“Uma crítica boa, para mim, é aquela que dialoga com o nosso tempo” afirma Henrique Justini
As vezes toda a estrutura de ter que lançar um disco, ter que sair em site x, blog y, programa de rádio, TV e jornal faz com que as pessoas esqueçam do básico: do outro lado tem um ser humano. Um ser humano que sofre com a obra, que entrega um pedaço de si e que precisa ter seu tempo para digerir qualquer tipo de manifestação artística.
Os tempos onde um disco envelhece tão rápido e um texto tem o alcance de 24 horas (as vezes até menos) temos a vantagem de poder trocar informações e figurinhas com pessoas que admiramos o trabalho. Isso é mágico por um lado e por outro nem tanto. Mágico porque podemos saber o que o outro estar pensando (ou como quer ser visto) e nem tanto pois muitas vezes soa como estivéssemos em uma roda.
Fato é que o que interessa de fato é como uma obra te impacta, não em questão de qualidade técnica, sequência de acordes ou mensagem pré-estabelecida. Mas a consequência daquele som na vida das pessoas. Talvez por isso o grande portal Consequence Of Sound tenha esse nome, estamos falando basicamente sobre o impacto.
Algumas pessoas vão além e isso que enche nossos olhos. Você ler um texto sobre o disco A Mulher do Fim do Mundo da Elza Soares na Pitchfork tentando entender todo o background da artista para sua música ser da maneira que é, é de encher os olhos de um leitor de crítica musical.
Mas não precisamos ir tão longe para admirar os textos. Tem muita gente fazendo trabalhos muito bons a nível de estilo e estética no Brasil. Seja na crítica musical, teatral ou literária. Um dos exemplos que mais consegue fazer com que estes mundos se relacionem é o Henrique Barbosa Justini. Ele que tem seu próprio site (anthemalbums.blogspot.com.br) e colabora com o Floga-se. Nos últimos dias saiu uma resenha falando sobre 4 discos por lá que vale a pena a leitura.
Henrique também tem interesse pela literatura e também escreve romances e poesias. Em 2016 seu primeiro livro, “Como este quarto ficou tão vazio” foi publicado. No momento ele planeja lançar seu segundo livro que deve sair no próximo ano mas já tem nome, “Tudo que nós amamos nós deixamos para trás”.
No campo poético ele teve uma grata surpresa quando soube que uma de suas poesias saiu em uma coletânea chamada “Antologia Poética do Século XXI” e ele tem planos para que isto dê um gás para que lance mais materiais do tipo em breve.
No bate-papo que tivemos falamos sobre sua trajetória, crítica musical, novidades, preferências e visão sobre o cenário independente. Um papo riquíssimo que foi um privilégio ter.
Logo de cara já separei uma lista montada pelo próprio Henrique (@riquefc) mostrando os lançamentos de 2017 que mais lhe chamaram a atenção para ser a trilha sonora desta conversa. Aperte o play!
[Hits Perdidos] Queria que você contasse um pouco sobre como descobriu a aptidão para escrever e como foi atrás para desenvolver seu estilo e estética textual.
Henrique Justini: “Desde que eu me entendo por gente eu tento emular a escrita. Quando eu era pequeno eu ficava escrevendo poemas e letras de música, mas sempre pra passar o tempo e como se fosse algo irreal. Em 2009 rolou de ter um blog , já finado, sobre punk/hardcore com alguns amigos e eu percebi que eu realmente gostava de falar sobre discos. Já nessa época eu consumia muito os escritores clássicos e achei que a única forma pela qual eu poderia realmente escrever algo que valesse a pena no tão chamado âmbito “cultural” (ou artístico) seria fazendo minhas resenhas realmente baseadas nessa experiência.”
[Hits Perdidos] Muitos devem ter conhecido seu trabalho por conta do Floga-se. Como foi o convite para escrever?
Henrique Justini: “Foi a partir de um post no facebook! (risos). Eu tava sem tempo nenhum para escrever pro meu blog “anthemalbums.blogspot.com.br” e postei no face se tinha algum site maior e mais movimentado com o qual eu podia contribuir esporadicamente. O Fernando veio falar comigo no privado e foi isso.”
[Hits Perdidos] Para você qual é o maior desafio ao tentar escrever sobre um disco? Você prefere um lançamento que dialogue com seu background ou fica na espera de algo que vá te surpreender e querer pesquisar mais sobre?
Henrique Justini: “Eu fico muito tenso para escrever sobre um disco porque eu acho que não tenho direito nenhum de fazer isso, acho muito difícil começar uma resenha e, na maioria das vezes, desisto. Eu adoro lançamentos que falem com o que eu já vivi, mas eu odeio quando percebo que os músicos tão fazendo isso pra entrar com o jogo ganho. Eu quero dizer, há umas linhas de guitarra ou referência nas letras -por mais experimental que a banda seja- que é mais um estímulo e validação do que as pessoas viveram do que um dizer originário. Eu adoro escrever sobre discos que me fazem repensar e até curtir gêneros que eu normalmente evito: post-rock ou shoegaze, por exemplo. É legal também quando um artista traz uns conceitos obscuros/ocultistas que você vai lá e descobre que tem toda uma articulação artística e intelectual por trás disso etc.”
