Felipe Neiva expõe cicatrizes da infância em seu novo álbum. “Filho”, está sendo lançado via Cavaca Records e mostra passagens difíceis da vida do músico carioca.
Mas também serve como um alento para o hoje. Tanto como sociedade, como a ascensão do conservadorismo. Opressão sentida na pele de quem abre a boca para se expressar. E sendo representante da classe artística ele fala com propriedade sobre o assunto.
“Guerras Íntimas” é fruto da vivência e análise micropolítica da contemporaneidade, “É dar de comer pra cabeça e pro corpo, tentando achar brechas de sensibilização por meio de uma sociedade de consumo que pretende matar a subjetividade”, explica Felipe Neiva.
Após lançar no ano passado o álbum, “JORNAL ANOS 20”, que trazia influências de artistas geniais como Jards Macalé a Cat Power, de Elliott Smith a Haruomi Hosono.
O músico nos mostra hoje em Premiere o sucessor deste registro!
Experimental por sua essência e muita energia concentrada, o disco traz à tona suas dores. Seus medos e receios. Mas também suas transformações. A música como cura. O tempo como remédio. E até mesmo ele ter coragem de colocar tudo isso para fora mostra como ele finalmente se emancipou como filho.
Deixando outro filho no mundo. Um filho que pode servir de cura para muitos que passaram – e infelizmente ainda passam – por traumas como o de Neiva. Uma mensagem tão poderosa que sobressai até mesmo a forma que escolhe para contar sua história.
E nada como chamá-lo para contar mais sobre todo este universo em desintegração que o lançamento discorre. A Premiere de hoje também vem com o selo de qualidade, Cavaca Records.
Saiba mais sobre no desabafo de corpo & alma desprendido por Felipe. Se preparem pois a história exige empatia e compaixão.
“Cada álbum é um processo de libertação pra mim. O real motivo do álbum se chamar “filho.” é por uma necessidade sincera de libertação da minha condição de filho, um desejo profundo de emancipação da minha família.
Logo depois do fim do meu último namoro (com a Transfusão Noise Records e com a minha namorada mesmo na época) eu montei uma banda que éramos eu, o Daniel Duarte (pessoa fundamental na gravação do Guerras Íntimas, projeto de dois discos da qual o “filho.” é o primeiro braço), a Mari Romano e o Caio Paiva.
Todos eles eram pessoas que eu admirava e que tinham uma relação com a música que eu achava bastante bonita, além de fazerem parte na época da(s) cena(s) que eu participava no Rio de Janeiro.”
“O Daniel era baterista da Oruã (banda do selo Transfusão Noise Records, pelo qual eu cheguei a lançar um EP e um single) há algum tempo atrás e também tem até hoje uma banda instrumental maravilhosa que chama MOS.
O Caio eu conheci (não pessoalmente) em 2013/2014 por termos lançado pelo mesmo selo também, a Juvenilia Records. Na época, o Caio tinha uma banda que chamava Ritalines, que era uma das melhores coisas rolando na cidade.
A Mari Romano eu conheci por ela ser uma pessoa que vinha falar comigo, elogiar os shows no Escritório (QG da Transfusão) e que representava pra mim uma qualidade sônica que tava faltando na cena carioca já tinha alguns anos. Isso aí data de meados de 2017.”
“O “filho.” foi praticamente todo criado entre 2017 e 2018, só com algumas finalizações agora em 2019. Nesse período, inconscientemente, eu acabei me distanciando emocionalmente e desisti de uma série de sonhos.
Algo típico da ressaca que vem depois do início dos 20, ingresso na vida adulta e as consequências das porradas que a gente leva, de ver que “o buraco é mais embaixo” e que a realidade é muito mais dura e cruel do que eu poderia imaginar.
O disco também se chama “filho.” pelo fato de que no relacionamento sexo-afetivo em questão, um dos meus grandes sonhos era de ter uma filha que, com o final do relacionamento, foi algo que eu achei que tivesse morrido.
O que eu me dei conta uma vez que o álbum estava pronto era de que, psicologicamente, eu entrei num longo processo de gestação e me tornei uma pessoa mais reclusa, como se eu tivesse que proteger algo. Esse “algo” era o meu “filho.”. Acabei depositando nele toda a minha energia de criação que, subjetivamente, eu teria depositado numa criação de um outro ser vivo.”
“Então o conceito do disco se resume pela ideia de que gerando um filho eu poderia me libertar também da minha condição de filho.
Por isso, chamei pessoas que eu sentia que em certa medida eu já conhecia e, durante todo esse período, escondi de muita gente que eu estava gravando um novo trabalho.
Por mais que eu tivesse a companhia de companheiros de banda no início do processo, tudo parecia extremamente difícil e solitário, como se eu tivesse que criar aquela criança sozinho. Em alguns momentos de delírio, próximo da conclusão do trabalho, cheguei a acreditar verdadeiramente que estava em processo de gravidez, achei que minhas mamas estavam crescendo e sentia um ser se desenvolvendo dentro de mim.”
“De alguma forma, a força que esse projeto Guerras Íntimas me deu foi o de enxergar a profundidade das relações afetivas cotidianas, de analisa-las mais de perto.
