“O Afrofuturista é um caminho para descolonizar o pensamento”, diz Doralyce
Dora é pernambucana radicada no Rio de Janeiro. Formada em direito pela UniNassau (PE), ela ainda é produtora cultural e professora de música.
A artista também é uma das principais expoentes do afrofuturismo no Brasil, tema que inclusive já foi tema de doutorado em uma universidade de Chicago (EUA).
No dia 12/04 a artista após uma residência dentro do projeto de uma residência artística, Pulso Red Bull 2018, ela lançou o EP Pílula Livre. O registro conta com 7 canções e a participação especial de O Novíssimo Edgar, Sebastian (francisco, el hombre), as meninas da Mulamba, Luisa Nascim (Luisa e os Alquimistas), Luê, Jéssica Caitano, entre outros que contribuíram durante o processo criativo.
“Esse álbum é uma experiência totalmente inovadora para mim. Nunca tinha trabalhado com bases e com beats, a não ser com o funk de ‘Miss Beleza Universal’. A pegada eletrônica é um viés que tem muito a ver com o que uma nova cena integrada com a tecnologia está praticando, diferente do que estou habituada. Eu trabalho com música popular brasileira e os meus ritmos são influências do coco, maracatu, ijexá, samba”, descreve Doralyce.
A riqueza de histórias e elementos dão um brilho à parte ao lançamento que conta com uma gama interessante de misturas no caldeirão. Tem samba, MPB, ritmos nordestinos, beats eletrônicos, afrobeat, além de tocar em temas urgentes, denunciar o machismo, o estado de violência, o crescimento do conservadorismo, a crueldade da atuação da milícia – e polícia – o preconceito disseminado e alimentado dentro das igrejas, e claro, o racismo sistêmico.
Afrofuturismo e Empoderamento
“O afrofuturismo é um movimento que se pauta em entender o que nossos ancestrais fizeram e compreender as tecnologias dessa ancestralidade. Entre elas está a nossa capacidade de analisar os fatos e elucidá-los para as pessoas.
A música é o instrumento que eu tenho para levar essas informações para as pessoas. Então é um álbum que me mostra como feminista, como ativista, do movimento negro. Eu pauto o meu espaço como mulher preta feminista na arte nessa obra.
É um álbum múltiplo, afrofuturista porque analisa a conjuntura atual e apresenta uma nova perspectiva social, uma nova forma de viver”, ressalta Doralyce
Dora é também uma das compositoras da versão feminista de “Mulheres”, do Samba Que Elas Querem e ativista. Suas composições já ganharam aos palcos nas vozes de artistas como Bia Ferreira, Gaby Amarantos, Larissa Luz e Preta Rara. Em 2017 ela lançou seu álbum de estréia Canto da Revolução (Ouça Aqui).
Marielle Vive!
Amiga pessoal de Marielle Franco, vítima das ações da milícia no Rio de Janeiro, ela ao lado de Edgar, O novíssimo e Daniel Yoruba, compôs a canção “Me Perguntaram Por Quê?”.
Questionando não apenas o caso que teve repercussão nacional, e a influência da polícia na investigação do caso, mas também tocando no tema da desmilitarização e o alto índice de vítimas fatais pela polícia.
No mês passado o caso de Marielle, e o do motorista Anderson Pedro Gomes, completou um ano e ainda não há respostas convincentes. Impunidade até quando?
Ouça Pílula Livre
O álbum teve curadoria da Pulso Redbull assinada por Anna Penteado.
Além de mixagem de Alejandra Luciani e masterização de Pedro Garcia.
Entrevista
Tivemos a oportunidade de conversar com Doralyce que contou mais sobre o lançamento do disco, participações, ativismo e aproveitou o espaço para denunciar injustiças. Confira que o papo foi bom!
[Hits Perdidos] Primeiro gostaria de parabenizar pelo disco, é realmente de tirar o fôlego. Muitas histórias, vivências, denúncias, situações e fusões sonoras. Inclusive com funk, afrobeat, eletrônica, MPB e um hibridismo ímpar. Mas todo álbum tem um caminho que leva a ele ser como ele é, gostaria que contasse as histórias que deram origem aos devaneios.
“Me Perguntaram por Que” particularmente me tocou bastante pelo momento que estamos vivendo. Onde a milícia funciona como uma espécie de “poder paralelo”, somado a uma série de des(governos) tanto estaduais como federal e a síndrome de “justiceiro” que vive no brasileiro comum.
Um período de fogo cruzado onde as chamadas minorias tem cada vez mais medo de sair de casa, de ir a seus cultos e até mesmo de “tomarem suas moradias”. Não é um processo que veio de hoje mas parece que está cada vez mais exposto e as pessoas estão perdendo os limites. Como tem visto este momento de regresso depois de um período de tantas conquistas sociais?
