Alpargatos tiram o cinza do asfalto e dão voz aos heróis da cidade
As vezes deveríamos olhar para nossos arredores com outro viés. Um olhar mais clínico, firme e justo. Junto disso poderíamos valorizar sim os personagens que ficam as sombras e á margem nos becos e periferias das grandes metrópoles.
Uma vez me lembro de ter assistido um documentário sobre o Joe Strummer do The Clash, The Future’s Unwritten, em que era contado uma prática de seu dia quando ia conhecer um local novo. Ele dizia algo como “Eu quero conhecer o povo, me leve ao povo. Quero saber sobre suas vivências, suas batalhas diárias, suas dores, sua música, sua cultura e o que faz deles seres únicos.”
Na época isso me bateu forte. Não pude deixar este ensinamento deixar passar e desde então a cada viagem que tenho a oportunidade de fazer quero aprender um pouco com o local. Em um mundo tão globalizado, sinto que muitas vezes só nos querem levar para o “seguro”, sem ter a chance de aprender com as diferenças e a estranheza daquele contato com uma outra realidade.
Para assim dizer dar uma chance aos verdadeiros heróis e batalhadores do dia-a-dia. Os que resistem as mazelas e vida sofrida do cinza do asfalto. Estes que mesmo que invisíveis tratam de colorir com seus esforço e dedicação a vida de quem está em sua volta. Com muitas dificuldades e falta de apoio estes sim são os guerreiros que se doam sem esperar nada em troca.
São estes heróis que ganham espaço, foco, dignidade e luz no EP visual dos gaúchos da Alpargatos. De Porto Alegre para o mundo Essa Cidade Cheia de Heróis vem para nos contar mais sobre esses contornos e personagens que tem muito a nos dizer. Estes guerreiros que não desistem e que mesmo não tendo apoio de governos e o aparelho do estado arregaçam as mangas por um futuro mais digno.
A metrópole é o plano central da obra e Porto Alegre assim como outras capitais como Rio de Janeiro, Curitiba e São Paulo vive dias perversos e violentos. Onde além da violência, das chacinas e dos crimes hediondos somos obrigados a conviver com preconceitos e a cada dia menos espaço para a cultura. São tempos difíceis mas como dizia a banda punk Cólera: “Nosso grito não será em vão”.
Antes de apresentá-los gostaria de apresentar quem seriam os Heróis retratados no EP.
“Heróis são os moradores da Ocupação Lanceiros Negros, que lutam pelo direito básico da moradia, pela reforma urbana. Heróis são os grupos de slam, que invadem os espaços públicos com poesia e engajamento. Heróis são os artistas de rua, que colorem a cidade com suor e sorriso. Heróis são os secundaristas que ocupam escolas por uma educação pública de qualidade. Heróis são os moradores da Vila Cruzeiro, da Restinga, da Bom Jesus, da periferia, que todos o santo dia convivem com a mais cruel violência na porta de seus lares, tanto do tráfico, quanto da polícia.
Heróis são os funcionários das fundações públicas do Rio Grande do Sul ameaçadas de extinção pelo governo, e que mesmo sem qualquer garantia de futuro seguem trabalhando pelo bem maior. Herói é quem resiste mesmo diante do caos, da repressão, da tentativa de apagamento. Herói é quem sonha e luta. Nossa cidade está cheia desses seres de resistência, e basta olhar um pouco para os lados para vê-los.” – conta o vocalista Afonso Antunes em entrevista para o Hits Perdidos
A banda conta em sua formação com Afonso Antunes (vocal), Bruno dos Anjos (guitarra), Pedro Nectoux (bateria) e Leonardo Braga (baixo). Porém o espírito de coletividade faz com que outras pessoas que trabalham junto a banda ganhem tanta importância dentro do processo como os próprios membros da banda.
