No 2º disco de Fernando Motta, o delírio das noites mal dormidas transparece
A articulação do mercado independente é algo que chama a atenção. Esta que sempre foi a válvula de escape para que o som conseguisse transcender os limites de sua roda de amigos, cidade ou estado.
É algo de um valor imenso. Podem vir com as mais diversas fórmulas e estratégias diferenciadas mas de algo não irão conseguir fugir: banda se constrói na estrada. É desse tipo de pensamento que em 2015 a Lupe de Lupe fez sua primeira turnê Sem Sair na Rolling Stone. Depois veio a Sem Sair na Rolling Stone 1.5 esta que reuniu Jonathan Tadeu, Vitor Brauer e o novato Fernando Motta para 54 shows em 21 estados, esta que passou por todas as regiões do país.
O que eu mais gostei mesmo foi a prestação de contas que eles fizeram questão de deixar aberta em domínio público. Você pode conferir a da turnê relizada neste ano e a de 2015.
Desta recente turnê que contou com alguns shows em São Paulo – e interior do estado – pude conferir o evento organizado pelo selo paulista Pessoa Que Voa.
Este que contou com a participação dos artistas da Geração Perdida de Minas Gerais, Vitor Brauer (Lupe de Lupe, Xóõ), Jonathan Tadeu (Quase Coadjuvante, Lupe de Lupe) e Fernando Motta (ex-Young Lights). Foi ainda a primeira apresentação de Vinícius Mendes, com seu disco recém-lançado Mercúrio e teve abertura da banda emo/shoegaze/rock jovem eliminadorzinho. As apresentações aconteceram no GAL Guitar Shop que fica localizado na Vila Mariana (zona sul de São Paulo).
Aquele que mais tarde viria a ficar conhecido como “O show do balde”. O que rendeu uma série de brincadeiras nas redes sociais nos dias seguintes.
O Gal para quem não conhece é uma pequena casa, realmente funciona como luthier porém alguns eventos mais intimistas aconteceram por lá nos últimos tempos. A sensação é a de estar assistindo a um show na sala de casa.
O que para o público é uma oportunidade de dividir uma porção de experiências, o que faz com que o jogo já chegue ganho por si só. Foi um show conturbado mas isso não tirou o brilho do faça você mesmo e supere as dificuldades. O momento do balde resume apenas a vontade que eles estavam de fazer tudo aquilo acontecer. Fiz questão de comprar uma camiseta da turnê, afinal de contas a jornada estava apenas começando e eles teriam milhares de quilômetros a percorrer.
Turnê fechada e muitas histórias para contar. Porém para Fernando Motta o ano ainda não tinha acabado e no dia 08/11 ele lançou seu segundo disco solo, desde que o mundo é cego, sucessor de Andando sem olhar pra frente (2016).
Fernando Motta – desde que o mundo é cego (08/11/2017)
A turnê se encerrou em Agosto com show em Salvador (BA) e nesta época Fernando já soltava os dois singles “Impulso pra Voar” e “Futebol (Colônia de Férias)”. O segundo que ganhou um videoclipe que estrelou na lista de clipes do Hits Perdidos de Julho.
https://www.youtube.com/watch?v=SkFeKJZbGYA
O clipe para “Futebol” conta sua história com futebol, um trauma de infância. A passagem traumática aconteceu durante uma colônia de férias em Belo Horizonte.
“Futebol (Colônia de Férias)” é o segundo single do disco Desde de que o Mundo é Cego. O videoclipe foi dirigido por Jonathan Tadeu e conta com a atuação do ator mirim Isaac Nobre.
