Em meio a uma tormenta de emoções: “Fogo” mostra o poder de fúria da Bratislava

 Em meio a uma tormenta de emoções: “Fogo” mostra o poder de fúria da Bratislava

Sentimentos à flor da pele, corações partidos, loucuras de amor, o gosto amargo do desespero, masoquismo, desgosto, niilismo e o mundo mágico dos sonhos dão o punch do lançamento que iremos falar hoje.

De uma maneira intensa, plástica, teatral e ardente este disco será capaz de te provocar reações exageradas, reflexões e discussões. É como se várias crônicas, algumas mais fantasiosas que outras, fossem enumeradas em capítulos sonoros. Explorando universos paralelos, regressões, paranóias e cumplicidade. Tudo junto e misturado feito a loucura de nossa mente em nossos dias mais obscuros.

A empatia também mostra um pouco dos contornos da viagem do álbum, principalmente pela tônica da tragédia de Mariana que aconteceu em 2015 e chocou não só o Brasil mas o mundo todo. A maior tragédia ambiental do país marcou para sempre a história de todos os moradores da pequena cidade do interior de Minas Gerais.


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Na sexta-feira (16/06) foi lançado através das plataformas digitais, “Fogo”. – Foto: Rodrigo Gianesi

Menos suspense e mistério, hoje vamos destrinchar o novo disco da Bratislava. O terceiro disco dos paulistanos que estão na árdua batalha do underground brasileiro desde 2010, tendo já tocado em diversas cidades do país e participado de projetos como Converse Rubber Tracks, Sofar Sounds, Conexão BH, Na Rua, Antessala HSBC Brasil e Rio Harley Days.

Atualmente a formação do quarteto conta na linha de frente com Victor (vocais/teclas), Alexandre (guitarra/vocais), Sandro (baixo) e Lucas (bateria).

No fim de março foi a vez deles realizarem um sonho almejado por muitas bandas: tocar em um dos festivais mais cultuados do circuito, e mais do que isso ter a oportunidade de estar ao lado de nomes importantes não só da música brasileira como mundial, o Lollapalooza.Tudo isso deu ainda mais gás para o que seria Fogo (2017). Um pouco antes o clipe de “Yorick” do disco anterior (Um Pouco Mais de Silêncio) ganhou vida. Cheio de atmosfera, cores vibrantes e imersão.

Algo que a forte canção nos transmite e as palavras do vocalista Victor Meira não deixam mentir: “É sobre depressão e superação. Sobre se sentir sufocado com a rotina, com o cotidiano, e sobre as brechas que experimentamos raramente, em pequenas epifanias ao longo da vida. É sobre aproveitar essas brechas pra se sentir vivo. Um incentivo à criação, por nós mesmos, dessas brechas.”


[youtube https://www.youtube.com/watch?v=g-K-_x2UgxM&w=560&h=315]

Talvez isso seja uma das grandes virtudes do grupo paulista, entender como funciona o mercado fonográfico, ter estratégia, conceito e planejamento mas sem esquecer do principal: a música. Pode soar como um puxão de orelha – e na verdade é – mas muita banda por aí quer embalar o produto final, viajar pelo país, tocar e esquece de estudar, se dedicar, “perfect the art” e olhar para as camadas do que é seu som – e sua experiência de autoconhecimento.

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Fogo é caustico e bruto em sua essência. – Foto Por: Fernanda Gamarano (Fe Fotografia)


Fogo (2017) – Ouça no Spotify

Um disco pode representar tanto um fechamento de um ciclo como o início ou uma intersecção. É desta bela ferramenta que a arte é moldada, seja ela visual, poética ou sonora. Oito anos de banda com certeza fazem com que muita coisa se transforme, da concepção a maneira de explanar sua arte. O senso crítico dos detalhes e do como fazer vai se moldando, alguns gostam de chamar de maturidade, eu prefiro pensar que é um campo evolutivo.