[Hits Perdidos] Teve algum disco que te tirou o sono e que não conseguia fechar ou ter uma opinião concreta sobre?
Henrique Justini: “Tem vários. Normalmente todo disco da seminal records parece falar sobre algo muito codificado e “difícil”. Normalmente eu gosto desse tipo de disco, disco que sempre me causa um estranhamento e inquietação e faz com que eu sinta alguma coisa nova que foge do meu leque de experiência. Além de quase todo catálogo da seminal ter esse efeito, outros discos recentes os quais tiveram o efeito de estranhamento e não me deixaram pensar racionalmente se eu gostei ou não porque parece não ser o ponto deles: Ascending a Mountain of Heavy Light (The Body &Full Of Hell) e o Great Many Arrows (Damien Dubrovnik).”
[Hits Perdidos] Além da crítica de arte você também se envolve com a poesia e já escreveu alguns livros. Queria que contasse para os leitores do Hits Perdidos os outros trabalhos que desenvolve.
Henrique Justini: “Eu escrevo poesia e romance. Meu primeiro livro foi “Como este quarto ficou tão vazio” e saiu no meio de 2016. Eu to com um romance pronto, “Tudo que nós amamos nós deixamos para trás” e to vendo a melhor forma de lançar, plataformas etc. Eu recentemente saí em uma coletânea com minha poesia, Antologia Poética do Século XXI e to pensando em lançar online mesmo meus poemas, ainda no formato livro, em pdf e outras plataformas de ebook.”
[Hits Perdidos] Acredita que esses outros trabalhos acabam influenciando na maneira ou ângulo que traz para a escrita? Para você o que seria uma crítica boa?
Henrique Justini: “É uma influência constante. Quando você escreve muito, praticamente todo dia, você repara em certos métodos e acaba criando um vocabulário próprio e recorrendo a ele a todo instante. Coisa de saídas de uma argumentação ou apresentação de ideias. Uma crítica boa, para mim, é aquela que -em algum nível- dialoga com nosso tempo sem recorrer a termos batidos que dizem muito mais sobre o consumo do qual o crítico é refém do que outra coisa. Eu acho que os artistas investem muito tempo criando algo e o crítico deve respeitar isso, elogiando ou falando mal. Eu quero dizer, e talvez isso seja meio contraditório, a arte não é o objeto final de alguma crítica. Ao menos eu acho que não deveria ser. Ali, na crítica, tem de existir um diálogo com o mundo e o tal “objeto artístico” é uma forma de mediação sobre as coisas que deveriam importar.”
As próximas duas perguntas foram feitas pelo músico Valciãn Calixto
[Valciãn Calixto] Sobre o método de composição, qual o ponto máximo a se atingir com uma letra? Não no sentido da codificação (da mensagem/símbolo), mas sim da construção das imagens.
Henrique Justini: “Construção de imagens é muito importante e muito subestimado, pelo menos na música independente brasileira (que é a que eu mais acompanho de perto). As imagens não apenas dão uma singularidade às letras, mas elas localizam o ouvinte em uma narrativa e criam uma ambiência. Acho que o ponto máximo é essa construção de imagens (e aí o letrista tem mil técnicas, desde fluxo de consciência à narração descritiva) com uma personalidade autoral, apropriar-se das imagens para evidenciar seu ponto de vista em relação ao mundo. Paisagem da Janela, do Milton Nascimento, é o maior exemplo disso.”
[Valciãn Calixto] Qual o papel da crítica de arte hoje em dia? Quem são os consumidores? Às vezes que nem há consumidor para a própria arte, que a arte num sentido indústria cultural) parece tão fugaz com tantos lançamentos, do independente à majors, seus ouvintes parecem tão fugazes, ouvem um disco hoje, amanhã ouvem mais dois e não retornam ao primeiro. Mas e então os consumidores da crítica de arte, da resenha de disco, quem são?
Henrique Justini: “O papel, para mim, é o que sempre foi. Crítica de arte é gênero, é um espaço para refletir sobre nosso tempo tendo o objeto como forma de intermediação. Os consumidores são quase ninguém, eu acho. Tanto em crítica literária como crítica musical (que são as que eu mais acompanho), quem consome normalmente são os artistas e um mínimo do mínimo do público. As críticas são tão fugazes e efêmeras quanto os lançamentos. Mas também acho que ambos, artistas e críticos, são reféns (no âmbito de produção) desse próprio imediatismo que a gente reclama. Em retrospecto, desde que o mundo é mundo, vários discos e críticos que eu gosto muito hoje ,na época, passaram batidos. Ai você vai lá e percebe que não, que houve um zine X que já falava sobre o disco e que a pessoa já tinha se debruçado sobre uma obra importante. A efemeridade contemporânea sempre existiu, a diferença é que os criadores querem uma resposta rápida (o que explica “primeiras reações” fazendo sucesso no youtube) em vez de algo mais reflexivo e que, com certeza, vai ter algum motivo de existir anos depois e não parecer uma manifestação bizarra clamando por atenção. Acho que precisamos de mais calma, o impacto da crítica/obra no tempo é muito mais aleatório do que merecimento.”