“Eu costumava dizer que essa era uma música sobre ser ‘ruim de bola’, mas acho que ela é mais do que isso. É sobre o porquê do futebol, um dos maiores entretenimentos na minha vida hoje, ter sido por muito tempo um certo trauma pra mim. Toquei essa música várias vezes antes do lançamento. Algumas pessoas me falam que achavam engraçada, outras que achavam triste. Acho que é um pouco dos dois: é uma forma leve de contar um fato pontual para fazer pensar em coisas que podem fazer alguém começar a odiar o mundo desde muito cedo.” – conta Fernando
O disco foi produzido e mixado por João Carvalho (Sentidor/Rio Sem Nome/El Toro Fuerte) que também tocou baixo nas quatro faixas com banda completa, que contam ainda com as baterias de Fábio de Carvalho. Fernando toca os demais instrumentos: guitarra, violão e piano.
João, Fábio e Fernando fazem parte do coletivo Geração Perdida de Minas Gerais. A gravação aconteceu nas casas de Fernando e João e a escola de música Allegretto.
Segundo o próprio Fernando o disco tinha que passar uma sonoridade natural e lo-fi. Até por isso seus vocais são sussurrados e as melodias – e arranjos – tão sutis.
“Parece que as músicas tinham que sair com essa sonoridade, principalmente as acústicas. Mas não é uma coisa que funciona sempre, é o que eu imaginava especificamente pra esse disco. Eu nunca deixaria que algo desleixado estivesse no projeto final.
Pelo contrário. Acho que é o trabalho mais cuidadoso que já fiz. Tivemos o cuidado pra que nada muito montado e artificial entrasse. Acho que as baterias têm muito disso também, não são lá muito convencionais. Toda vez que eu ouço, sinto que o Fábio está ali tocando na hora. Também vejo isso na capa e contracapa do disco, na coisa meio rascunhada, em fazer disso uma coisa bem pensada, não simplesmente jogada” – conta o músico mineiro
Ele que mostra a sutileza, seu lado reflexivo, percepções e vontade de fugir logo na descrição de seu disco no bandcamp:
“das noites no meu quarto. dos momentos em claro ou dos instantes antes de dormir, da lucidez ou das ideias que saem da espécie de delírio que passeia entre as fases do sono. de ler no computador ou de acordar com uma percepção tardia, mas urgente o bastante pra nos fazer levantar. da condição e de qualquer conclusão. desde que seja, desde o que é. da fuga, das lembranças, do enfrentamento.”
O disco começa sorrateiramente com aquele tapa na cara de “a noite”. Com referências no emo e estética lo-fi, a curta faixa nos traz uma sensação de estar dentro de um sonho interrompido.
Em sua letra Fernando fala daqueles momentos em que colocamos a cabeça sob o travesseiro e temos aqueles milhões de pensamentos muitas vezes corrosivos – e turbulentos. Aquele eterno eterno desejo de encontrar seu lugar no mundo.
A segunda canção, “impulso pra voar”, também foi o primeiro single a ganhar um videoclipe como falamos anteriormente. A conversa ainda adentra a profundidade da noite – e daqueles milhões de pensamentos – mas ainda a apatia e o desgaste emocional impedem a ação. Ou melhor dizendo, a reação. Os fãs de This World Is a Beautiful Place, Sunny Day Real Estate e Kill Moves vão captar a atmosfera de seus arranjos.
O vídeo abaixo também foi dirigido por Jonathan Tadeu. Uma curiosidade é que Fernando também dirige os mais recentes vídeos de Jonathan. Assim o coletivo ajudando realmente um ao outro a partir da troca. Um aprendizado valioso para outras bandas que irão ler este texto.
https://www.youtube.com/watch?v=hTUy7H3gMMo
A simplicidade dos acordes sutis de “enxaqueca” dilaceram seu coração em mil pedaços e me fazem lembrar de ouvir os discos de grupos como umnavio, Joan Of Arc, Polara, Noção de Nada, Ludovic ainda na adolescência e aquela sensação de se sentir abraçado.
Aquele mesmo tipo de abraço que você tem ouvindo a grupos mais modernos como o Modern Baseball ou Basement. Diferentes épocas, diferentes percepções do público mas muito em comum.
Jovens com uma série de assuntos a serem resolvidos, muita angústia e uma ânsia por tentar ver uma luz no fim do túnel. E talvez seja esse o motivo do porquê damos voz para eles. Claro que as respostas muitas vezes estão dentro do você mesmo e a letra fala basicamente sobre isso.
