Memórias, nostalgia e lo-fi marcam o EP de estreia de Guto
Muitas vezes a arte não está em criar, discorrer ou se manifestar artisticamente sobre um novo fato. Muitas vezes a arte mora sob um olhar que está pairando no ar e poucos consegue enxergar ou sua beleza, ou sua realidade mais obscura.
O ser humano ainda fascina, ainda tem muitas perguntas, inquietudes e mistérios para refletir. A vida cotidiana é uma delas, nossas dualidades, fragilidades, teimosias, desconfortos, amenidades, regressos, choques e rebuliços fazem com que sintamos a vontade de externar todo essa fúria interna. E as vezes mesmo que de maneira inconsciente: isso vira música.
No fim de junho o músico mineiro Guto lançou seu primeiro EP, Duplo. O registro saiu através do selo ACABA, de Belo Horizonte, e tem como marca a dualidade da identidade e das relações humanos, estas mais aprofundadas em clássicos livros como O Homem Duplicado (José Saramago) e O Duplo (Fiódor Dostoiévski).
“A princípio, abordar esse conceito [a dualidade] parecia algo genérico, mas tais obras apresentavam a possibilidade de criar pequenos recortes dessa ideia. Percebi que poderia transmitir impressões leves de uma questão profunda em meio a esses recortes cotidianos, deixando, ao ouvinte, o convite a se reconhecer ‘duplo’ e aceitar essa dualidade”, reflete o músico
Guto – Duplo (27/06/2018)
O EP foi composto e gravado por Guto, co-produzido por Rafael Dutra, também responsável pela mix e teve a masterização realizada por Joe Lambert (EUA), que já trabalhou com bandas como Clap Your Hands Say Yeah, Bright Eyes, LCD Soundsystem, City And Colour, Deerhunter, Cloud Nothings, Mayer Hawthorne, Hot Chip, The National, Panda Bear e tantos outos.
MPB, rock alternativo, indie pop, lo-fi e feeling. Tudo tem um pouco de espaço no EP que como o próprio artista diz tem referências de Clube da Esquina a Warpaint. Outra referência interessante, que deixa o registro ainda mais contextualizado com o que tem reverberado na mundo da música, é citar Tune-Yards. Talvez uns dos grupos catalogados como Art Pop lo-fi mais interessantes e relevantes da atualidade.
Todo esse mergulho em procurar texturas e narrativas do cotidiano (que nunca deixam de serem atuais) fazem com que a conexão que o ouvinte tenha com a obra seja profunda. O que não é fácil por si só, e um acerto do EP foi justamente ser breve.
Acredito que se tivesse se alongado mais que quatro faixas poderia se tornar algo cansativo. O conceito tem começo, meio e fim. Por mais que cada canção mostre apenas uma parte de seus contornos: no fim todas se unem de maneira lógica.
“Sal” já começa despretenciosa e me lembrando um pouco o encontro de Devendra Banhart com a quentura no coração de nossa MPB. Tanto que ela soa como um ritual de sacudir poeira e exercita o desapego dos sentidos, lugares e do eterno vilão dos compositores: o tempo.
Sua introspecção dialoga com discos de bandas como Terno Rei ao mesmo tempo que tem devaneios – e metáforas – à la Arnaldo Antunes. Mas tem espaço para experimentalismo, essa bateria “torta” do jazz quebra todo a lógica e faz com que sintamos toda a confusão por trás de sua letra rebuscada.
O curioso de ouvir “Espiral” foi coincidir com o dia que tinha escolhido para pôr na vitrola o disco do Spiritulized, Ladies and Gentlemen We Are Floating in Space. Coincidência feliz pois toda essa levada espacial e cheia de efeitos, em meio a calmaria, fez todo sentido.
Os ensinamentos da vida e o ato de saber aproveitar das oportunidades novas que fins de ciclos nos proporcionam é talvez o grande ensinamento da música. Esta que nos mostra como estar vivo é estar disposto a enfrentar e conviver com mudanças. Aquele cinza e nublado em nossa mente no fim pode ser só a vida te dando aquela dica de que o caminho que deve ser seguido pode, e deve, ser outro.
“Espiral” junto de “Sal” talvez sejam as canções que mais conversam com referências a música brasileira, a primeira inclusive tem até um ar do sertanejo indo de encontro com Clube da Esquina e o alternativo.
Como o próprio músico relata é uma canção sobre o processo de amadurecimento como um retorno à infância e sua sensação de nostalgia me leva para as distorções mais despretensiosas da guitarra de caras como Jeff Buckley. Aliás, o espírito de resgatar riffs setentistas mora no coração da faixa que experimenta mas ao mesmo tempo nos leva para o lado mais introspectivo da década.
“Onda do Mar” é uma canção bastante particular pois seu instrumental passa a sensação de tontura que estar a passeio em alto mar pode nos proporcionar. Pois bem, o barco seriam nossas relações afetivas e no balanço mora seu equilíbrio. Musicalmente me lembra algo que Elliott Smith faria se estivesse vivo.
O EP de estreia do mineiro Guto ao mesmo tempo que é moderno traz contornos, memórias e ritmos do passado. Tudo isso é muito bem aproveitado dentro da panela sonora que flerta com a MPB, com o indie pop, lo-fi, alternativo, folk e rock’n’roll. Outro fato interessante foi a abordagem criativa da discussão sobre a dualidade da identidade humana e suas relações. As passagens que carregam muito de si nos mostram como nossos medos e inseguranças muitas vezes nos travam e impedem com que sigamos em frente.
Se esse EP serviu para ele se libertar destas angústias, já valeu a pena. No aguardo pelo próximo caminho criativo que o artista vai seguir e desde já desejando que estas referências venham ainda mais aguçadas em um futuro registro.