“A gente pertence a natureza, e não ela pertence a gente”, Kunumí MC
Kunumí MC (atualmente Owerá) é o nome artístico do rapper Werá Jeguaka Mirim, indígena guarani, da aldeia Krukutu, em Parelheiros, zona sul paulista. Com o rap o músico expõe as lutas indígenas, aborda temas sobre sua cultura, reivindica direitos como demarcação de terras e a proibição de construções em territórios indígenas.
A música é mais uma extensão da escrita de Kunumí, autor do livro Conto dos Curumins Guaranis, que ajuda assim a manter viva a cultura e a ancestralidade do seu povo através de contos e canções. Uma luta herdada de seu pai, Olivio Jekupé, escritor de 19 livros, entre eles A Mulher Que Virou Urutau, Tekoa: Conhecendo Uma Aldeia Indígena, 500 Anos de Angústia.
A Trajetória no Rap de Kunumí MC
Kunumí MC lançou o primeiro EP em 2017, My Blood is Red, e um disco, Todo Dia É Dia de Índio, em 2018, tendo referências de Criolo, Sabotage, Racionais e BRÔ’s MC’s – primeiro grupo de raper indígena.
Agora o artista apresenta em 2020 o single “Xondaro Ka’aguy Reguá” (Guerreiro da Floresta), cantado em guarani mbyia, narra uma lenda premonitória desta etnia sobre um guerreiro que nascerá das águas e levará seu povo a uma nova existência.
Contar a história de seu povo através da escrita, da música e da fala, mantêm a memória viva, tendo em vista que a invasão do homem branco apagou boa parte de sua história. A ancestralidade é um tema importante para os indígenas, assim, eles sabem de onde vieram, como manter e passar sua forma de vida adiante nunca se esquecendo dos seus.
A Preocupação com o avanço do Coronavírus nas Aldeias
A pandemia de Covid-19 é mais um braço da invasão dos brancos que nunca deixou de existir.
“Hoje a Covid-19 já infectou várias pessoas indígenas, eu fico triste porque essa doença já matou alguns indígenas, os mais velhos. Hoje tem casos de jovens que pegaram a doença, mas passou, teve anticorpos. Eu fico triste porque os mais velhos são os mais afetados. Quando perdemos os mais velhos, perdemos também uma ancestralidade, uma história que ele carregava, e que a gente não teve tempo pra ouvir”, conta Kunumí MC
A Pandemia nas Aldeias
Kunumí MC: “A gente vive numa aldeia, então acredito que isso já é um isolamento, antes de pandemia de COVID-19 a gente já não costumava sair porque já acreditava que na cidade havia muitas doenças.
Espiritualmente também, é uma energia muito pesada, então a gente é acostumado a ficar aqui na aldeia mesmo. Na floresta tem lugar para a gente respirar melhor, porque na cidade o indígena não consegue viver, é muito barulhento, a gente vive aqui sossegado. Com a pandemia a gente não sai do mesmo jeito, é obrigado a não sair. E também na aldeia não aceitamos mais, por enquanto, a entrada de turistas, pessoas que querem conhecer, no momento não estamos autorizando.”
Enquanto conversávamos seu pai, Olívio, foi diagnosticado com Covid-19 mas se recuperou.
Segundo dados da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, APIB, já foram contaminados pela Covid-19 cerca de 18.854 mil indígenas, 582 morreram e 145 povos foram infectados. (Dados atualizados em 27 de Julho de 2020, 00:10)
A subnotificação também acontece nas aldeias, no Amazonas os dados divulgados pela APIB são maiores que os divulgados pelo Ministério da Saúde, uma diferença de 560 casos. com 120 mortes a mais. Segundo o Ministério são 2.450 casos com 63 mortes, mas a realidade apurada pela APIB é de 3.010 casos e 183 mortes.
Conflitos
Menos de 10% sobreviveram até 1600. Se 90% foi dizimado logo no início, pense em quanta cultura, inteligência, saberes, e pessoas perdemos.
O Brasil teve como Política Pública de Estado, logo em seu início com a invasão dos europeus, a escravização dos povos originários para roubar as riquezas que haviam no país como pau-brasil, madeira, borracha, ouro e outros. Os europeus chegaram doentes e com fome, os indígenas cuidaram deles e depois viram sua cultura sendo apagada e seus povos dizimados.
Os portugueses, espanhóis, franceses e holandeses plantaram igrejas no meio das matas e trouxeram comerciantes aos redores dessas igrejas, constituindo assim as vilas que se tornaram as cidades existentes hoje. Isso foi feito expulsando os indígenas que ali viviam, invadindo e destruindo espaços. De 6 a 8 milhões de indígenas foram dizimados no Brasil, é difícil calcular mas acredita-se que existem mais de 300 povos, 800 mil indígenas, e 270 línguas na atualidade.