Doralyce: “A canção nasceu dias após o assassinato de uma amiga querida, uma mulher que é símbolo da resistência popular, símbolo da luta pelos direitos humanos, e um registro de como o estado brasileiro trata as mulheres negras que empreendem honestidade no governo. É assustador pensar que todo dia as forças armadas faz vítimas e elas têm uma cor.
Temo pela minha vida, eu já fui ameaçada durante um show no Rio de Janeiro. Mas, acredito que o nosso compromisso como artista é garantir a manutenção e reinvenção da cultura.
É papel da cultura educar a população, é uma contrapartida social diante de uma sociedade pós – colonial com tamanha miséria e acumulo de capitais.
Vamos continuar disputando narrativa através da arte, e “ Me perguntaram por que” termina com um texto preciso do Edgar, um pedido de socorro.”
[Hits Perdidos] O sensacionalismo e ocultação de provas por meio da imprensa, polícia, milícia e políticos nos lembram outros tempos. Ao mesmo tempo vejo muitas brigas e discussões por pormenores dentro dos próprios movimentos de resistência que não contribuem para o melhor dialogo e acabam consequentemente fazendo perder força pautas relevantes.
Penso muito que a solução dos problemas deve sempre começar como algo local para aos poucos ir ganhando força e de fato causar grandes transformações. Em um mundo cada vez mais colaborativo, como acredita que podemos colaborar para frear essa crescente onda conservadora?
Dorlyce: “Ampliando o nosso diálogo.
Repensando a comunicação com a maior parcela da população.
A igreja ganhou muito espaço com essa onda conservadora. E infelizmente, Cristãos têm um histórico de assassinatos em massa, com requintes de crueldade. Acho que assim como a Polícia a Igreja precisa ser investigada.
São fortes instituições de poderes sem limites. Hoje, se um policial se sente ameaçado pela minha presença, ele pode atirar em mim e alegar que se sentiu intimidado. Sob a proteção do “ pacote de segurança “ do Ministro Moro.
A onda conservadora é uma avalanche assassina e nós precisamos que essa mudança venha, antes que sejamos às próximas vítimas.”
[Hits Perdidos] Conte mais sobre como surgiram as parcerias e como foi esta oportunidade de escrever as faixas em parceria com outros artistas? Como foi o processo de gravação e como foi adicionando outros ritmos?
Doralyce: “Eu fui convidada por Anna Penteado para compor um time no Pulso Redbull 2018, com Edgar, Sebastian, Fernanda Koppe, Naíra Debertolis.
O time cresceu e tivemos vários convidados como Amanda Pacífico, Luísa Nascimento, Luê, Daniel Yorubá, Jessica Caitano, Vinicius Lezo, André Sampaio, Tyaro, e outros amigos.
Tínhamos uma rotina de trabalho muito interessante, compondo, arranjando musicas e debatendo questões filosóficas. Eu detesto gravar em estúdio, é a pior parte pra mim, mas a equipe tornava tudo mais divertido, o disco Pílula Livre é um registro musical eletrônico espontâneo.
Eu amo brega, as referências dos anos 80, o swing dançante, é um disco pra “ mexer o corpo e a mente junto”. São composições minhas e as parcerias com Edgar, Fernanda Koppe, Jessica Caitano e Vanessa Garcia. Cada processo criativo com sua história.”
[Hits Perdidos] Outro fato que acho que merece ser destacado é o caminho de contar a história sob o viés afrofuturista. O quanto acha que podemos nos conhecer e entender o mundo olhando para nossos antepassados? E como crê que a força deles podem transformar nosso papel dentro do universo?
Doralyce: “A ancestralidade é extremamente ligada à identificação nacional.
Os Afrodescendentes no Brasil são resultado do sequestro e escravização. A gente foi obrigado a abandonar nossa cultura, fé e costumes.
O Afrofuturista é um caminho para descolonizar o pensamento. É a ancestralidade e a tecnologia conversando, ensinando outra forma de viver em sociedade.
Sou idealizadora da teoria prática “Dassalu”, manifesto que pauta o nosso reconhecimento como afrolatinos, a nossa troca de recursos, e a teoria da “hipossuficiencia de representatividade”, que trata de garantir vantagens na negociação com pessoas brancas, para que estejam ambas partes em pé de igualdade e que quando uma pessoa branca por trocar com uma pessoa afrolatina, que abra mão de algum privilégio diante do princípio da isonomia.
Esse manifesto quem sendo pensado por mulheres pretas do mundo, entre elas as cantoras Bia Ferreira (Brasil) e Eva Rapdiva (Angola).
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