Ao fazer isso, fui me dando conta do quanto a minha relação com os meus pais me aprisionava (tema que, olhando hoje, é recorrente em toda a minha discografia) e comecei a mergulhar nisso.
Dentro desse processo, tive a coragem de assumir pra mim que o meu medo do meu pai (pessoa a quem todos admiram e que é considerado bastante “doce” e “sereno”) vinha de uma experiência que eu tinha optado por esquecer mesmo tendo sido pivô da minha última tentativa de suicídio, em 2014, que foi ter sofrido abuso sexual dele ainda na minha primeira infância.
Este fato explica completamente a minha relação com os meus pais. Nunca tinha ficado muito claro pra mim o motivo de o meu pai ter me proibido de fazer terapia no meu primeiro momento de depressão profunda ou o porquê de ele ter tentado me mandar morar no Texas com um amigo dele (com quem ele só conviveu por 1 ano, quando se formava no High School americano, em Hudson, perto de Nova Iorque) numa época em que eu mal saía de casa sozinho ou o por que de eu ter tido uma criação tão restritiva, que me isolava das pessoas à minha volta.”
“Os meus pais foram as pessoas que fizeram o pior tipo de manipulação narcísica e de lavagem cerebral comigo. Foram eles que me fizeram acreditar sempre que eu era um monstro cínico, preguiçoso e insensível mas que apoiavam qualquer coisa que se voltasse para os estudos, até por que a imagem que eles sempre criaram para a sociedade era a da família perfeita, com o filho perfeito e bem-sucedido.
Nesse primeiro episódio de depressão profunda, que tive por volta dos 14 anos, foi também a época em que acordei uma noite com a minha avó (que dormia na cama de baixo, da bicama que ficava no meu quarto) passando a mão na minha coxa e no meu piru, fato esse que me remete a uma série de reações involuntárias que costumo ter em situações de pânico.”
“Posso dizer com toda a certeza que o processo de gravação do Guerras Íntimas (“filho.” + “tanto.”), que foi pontuado por muita meditação e trabalho, me curou das doenças que me fizeram acreditar que eu tinha (a princípio, o diagnóstico de “transtorno bipolar”, o mesmo da minha avó).
Durante toda a minha vida, numa busca por explicações para a minha falta de vontade/coragem/disposição de me relacionar sexo-afetivamente, cheguei a psicólogos que inclusive reforçaram a minha certeza de que eu me encaixava no espectro autista. Hoje eu sei que, na verdade, o meu corpo guardava profundas lembranças de violência.
O que eu gostaria de dizer hoje é que, sinceramente, a pedofilia é uma questão estrutural, assim como o racismo e o machismo e que faz parte duma forma de controle que hoje eu penso ser quase inerente à ideia de família.
Hoje eu sei que “o pedófilo” normalmente está muito distante de ser o monstro que imaginamos mas é exatamente o pai de família perfeito aos olhos da sociedade.
O produto que eu entrego hoje para as pessoas é basicamente um ritual mútuo de cura e incitação à destruição dos laços familiares.”
“A capa que escolhemos (sugestão da Yasmin Kalaf, da Cavaca Records, e me remete muito à condição a que eu sinto que fui abandonado no mundo. Alguém tentando se ressensibilizar para o contato humano (principalmente comigo mesmo) através do uso de maconha. Com uma expressão vaga e uma postura profundamente arrasada.
Essa capa é exatamente como eu me enxergo na condição de “filho.”. A foto foi capaz de ilustrar tanta coisa que normalmente as linguagens não captam…”
“Praticamente todas as letras deixam escapar uma série de incômodos que eu tenho com a toxicidade das relações de afeto e musicalmente. Principalmente na faixa “Sem Critério”. Existe um trabalho dedicado em cima de construir uma harmonia que possa apaziguar a angústia cotidiana do chacra sacral (associado à sexualidade e às emoções).
Nas paisagens sonoras do disco existe uma profunda e sincera homenagem a Hiroshi Yoshimura, cujo álbum Wet Land (lançado no meu ano de nascimento, 1993).
Foi muito importante pra eu conseguir chegar num estado mental que me proporcionasse clareza em meio às relações doentes e complexas que eu tive e tenho com as pessoas que me cercam. O som de água cura. O meu “Guerras Íntimas” me curou ou está curando, o processo é infindo. O meu “filho.” salvou e está salvando a minha vida.”
E é por isso e tantas outras coisas que a música importa, cura e transforma.
This post was published on 23 de agosto de 2019 10:31 am
As Melhores Live Sessions | Dezembro (2024) O Que São Live Sessions? Live Sessions tem sido um…
"charlie" chega acompanhada de um videoclipe dirigido pela dupla Gabriel Rolim eDaniel Augusto Após uma…
M-V-F- Awards 2024 reúne 25 categorias, entre nacionais e internacionais, que seguem para votação do…
Retrospectiva 2024: 100 Hits Perdidos de 2024 A retrospectiva do Hits Perdidos de 2024 chega…
215 Discos Brasileiros que Você Deveria Ter Ouvido em 2024 Recentemente postamos uma lista com…
55 EPs Nacionais lançados em 2024 Em tempos onde o formato de compartilhamento da música…
This website uses cookies.