Por exemplo o filme que dá origem ao EP visual é estrelado por Guilherme Conrad e dirigido pelo guitarrista Bruno dos Anjos – e só foi possível graças a um esforço coletivo dos membros da banda, que atuaram em parceria com a equipe. Os rappers Monstro e Miroez contribuem com seus versos em uma das canções mais vibrantes do EP, “Super homem, Astronauta”.
O curta-metragem foi produzido por Carina Goettems e Marta Karrer (que inauguram a empresa de agenciamento criativo Almu depois de dois anos trabalhando na cena independente) em parceria com a Preto Filmes. As animações são de Alan Soares e Ramiro Simch (o Miroez, que rima na primeira faixa do disco).
A mixagem de ambas as faixas são do baixista Leonardo Braga, que também foi responsável pela produção do primeiro disco da banda, Rodovia do Parque (Ouça no Spotify).
Já a masterização é de Lauro Maia (vencedor do Grammy Latino pelo disco Derivacivilização, de Ian Ramil) e foi realizada no A Vapor Estúdio, em Pelotas-RS. O EP marca também a entrada da banda no casting da Escápula Records. Já a capa foi feita pela designer Mariana Sartori que nos falou com exclusividade sobre seu processo criativo.
Assim fica até difícil não querer abraçar o trabalho e seu conceito onde todos contribuem e passam suas impressões sobre o caos da cidade. Este “monstro” gigante que acaba sendo comandado muitas vezes por pessoas com interesses próprios e longe do que a população espera – e precisa.
Alpargatos – Essa Cidade Cheia de Heróis (Julho / 2017)
Os contornos de Porto Alegre e seus personagens ganham destaque a cada canção a sua maneira. O EP Visual conta com as faixas “Super-Homem, Astronauta (feat. Mun-Rá)” e “Pássaro/Avião”.
“Super-Homem, Astronauta (feat. Mun-Rá)” abre o EP visual e é uma composição assinada por Afonso Antunes, Miroez e Monstro. Esta que já se inicia com sintetizadores vibrantes que acompanham a leve paleta de cores da passagem que mostra o menino do interior indo em direção a cidade grande.
A busca de esperança mostra a caminhada do personagem que sofre ao encarar os medos, preconceitos e pavores dos fantasmas que circulam por uma grande metrópole. A inocência é perdida e dá lugar ao medo e o sentimento de não pertencer a ali.
O leve das cores ganha o escuro e versos firmes da dupla de rappers que colocam o dedo na ferida para apontar a realidade. As batidas da bateria lembram o rock alternativo de grupos como o Kongos mesclado a guitarras com riffs bluseiros e o vocal pop de artistas como Supercombo e Cícero.
Com tons mais ferrugem, escuros e pálidos “Pássaro/Avião” já traz um tom mais intimista e dark. A canção aponta para temas urgentes como o medo da segurança pública e de voltar bem para a casa.
Se na primeira faixa eles falam sobre ter asas, na seguinte elas são de certa forma “cortadas”. O otimismo dos primeiro versos de “Super-Homem, Astronauta ” se transforma em um pessimismo e no medo do futuro. Algo que em tempos de extremismos e governos autoritários parece ganhar ainda mais terreno. Tempos difíceis e talvez por isso que o trabalho converse tanto com o momento político e social que temos vivido não só no Brasil mas como no mundo.
O som ensurdecedor da cidade também ganha espaço nos samples que “poluem” com a quantidade de informações que somos bombardeados todos os dias. Ao mesmo tempo que os amigos e a arte das ruas são lembrados. Com certeza a força de sustentação para enxergar uma saída no fim do túnel.
O protesto também vem a tona com versos sampleados protestando contra o fechamento da Fundação Piratini, a instituição responsável pela comunicação pública gaúcha que foi extinta no final do ano num pacote de medidas aprovado pelo governador do estado do Rio Grande do Sul José Ivo Sartori.