“Hoje em todo Brasil existem conflitos, de maneiras diferentes, tipo aqui na aldeia a cidade está bem próxima. Não é a aldeia que chegou próxima, a gente tá no mesmo lugar, desde 1500, é a cidade que está crescendo rapidamente e é por isso que hoje vivemos próximo da cidade”
Kunumí MC continua: “Em outros lugares do Brasil, nas aldeias indígenas, tem lugares que a cidade não está tão perto, mas tem fazendas que estão sim, existem também essas brigas pelas terras, que os ruralistas tentam derrubar os indígenas, pegar as terras indígenas, e tem um apoio enorme dos políticos capitalistas, e isso para nós é ruim, porque sabemos que os políticos não apoiam os povos indígenas, e nós estamos na luta.”
O que pode ser feito?
Um modelo de desenvolvimento ético não passa por destruir terras e povos. As terras tem riquezas exatamente porque os indígenas estão cuidando delas.
Kunumí MC: “O que pode ser feito para essa luta da demarcação, é que as embaixadas dos outros países vejam a nossa luta, e façam protestos para a imprensa ver, as mídias, para que vejam que o indígena estava sempre certo. A gente não luta só pela gente, a gente luta pela humanidade, pra salvar o nosso planeta.”
Conhecer e ouvir mais como o artista diz.
Kunumí MC: “Conhecer os indígenas, porque não adianta nada ajudar numa luta pela demarcação sem saber pelo que a gente luta. Primeiro entender que não existe apenas uma língua, uma cultura. É uma diversidade enorme que está ali dentro dos territórios indígenas.
Eu tenho a minha cultura que é o Guarani. Cada povo tem a sua própria cultura e seu próprio idioma. Conhecer os artistas indígenas, como eu, porque o meu trabalho é muito importante, e a escrita indígena também. Hoje existe a Lei 11.645, essa lei é pra conhecer os povos, é importante para os professores, para conhecer a realidade indígena, conversar com alunos, e falar o certo, porque tem muita história mal contada, desde 1500.”
Kunumí MC: “Aqui na aldeia, no território indígena Tenondé Porã, tem uma ONG chamada Comissão Guarani Yvyrupa, eles estão recebendo doações, essa comissão é organizada pelos guaranis daqui da aldeia e assim que recebem doações de alimentos eles dividem para várias aldeias do território. Aqui tem 8 aldeias.”
Ao fim da entrevista disponibilizamos os links para ajudar as causas indígenas.
Aliados e Políticos
Kunumí MC: “Tenho certeza que a gente teve mais respeito dos que apóiam os indígenas, e principalmente dos negros, que estão na luta com o indígena. Somos irmãos.
Infelizmente os políticos não pensam igual a gente, eles pensam muito em enriquecer o país, mas pra isso eles fazem muitas coisas ruins, não tem respeito com os povos indígenas. Porque os povos indígenas respeitam a natureza, tentam salvar a natureza, mas os políticos não pensam no futuro, a gente pensa no futuro.”
Religião
Kunumí: “Aqui na aldeia Krukutu a gente tem a nossa cultura, toda noite a gente vai para a casa de reza pedir força a Nhanderu, o nosso deus. A gente contempla cantando nossas músicas religiosas, e como meu pai sempre fala: A cultura é a nossa religião. E também a gente tem nossas histórias, que as nossas historias tem uma importância muito grande, porque a gente vive a nossa vida, nosso cotidiano, sempre pensando nas nossas histórias, que aconteceu no passado, e nossas histórias é uma oralidade contada pelos mais velhos, anciões, mas também tem pessoas mais jovens que sabem cantar.”
Após 520 anos alguns grupos insistem em seus erros, como o músico nos conta.
Kunumí MC: “Tem muitos evangélicos que vem aqui na aldeia querendo fazer uma pregação, eu fico muito triste, porque isso não é respeito. A gente tem respeito com outro povo indígena mesmo sendo uma cultura diferente, e chamamos de parentes, porque não somos diferentes, só é uma língua diferente. Os crentes vem aqui querendo fazer pregação, isso não deveria acontecer, eles não tem respeito pra fazer pregação.”
A história nos remonta à época das cruzadas, invasão dos europeus católicos nas terras do oriente, a expansão européia passou por cima de povos originários espalhados pelo mundo todo apagando culturas.
Calcula-se que no Brasil haviam entre 6 a 8 milhões de indígenas, é difícil ter um dado exato pois muitas culturas foram exterminadas, e nem registros delas existem. Hoje temos 800 mil indígenas, e a pandemia de Covid-19 faz esse dado diminuir. Mais uma vez, uma doença do homem branco chega as aldeias, cuja algumas nem tinham a palavra “doença” em suas línguas. A pandemia já acometeu mais de 17 mil indígenas, matando assim anciões, líderes e curumins.
Língua
Kunumí MC: “Eu lancei uma música chamada “Xondaro Ka’aguy Reguá”, essa música é a primeira que eu canto só em guarani, não é tupi guarani, ou se fala guarani ou se fala só tupi. O guarani pertence ao tronco linguístico do tupi, mas é diferente.
