a gente valoriza e nos abre portas.”
Faixa a Faixa Por Carime Elmor
“Na Avenida”
“Na Avenida” foi o primeiro single, lançado em 2017. Após passarem uma madrugada de setembro acesos gravando todas as vozes e instrumentos, decidiram colocar no ar no dia seguinte. A canção cria um imaginário de bombas lançadas no asfalto das grandes avenidas, com pessoas expressando desespero e correndo sem direção.
A população, que antes ocupava as ruas em manifestações contra o estado, sofreram com a repressão e a violência policial. Para o disco, a música ganhou arranjos de metais criados por Ivan Liberato e executados por Douglas Antunes, no trombone, Cuca Ferreira, no sax barítono e Natan Oliveira, no trompete.
“Meia Luz”
“Meia Luz” que conta com um lyric video é uma guarânia, ritmo paraguaio, só que abrasileirado. Simulando uma cavalgada policial, a Vitreaux traça um cenário obscuro e de ar rarefeito. Foi escrita com o prédio do DOI-CODI em mente, tentando colocar em música, o que a história daquele Centro de Operações de Defesa Interna provoca de sensações até hoje.
A canção foi a primeira a ser criada e serviu como um guia para todo o disco. Fala sobre o papel da arte de ser luz em tempos gris, e de não deixar que o passado caia no esquecimento. “A gente tentou condensar e explicar aquele momento. Queremos trazer luz às investigações sobre os crimes de tortura que foram retomados pela Comissão Nacional da Verdade”. O trombone, de Douglas, anuncia a música junto aos vocais da banda, e ao final, faz um solo dobrando o contrabaixo.
“Prestes Prestes”
“Prestes Prestes” foi o último single, lançado com um videoclipe caseiro feito no período de isolamento social. É sobre estar visitando o abismo, beirando o precipício. Caminhando lentamente para o fundo do poço. “Viver é ficar por um triz”, é a frase central da música. O cenário é de crise, com pessoas passando sede e vivendo em situação de rua no centro de São Paulo. Tudo está ruindo. O trio de metais, nesta música, foi acrescido da flauta de Beto Mejia. O arranjo é de João Rocchetti.
“Na espera da fila”
“Na espera da fila” costura todas as outras. Foi a última composição criada por Lucas Gonçalves e Ivan Liberato, e foi quando perceberam que o disco não estava mais flutuando, existia um sentido para amarrar a história.
Em uma madrugada de 2016, os dois ficaram em silêncio, andando pela casa, em busca das palavras: “Morrer na espera da fila”. “Tudo que a gente está querendo dizer, a gente está conseguindo!”, pensaram.
Fala sobre ser resistência e se manter na contramão e, também, sobre a decadência das casas de show que dão espaço para bandas independentes: “Não tem mais concerto porque a casa vai fechar”. A faixa tem o arranjo de flauta de Beto Mejia.
“Quando a gente apaga luz”
“Quando a gente apaga luz” traça a loucura de um mundo em que situações antagônicas se sobrepõem a todo instante. A imagem inicial é de um avião lotado, caindo. Enquanto tudo está acontecendo lá fora, duas pessoas apagam a luz e se entregam uma para a outra. Um atentado no cinema, uma explosão num trem descarrilhado, há um excesso de informação.
A música é encoberta por uma névoa que procura dar essa sensação de vertigem sobre a interpretação do mundo. Ao final, há um improviso de cordas de Michele Melo, na viola, Paulo Costa, no violino e Rodrigo Prado, no cello – a partir do arranjo escrito por João.
“Vi o seu recado agora”
“Vi o seu recado agora” é um interlúdio. O único trecho otimista do disco. Uma vinheta de resposta à Prestes Prestes que conta sobre abrir um bilhete, e se deparar com uma mensagem de esperança.
“Fim da greve”
“Fim da greve” é escrita sob a perspectiva de um trabalhador caminhando, sozinho, de volta ao serviço. Após um tempo lutando contra a opressão de sua classe, o personagem entra em um conformismo:
“Tô vendendo sonho para a encher a geladeira / mas na quarta-feira e domingo o futebol”. A rua está deserta, sem vento, sem movimento. Os cartazes anunciando a greve foram pisoteados junto aos cacos de vidro no chão. Há um pessimismo em cada passo que se aproxima do retorno à dura realidade – “Tudo outra vez” é a frase que encerra e ao mesmo tempo, como um ciclo, faz um convite para se reiniciar o disco.