A Alpargatos de Porto Alegre (RS) no EP Essa Cidade Cheia de Heróis tenta te contar histórias comuns dos frequentadores de uma grande metrópole. De uma forma leve o trabalho te conduz a mostrar as dificuldades, preconceitos, problemas sociais, políticos e descaso com quem mais precisa. Em seu instrumental podemos ver uma rica mistura entre o rock alternativo contemporâneo, o rap com as participações de Monstro e Miroez (Mun-Rá), o pop e a MPB. Em apenas duas faixas e com uma narrativa que dialoga com o conceito visual podemos ver as cores da cidade, seu brilho e seu lado mais obscuro. Um registro que busca deixar como protagonistas: os heróis que vivem á margem, os que resistem e os que plantam um futuro melhor.
[Hits Perdidos] É o segundo trabalho de estúdio da Alpargatos mas para quem está conhecendo agora como gostariam de contar a trajetória até aqui? Aliás de onde veio o curioso nome?
Bruno: “A Alpargatos surgiu por acaso, de um encontro despretensioso pra tirar os instrumentos do armário nas horas que sobravam dos domingos. A gente não se conhecia, fomos parar ali por culpa de um amigo em comum que queria tocar uns covers e ver no que dava. Depois de um tempo ele parou de ir, nós ficamos. Chegamos a fazer um show antes disso, mas meio que só pra preencher o espaço da apuração dos votos na mostra de curtas do colégio em que estudávamos. Mesmo quando o Afonso começou a trazer algumas letras, demoramos pra nos ver como banda.
Depois, levamos muito tempo como um grande hobbie, que fazíamos andar nas nossas horas vagas, sempre com muita vontade mas pouco planejamento e estruturação. Nos surpreendia ver que várias pessoas gostavam bastante do que a gente fazia, e só depois de algum tempo – com shows mais regulares – que fomos entender que fazer música independente no sul do Brasil ia muito além dos palcos. Acho que essas transições mais naturais – que basicamente só dependem de como resolvemos encarar o momento – acabaram caracterizando muito nossa trajetória. Não é à toa que nenhum dos dois trabalhos que lançamos até agora era planejado, surgiram no meio do processo de gravação de um disco que ainda nem lançamos.”
Afonso: “Alpargatos é um trocadilho, bem bobinho aliás, com a alpargata (que é um calçado que aqui no sul é característico da roupa tradicionalista, principalmente do gaudério, que é como um gaúcho à paisana, menos embecado, mais relax) e o gato, que na gíria representa a beleza, o charme de uma pessoa. Hoje, penso que foi uma forma de auto-sabotagem, de não se levar muito a sério e, com isso, investir uma certa leveza pra aquilo que a gente fazia na época, ainda com 16, 17 anos. Também era um nome que estava muito em diálogo com a estética das bandas indie da época, como o Black Keys, o Arctic Monkeys e o Franz Ferdinand por exemplo, que tinham uma postura bastante sarcástica e escrachada no que faziam e nos serviram muito de inspiração.
Tem, acredito eu, também a coisa do hipster, esse estranho que se veste ironicamente, se porta ironicamente, o bigodinho, o óculos de haste grossa, o gosto pelo estranho. Nosso nome meio que veste isso tudo, essa estranheza, esse deboche calculado. Por mais bobo que o nome soe (e é mesmo), creio que, despropositadamente, ele acaba representando uma forma como a nossa geração encara o mundo, com certa ironia, certo desdém e sempre meio que rindo (de nervoso) da própria cara como forma de elogio, o que no fundo é uma puta insegurança diante do legado que nos foi deixado pelos nossos pais.”
[Hits Perdidos] Soube que o novo EP, Essa cidade cheia de heróis, também tem a importância de servir como transição de influências, deixando a mpb um pouco de lado e se aventurando em misturar outros estilos como o rap no single “Super-Homem, Astronauta”. Como enxergam o momento atual no campo das composições e referências?