“o meu corpo se encontrou com o vento e não pôde buscar o ar
e não me entregue raso porque eu vou mergulhar
onde só dê pra escutar
o sino dentro de mim” – verso de “enxaqueca” – Fernando Motta, 2017
Na sequência vem “ela, Deus” uma canção com um senso de humor peculiar. Questionando o ateísmo e a fé. Contando uma história particular que envolveu seus amigos e como por muitas vezes se sentiu ironicamente refletindo sobre tudo isso. Sua construção me lembrou particularmente American Football. Influência constante ao longo do disco.
“amanhã, eu não vou contar essa história com ironia
e agora, a ironia enfiou uma música em minha orelha
sobre um cara que acreditava em deus e outras coisas invisíveis
que caminhava pra morte pensando em vencer na vida
pensando em missão cumprida
e isso tudo está estranho demais”- verso de “ela, Deus” – Fernando Motta
Já fazendo a mescla entre math-rock/emo e o lo-fi chegamos ao hit perdido do álbum, “Futebol (Colônia de Férias). Gosto da criatividade das linhas tortas e sobreposições em seu instrumental estas que fazem com que assimilemos a carga pesada da faixa.
Esta que como Fernando comenta tem uma dose de humor e de tristeza. Ter que ser bom de bola é uma pressão social que os meninos tem desde cedo e não necessariamente todo mundo nasceu para isso. Por mais moderninha que a nova geração tente aparentar, ainda vivemos em um país conservador e temos muitas amarras para destroçar.
“Entresono” é uma canção de passagem dentro do disco e anuncia a segunda parte da noite. Os conflitos internos de perdão x superação são expostos na canção que por ter poucos versos nos passa a sensação de vazio. A atmosfera lo-fi me lembra a de grupos como Bright Eyes, The Decemberists e Elliott Smith.
A faixa seguinte, “O Perdão”, em sua narrativa fala sobre a dificuldade de reconhecer nossos próprios conflitos e de como a indiferença é fria e tem um gosto amargo. A canção é recitada feito uma poesia, assim como Vitor Brauer costuma fazer em seus trabalhos.
“Acolhimento (cadafalso)” tem uma linha de guitarra energética e percussão interessante. Os cerca de 3 minutos passam voando e a faixa mais uma vez no disco vai atrás de recursos bíblicos para falar sobre a maldade – e pouco caso.
Já caminhando para a parte final do álbum temos “As mortes”. Acústica e gravada a base voz e violão, a música preza por mostrar as imperfeições de uma gravação mais rústica. A faixa te dilacera, te põe no chão e nos faz refletir sobre a sociedade corretiva em que vivemos.
“Meus Planos São Como Nuvens” é a canção que tem a missão de fechar o disco e já começa com notas graves de piano em sua introdução. A balada fala sobre como nossos planos são feitos e desfeitos todos os dias e que a graça de ser jovem talvez seja essa mesmo….a de viver um dia de cada vez.
Tudo ser muito fugaz e só termos uma vida para viver realmente é um peso que temos que conviver. A maneira que a canção é orquestrada nos lembra as experimentações que grupos de post-rock costumam trazer para seu som. Já o videoclipe lançado hoje (14/12) foi dirigido por Fábio de Carvalho.
desde que o mundo é cego, segundo disco do músico mineiro Fernando Motta, carrega aquele espírito pueril de querer transformar o mundo vindo direto de seu quarto. Faz reflexões mundanas sobre como fazemos – e deixamos de fazer – as coisas.
Como somos julgados, distorcidos, fuzilados e como nossas dores para o mundo externo muitas vezes passam por despercebidas. É sobre momentos em que nos desconectamos e tentamos entender a loucura que nossos momentos mais íntimos podem nos proporcionar. Para o bem e para o mal, carregamos uma montanha-russa de sentimentos e somos sensíveis a todas as experiências que vivemos, online ou offline.
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