Pra mim é muito importante cantar em guarani pra levar uma força comigo, acredito que o guarani tem uma força, as palavras guaranis, a língua indígena, todas as línguas indígenas tem força. Cantando no meu próprio idioma, canto junto com os ancestrais.”
História e luta
Kunumí MC: “Desde 1500 a gente teve uma liderança que luta pela sua aldeia, pelo seu povo indígena. Hoje a gente tem grandes lideranças, que fazem viagens para outros países, com propósito de levar a nossa luta e pedir apoio, porque sabemos que aqui no Brasil, se depender dos políticos a gente não tem apoio nenhum.
Então a gente tem essas grandes lideranças, organizações que estão sempre juntas com outras lideranças indígenas de outras aldeias. E um exemplo que eu tenho de liderança é o Paulinho Paiakan, foi uma grande liderança, guerreiro, infelizmente ele faleceu mês passado por conta da doença Covid-19. Ele lutou muito, ficou muito famoso, mas fizeram uma sacanagem com ele, pra derrubar ele. Os brancos não querem que o indígena seja famoso, pra que não mostre o que ele tem a dizer.”
A Luta Indígena
Kunumí MC: “Eu como jovem indígena também faço parte da luta, mesmo estando apenas aqui na aldeia, não sendo muito conhecido, mas eu apoio muito as pessoas que lutam pelas suas terras, e pra dar apoio eu canto meus raps, pra dar força pra eles, também eu canto na minha própria língua, que é uma forma de levar força para as lideranças na luta de preservar a nossa aldeia e a nossa cultura.”
O Trabalho Artístico como Luta
Kunumí MC: “Hoje tenho vários trabalhos que eu fiz, ainda não lancei, tenho vários textos, escritos indígenas, estou a espera de uma editora que se interessa pelo meu trabalho. Ainda tenho muitos raps que escrevi e ainda não gravei. Quem sabe um dia eu posso publicar esses meus trabalhos.”
Kunumí MC: “A questão da luta indígena mudou muito, hoje a gente tem mais voz, o nosso povo tá mais reunido. Tem muita gente, homem branco que respeita a gente, que apóia, mas tem muitas pessoas que não apóiam. Hoje a gente tem o direito de falar da nossa luta, como eu que canto rap. Antigamente a gente não tinha voz pra nada, nem de o indígena de ser vereador, político, escritor. Mas ainda tem muito preconceito, quando fala de um indígena, as pessoas se assustam, quando falam de um artista indígena as pessoas acham impossível.
Estamos aqui na aldeia com a nossa cultura mas não somos diferentes, somos iguais a todos, a nossa diferença é que carregamos uma ancestralidade de nosso povo antigo, que morreram, e que estão com a gente para fazer essa grande luta pela demarcação. E também preservar a nossa cultura e a nossa natureza. Porque sabemos que a gente pertence a natureza, e não ela pertence a gente. Então temos que cuidar dela, vivemos por causa dela.”
MOV FESTIVAL DIGITAL
Impossibilitado de realizar a 4ª edição física do MOV FESTIVAL devido ao isolamento social, o produtor cultural e idealizador do festival carioca, Daniel Martins, convidou a artista Luv para fazer projeções de seu trabalho na empena (parte lateral) de um prédio na Rua Maria Eugênia, no Humaitá, a partir da janela de seu apartamento.
Depois da aceitação dos vizinhos, e de se unirem à estudante de cinema, Luiza Dacol, e aos criativos Aruan Brizueña e Tiago Guimarães, continuaram a iniciativa e criaram a versão online do MOV FESTIVAL.
Nesta segunda, 27, a partir das 19h, eles realizam a quarta edição do festival que tem duração de aproximadamente 2h30 e é dividido em quatro sessões: shows, cinema, galerias projetadas e videoarte. Além da parede do prédio no Humaitá, as exibições também são transmitidas no perfil do festival no Instagram @mov.festival e no Youtube.
E esta próxima edição contará com a presença de artistas de destaque no cenário musical brasileiro como Castello Branco, Kunumi MC, Joca e 40% Foda/Maneiríssimo.
SOS Rainforest Live
O cantor esteve no dia 21 de Julho em uma live ao lado de Sting, Anitta, Milton Nascimento, Gilberto Gil, e Caetano Veloso, entre outros, apresentando seu último clipe Xondaro Ka’aguy Reguá. O evento online SOS Rainforest Live, foi em prol de todos os povos indígenas do mundo. Conheça formas de ajudar esse e outros movimentos clicando nos links:
SOS Rainforest
Amazônia Contra Covid
Comissão Guarani Yvyrupa
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil
Xapuri Socioambiental
Instituto Socioambiental
Lei 11.645
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[…] conta com sons dos artistas: RZO, Racionais MC’s, Bivolt, Cesrv, Rashid, Black Alien, Kunumí MC, Jhony MC, Planet Hemp, Marcello Gugu, Pirâmide Perdida, Quebrada Queer, Wil […]