Afonso: “A mudança estética acompanha, no fundo, uma transformação de essência e de percepção do mundo. O primeiro EP, de 2015, tem canções escritas, em grande parte, em 2014, quando mal tínhamos 20 anos. É interessante pensar o quanto que tudo mudou de lá pra cá, em Porto Alegre, no Brasil e, óbvio, em nossas vidas particulares: as preocupações, as angústias, os desejos, tudo foi revirado.
Sofremos um golpe de estado, a violência urbana cresceu “galopantemente” aqui em Porto Alegre, perdemos direitos fundamentais, assistimos ao desmonte do patrimônio público e tivemos nossa cultura atacada como nunca antes. Todas as bases sólidas foram desfeitas e ficou uma imensa neblina nas nossas perspectivas. Portanto, aquele som solar e esperançoso, influenciado por sopros, atabaques, violões de nylon, precisou dar lugar a algo mais denso, cinzento, sufocado, que contemplasse melhor nossa angústia. E foi aí que a MPB abriu espaço ao RAP, ao sintético e a sons que essencialmente expressassem esses sentimentos. As referências e formas apenas vieram de carona com tudo aquilo que se transformava em nós.”
Na imagem, a atriz Tânia Cavalheiro. – Foto: Divulgação
[Hits Perdidos] Como a cidade de Porto Alegre os inspira? A maneira como descrevem o jovem que vem do interior cheio de sonhos e esperança reflete a realidade de vocês ou se inspiraram em amigos que passaram por esse processo por muitas vezes doloroso?
Afonso: “Todos nós, exceto o Léo, nosso baixista, que nasceu em Niterói, nascemos e fomos criados em Porto Alegre. É impossível desvencilhar a cidade do que somos. Sentimentalmente, culturalmente, politicamente, a cidade nos toca. Ela é parte de nós. Por isso, nos machuca profundamente o que vem acontecendo por aqui nos últimos 15 anos, desde que a cidade começou a dar as costas pro seu patrimônio público e histórico, para suas praças, seus parques, suas casas antigas, seus monumentos, seus museus, e se abriu pra especulação imobiliária, pros shoppings, pros condomínios de luxo, para o capital privado.
Isso tudo aflorou a desigualdade social, porque as políticas municipais deram as costas para grande parcela da população, excluindo-os da cultura e do lazer e, com isso, expondo às ruas à violência. Não à toa, Porto Alegre é uma das cidades mais perigosas do mundo. Hoje, quando saí de casa de manhã, li no jornal que dois homens foram esquartejados, queimados e jogados numa vala. E não é a primeira vez que uma barbárie assim acontece. Nós estamos no meio de uma guerra civil, entre facções criminosas, políticos elitistas e cidadãos sedentos por sangue.
Nosso personagem principal do curta, esse artista vindo do interior, magistralmente interpretado pelo Guilherme Conrad, expõe claramente um choque entre a efervescência e a opressão, o encanto e o desencanto da cidade grande. Todos afetos e sonhos sendo sufocados. É nisso que nos sentimos representados, nessa angústia, nessa falta de perspectiva, mas também numa necessidade de seguir a vida e resistir mesmo diante desse quadro. O “Essa cidade” é mais do que um EP sobre violência urbana ou resistência. É um EP sobre ausência. Ausência é diferente de solidão, é, como diria Drummond, um estar em si; mesmo diante das multidões se sentir distante; mesmo diante dos maiores prazeres sentir-se infeliz; mesmo diante da velocidade sentir-se preso. A cidade não dá casa.”
[Hits Perdidos] A faixa que abre como já comentamos conta com a parceria dos rappers Monstro e Miroez, como aconteceu a aproximação? Como fluiu as gravações? Eles também participaram das animações do clipe, como veio o insight?
Bruno: “Nossa proximidade com o Mun-Rá já vem de tempos, uma admiração mútua do trabalho e da trajetória. O Léo (nosso baixista) produziu os dois singles que eles lançaram – “Tiracolo” e “Manifesto do Ano Zero” – esse segundo composto a partir de uma melodia minha.