[Hits Perdidos] Muito se diz sobre “a cena” x “não existe cena”. Qual sua opinião a respeito e como a experiência de ter vivido em São Paulo fez com que isso fosse se moldando na sua cabeça?
Henrique Justini: “Precisamente sobre São Paulo, a cena é uma troca, é um intercâmbio (porque não existe nenhum elemento estético em comum que justifique chamar o que ocorre lá de “cena”). Ou seja, é formada por músicos e jornalistas que falam bem do disco de todo mundo que é amigo em comum em troca de “convivência social”. Não acho que seja tão malevolente e egoísta como eu mesmo faço parecer nessa descrição. É algo gradual, é algo que toma conta totalmente da sua subjetividade e você nem repara que está no modo automático. Que só tá escrevendo e criando disco para manter seu status quo no pequeno nicho que você representa.”
[Hits Perdidos] Como é ver hoje em dia as “picuinhas” e confusões estando longe da cidade?
Henrique Justini: “É surreal porque você vê que fazia parte disso tudo. É surreal também porque as pessoas (de uma maneira geral) são boas e gentis, mas o comportamento social envolve as pessoas mais inteligentes e fica muito difícil saber quando a pessoa age por maldade ou só pra proteger o que lhes é querido. É tudo muito novo também, as redes sociais atrapalham e ajudam ao mesmo tempo. É um ambiente muito hostil, com muitos dedos erguidos, mas com muita gente interessante.”
[Hits Perdidos] Qual foi a abordagem de banda, assessor ou selo que mais te “chateou”? Para você qual seria a forma correta de abordar um jornalista?
Henrique Justini: “Eu não sei se tem forma certa de abordar e eu nem me incomodo muito com as abordagens. A única coisa que me incomodou um pouco, uma vez, foi a pessoa querer saber quando a resenha ia sair. Acredito que a melhor forma de abordagem é a sinceridade, mandar o material, explicar o que é e dizer que está a disposição para eventuais esclarecimentos. Jornalista também tem o ego muito enorme, sabe? São apenas mensagens, você pode deletar tudo ou não ler quando não estiver com vontade.”
[Hits Perdidos] Você como eu deve ter ouvido mais de cem discos este ano. O que você notou como tendência? O que acha que fica de 2017?
Henrique Justini: “A tendência é essa coisa calculadamente “esquisita” e calculadamente pop. Tipo Bjork, sabe? Claro, como tudo, tem coisa boa e coisa ruim nesse esquema. Percebi que “rock psicodélico” continua sendo tendência, também. Uma das coisas mais marcantes foi o disco do Mount Eerie. Acho que ali tem uma “simplicidade” importantíssima para os artistas repensarem a forma cheia de adereços que colocam nas músicas.”
[Hits Perdidos] Ainda sobre este ano, o que acha que fica de um bom saldo e quais artistas apostaria que vão chegar com tudo em 2018?
Henrique Justini: “Os grandes discos desse ano para mim foram: o ep do Metá Metá, Cortes curtos (Kiko Dinucci), a compilação de singles do Maximum Joy, Surfeit of Gemütlich (discaço de uma banda gótica chamada Egrets on Ergot) e o Rainbow Mirror (Prurient).
No âmbito de “fazer sucesso” eu não tenho muita ideia do que vem por aí. Presumo que as coisas que conseguem dialogar com o público mais severo e ter uma abertura pop vão continuar “donas” do jogo. Tipo o disco do Tyler the creator ou o Vince Staples.
Quem eu espero muito do ano que vem é: The Body, Aaron Dilloway, Full of Hell, Merzbow, Sutcliffe Jügend e o Prurient. São artistas que, literalmente, lançam coisas todos os anos e sempre desafiam o ouvinte.”
[Hits Perdidos] O que você acha que falta para o jornalismo musical voltar a ter o prestígio de antigamente?
Henrique Justini: “Acho que isso não vai acontecer simplesmente pela época de exposição em que a gente vive. Mas o que eu acho que falta para o jornalismo é uma expressão própria. Achar que realmente importa as palavras que você usa e que você pode dizer algo profundo sobre o mundo que o cerca através de um disco que te tocou ou que você detestou. Dá pra ser muito mais do que médio e dá pra ter uma expressão própria. Acho que falta ambição mesmo e um contato maior com a tradição da escrita. Acho que se escrever é só visto como profissão e não como uma extensão de si, como uma extensão de sua capacidade intelectual e sensitiva, as coisas vão permanecer nesse intercâmbio de necessidades.”