Mas a parceria se consolidou de vez no ano passado, quando montamos um show juntos e tocamos como a banda deles. A sinergia que rolou no palco acabou se transferindo também pras letras, e foi aí que o Afonso compôs “Super-Homem, Astronauta” inspirado no personagem que morre na contramão da cidade em “Tiracolo”. Desde que a música surgiu – e junto com ela a ideia do EP visual – os guris fizeram parte ativa do processo criativo, e o Miroez (que já tinha trabalhado no lyric video de “Ciclovia”, também com animações) pegou junto na parte de finalização do vídeo.
Em paralelo a esses trabalhos, acompanhamos através do Mun-Rá a força que a cena independente do rap tem atualmente no Brasil. É inspiradora toda essa movimentação e engajamento, em grande parte ligada ao audiovisual, com formatos inovadores e uma quantidade de conteúdo gigantesca.
[Hits Perdidos] Algo que notei do trabalho é o aspecto colaborativo e das funções bem distribuídas entre a bandas, produtores, músicos e amigos. Bruno dos Anjos além de guitarrista, dirige o curta metragem e Guilherme Conrad é o protagonista. Contem como foi a produção e o papel de toda equipe envolvida nesta produção.
Bruno: “Desde o lançamento do nosso primeiro EP, Rodovia do Parque, buscamos trabalhar com uma equipe horizontal e engajada. Primeiro com o Braga (nosso produtor que depois veio a integrar a banda com a saída do Guilherme, nosso antigo baixista) e a Mariana Sartori (responsável pela parte gráfica). Logo depois, com a Marta Karrer e a Carina Goettems, que entraram pra fazer a parte de assessoria e produção mas sempre foram decisivas no planejamento geral. A partir daí fomos construindo essa trajetória juntos – os sete – nos alinhando semanalmente com reuniões madrugada adentro e uma relação intensa de amizade que foi se criando.
O “Essa cidade” – mais que um projeto – é um reflexo dessa sintonia de diferentes pessoas e artes, da inquietação interminável de sempre querer ir além. Então, desde o início fomos buscando coletivamente essas camadas que complementam as músicas, seja o curta-metragem, a parte gráfica ou o show cheio de performances que montamos pro lançamento.
Claro que, depois das ideias iniciais darem o norte, dividimos tudo em áreas específicas, conduzidas por quem já trabalha com elas, e o resto do grupo segue dando suporte pra tudo acontecer. Na parte audiovisual, por exemplo, eu era o único com experiência nas questões técnicas, o que acabou me fazendo ocupar funções que muitas vezes exigem lógicas totalmente diferentes, como o roteiro, a direção de cena, a fotografia, a preparação de elenco, a edição e a finalização.
Durante as gravações (oito diárias em 3 cidades e mais de 20 locações diferentes) a equipe toda me ajudou muito na produção, com figurino, direção de arte, transporte, alimentação, viagens e os fundamentais cronogramas da Carina. Porém, nas partes que exigiam um isolamento maior – como o roteiro e a edição – o processo foi bem mais difícil, de muita autocrítica diante de uma série de decisões fundamentais para a narrativa. No geral, uma característica bem marcante desse trabalho é que tudo foi feito paralelamente (a mixagem/masterização das músicas, as gravações do curta, a parte gráfica e os planejamentos de assessoria), e cada progresso individual servia pra motivar ainda mais o todo.
[Hits Perdidos] Pude notar que a fotografia e a paleta de cores é algo marcante na estética do clipe. Além de mostrar as expressões visuais e o sofrimento das histórias, sempre aliado a um discurso político sem ser algo forçado, e sim funcionando de maneira bastante natural. Como foi construir toda essa narrativa?
Bruno: “A camada visual do “Essa cidade” foi toda baseada em opostos. Interior e capital, opressão e liberdade, público e privado. Queria falar sobre travessias, sobre transições, sobre autoconhecimento, e percebi que pra isso precisava marcar bem um início e um fim pra esses movimentos, uma quebra e uma retomada da estabilidade.
Construindo o roteiro, procurei conversar com o formato e assumir essa mudança em paralelo à troca das músicas (que por si só já eram bem visuais). Precisava criar dois ambientes com simbologias diferentes, que moldassem e ao mesmo tempo instigassem o personagem. Então decidi explorar todos os recursos possíveis nos poucos minutos que tínhamos, desde a paleta de cores até a linguagem de câmera.
Na primeira parte caminhamos junto com ele quase o tempo todo, lado a lado das angústias e incertezas, inclusive no plano mental. Já na chegada à cidade nos distanciamos e passamos a vê-lo de longe, com ângulos mais característicos de um observador. É como se o novo cenário – mais imprevisível e incontrolável – influenciasse também na nossa relação com o personagem, que agora segue em busca de uma independência e de uma identidade. Só voltamos a correr junto a ele quando “a cidade não dá casa”, e tudo aquilo que parecia estar no lugar é tirado pelo estado.”
[Hits Perdidos] Já que tocamos no tema da política, como vem isto do fechamento da Fundação Piratini e a maneira com que a cultura vem sendo tratada na região? Fazer arte para vocês é a maior maneira de resistir a tudo isso?
Bruno: “Não é de hoje que a cultura vem sofrendo uma série de ataques no país, e aqui no estado isso tem se articulado também institucionalmente. A ameaça de fechamento da Fundação Piratini – responsável pelas emissoras públicas de rádio e televisão do Rio Grande do Sul – foi uma das mais duras manobras nesse sentido. Sucatear e desvalorizar um dos únicos meios que incentiva e abre espaço para a arte independente é entregar a produção artística do estado à uma lógica puramente comercial, refém de interesses específicos. Mesmo grandes empresas com histórico de incentivo à cultura podem de uma hora pra outra retirar os investimentos se isso passar a não ser mais rentável ou bom pra imagem (o Santander é uma prova disso).
O problema é que ainda dependemos dessas poucas iniciativas pra seguir existindo, mesmo que as alternativas de financiamento independente tenham evoluído muito nos últimos tempos. Ainda assim, essa falta de espaço fez com que a maioria dos artistas (ao menos na música) adotassem uma postura ativa de produção e começassem a se unir mais pra tornar as coisas viáveis. Seguir fazendo a cultura acontecer mesmo em um contexto totalmente desfavorável é sim um ato de resistência, e toda essa inquietação tem marcado muito o que tem sido feito por aqui.
[Hits Perdidos] Vocês também em “Pássaro/Avião” frisam sobre os medos da violência urbana e todo colapso social que muitas metrópoles tem sofrido num mar de incertezas e escândalos. Vemos por exemplo Porto Alegre com esse dado estatístico alto e Rio de Janeiro em estado de atenção. Para vocês quais seriam os heróis do dia-a-dia?
Afonso: “Heróis são os moradores da Ocupação Lanceiros Negros, que lutam pelo direito básico da moradia, pela reforma urbana. Heróis são os grupos de slam, que invadem os espaços públicos com poesia e engajamento. Heróis são os artistas de rua, que colorem a cidade com suor e sorriso. Heróis são os secundaristas que ocupam escolas por uma educação pública de qualidade. Heróis são os moradores da Vila Cruzeiro, da Restinga, da Bom Jesus, da periferia, que todos o santo dia convivem com a mais cruel violência na porta de seus lares, tanto do tráfico, quanto da polícia. Heróis são os funcionários das fundações públicas do Rio Grande do Sul ameaçadas de extinção pelo governo, e que mesmo sem qualquer garantia de futuro seguem trabalhando pelo bem maior. Herói é quem resiste mesmo diante do caos, da repressão, da tentativa de apagamento. Herói é quem sonha e luta. Nossa cidade está cheia desses seres de resistência, e basta olhar um pouco para os lados para vê-los.”
[Hits Perdidos] O sufoco da cidade e sua estrutura estão até retratados na capa do disco. Como foi o processo de criação?
Mariana Sartori: “Eu trabalho com design gráfico, então tô acostumada com a encomenda, a formalidade, a coisa toda em lista e briefing. Demanda. Com os guris nunca veio assim, o processo foi sempre muito horizontal e aconteceu de forma natural. Eu assisti de perto nascer o primeiro trabalho autoral deles e depois de novo quando o EP Visual começou a tomar forma. Da transição dos covers debochados até as músicas autorais, a identidade, a parte visual foi nascendo aí, em paralelo. Fugiu dessa coisa de definir uma lista de conceitos e exigências e encaminhar pro artista, nunca teve sentido… o convívio já deu conta dessa parte, sabe?
Partindo daí eu sempre fui livre pra criar em cima das minhas impressões. A gente vive a mesma cidade, nossos amigos tem os mesmos medos, a gente sonha parecido e isso tá refletido em tudo. Quando saiu o Rodovia eu lembro da gente falar sobre fuga do cotidiano, eu desenhei essa cidade de prédios e casarios (todos inspirados em construções de Porto Alegre) e deles saíam uma explosão de verde em folhagens. O verde nascendo no concreto tem muito de resiliência mas também uma rebeldia; era a gente se adaptando a natureza da cidade mas vendo no que a gente faz juntos um escape.
O “Essa cidade…” bateu de frente com esse sentimento, a ingenuidade do escapismo… agora é sufoco, a gente sente essa angústia generalizada e não tem como fugir. E nossa expressão, tudo o que a gente cria, é menos sobre válvula e mais sobre faísca. Pensei nisso quando trouxe um laranja fluorescente pro cinza escuro. A gente falou muito sobre dureza, densidade, e eu comecei a construir essa cidade absurda que parece fechar em si mesma. Não foi intencional o link com o primeiro EP, eu não planejei desenhar duas cidades, mas quando percebi o rumo que tava tomando abracei com carinho a ideia. Foi natural e diz muito sobre o trabalho dos guris, essa coisa do cotidiano e da vida urbana, o coletivo. Mas é óbvio o contraste. A gente percebe a mesma temática, mas as interpretações são quase que antônimas… antes de aparecer nos traços e cores, tá ali nas melodias e nas letras.”
[Hits Perdidos] O que destacariam de todo processo do EP visual e quais os planos para o futuro?
Afonso: “O processo de criação e produção do EP escancarou algo que há muito já vínhamos entendendo: o mundo independente é coletivo, colaborativo, horizontal. Precisamos de muita gente, muita empatia e principalmente muito trabalho. Quando a grana é curta, o trabalho é redobrado. Quando temos uma equipe pequena, a vontade de quem faz tem de ser ainda maior. Por isso esse EP nos abriu os olhos pra importância de quem corre ao nosso lado, de quem chega junto, de quem realmente acredita. A música é muito mais do que palco, do que disco, do que a estética. Ela é a soma de muitas gentes, de muitas forças, de muita energia.
Planos pro futuro é colocar esse EP no mundo real. Tocar em vários palcos, em outras cidades, em outros estados, em festivais de todo tipo. Fazer esse nosso trampo chegar nas pessoas. E seguir produzindo material novo. Construindo, através da música, aquilo que acreditamos. Sempre inquietos. Sempre indo mais longe do que no trabalho anterior. Um álbum para o ano que vem é um bom objetivo.”
Playlist Exclusiva no Spotify
Já que o tema do EP é cidade. Pedi para que eles criassem uma playlist com canções que refletissem a rapidez e peso cinza da cidade. Segundo eles foi uma tarefa difícil mas o resultado foi bastante interessante.
Artistas como Kiko Dinucci, Juçara Marçal, Os Mulheres Negras, Mahmed, Dingo Bells, Carne Doce, Boogarins, Baleia, Luiza Lian, Maurício Pereira e Vitor Ramil fazem parte da lista que conta com 18 canções.