É destes conflitos que a áurea de Fogo corrói, de fato é um disco caustico. O pop flerta em muitos momentos com o experimentalismo, ousadia e elementos muitos destes que vem de estilos como o rap e a música eletrônica. Até por isso tecer comentários de certa forma acaba se tornando uma ousadia por si só. É um disco que para entendermos sua complexidade temos que estar inteirados muito além do nosso medíocre umbigo mas em conexão com o que está acontecendo ao nosso redor, seja na sua casa, na sua família, no seu bairro ou em outro continente.

O desastre de Mariana representado em sua primeira faixa poderia ter sido inspirado nos atentados da França, na luta da palestina, no drama das populações indígenas ou ribeirinhas que conseguiria transmitir a mesma mensagem de empatia.

Empatia que muitas vezes falta no nosso dia-a-dia, no mercado de trabalho, no trânsito, em estender a mão para quem precisa de ajuda, na intolerância religiosa, política ou até mesmo futebolística. Nessa barbárie constante onde as frustrações impedem muitos de olhar e se reconhecer no outro – ou ao menos respeitá-lo de igual para igual, como todo ser humano merece.

Um outro ponto interessante é que ele tem um tamanho reduzido, pense bem são apenas oito faixas ao longo de cerca de 32 minutos. Como apreciador de um álbum cheio – e talvez romântico – eu fico querendo mais. Porém observando a maneira como as novas gerações consomem música ou tratam como um serviço – e não um produto – podemos entender que os tempos são outros e que se adaptar é preciso.

O grande destaque fica para a linguagem e a interpretação no disco. Principalmente pela maneira com que o universo dos sonhos é explorado. De forma poética, ousada e inteligente. Algo que mostra que o campo de referências literárias jamais deveria ser abandonado por um compositor que quer falar com diferentes públicos. E isto é um exercício que não começa no ato de composição mas muitas vezes anos antes.

O elemento teatral flerta com os sonhos através de uma falsa memória, um universo inteiro imaginário entorpecido por conflitos fantasiosos e situações hipotéticas. Algo que a literatura ibérica sempre fez bem, o ato de transformar situações irreais em reflexões profundas, políticas, antropológicas e sociais. E isto está presente na obra de Saramago, Valle-Inclán, Pío Baroja e Miguel de Unamuno.

Como no disco a situação retratada é uma intersecção de sonhos de um casal com uma terceira pessoa sendo receptora da mensagem o campo da filosofia e reflexão é ainda mais evidente. Apesar de não ter nenhuma conexão com a realidade, a canção a cada gravação como Victor dirá na entrevista de tão repetida acaba ganhando lampejos de verdade. E é desta forma que sabemos que virou parte de si, ou melhor dizendo: parte de sua arte. Quem é o artista e quem é o quadro? Em muitos quadros temos essa dúvida, porque na música seria algo diferente?

Depois dessa reflexão e pontuar pontos interessantes e reflexões despretensiosas já era hora do nosso clássico faixa-a-faixa para destrinchar de fato todo esse Fogo em pólvora.


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O disco se inicia com uma narrativa sobre o desastre natural de Mariana (MG). – Foto: Fernanda Gamarano (Fe Fotografia)

Fogo se inicia com “Enterro” escrita por Victor um ano após o ocorrido, na época como ele mesmo conta acompanhou todos os novos fatos e histórias dos que ficaram e sua luta diária para se reerguer. Movido pelo sentimento de empatia. De certa forma sua introdução praticamente tenta re-imaginar como teria sido aquele dia escuro, triste e lamentável. Sua narrativa parece ser através do ponto de vista de um castelo, de alguém que vê de longe mas não pode fazer muito.

O trecho “o valor que uma vida tem nesse país” soa como uma navalha ao abandono e a luta das famílias por recursos para se reerguer. Lembrando que muitos perderam não só seus pertences mas como seus filhos, irmãos, pais, avós… e parte de sua vida.


ENTERRO - Arte Por Rafael Brasil (Far From Alaska)
A letra da canção ganhou uma arte Por Rafael Brasil (Far From Alaska). Fogo foi gravado no Family Mob por Hugo Silva.

A faixa ganhou um clipe feito a partir de registros da banda nos dias 24 (Casa Ray-Ban) e 26 (Lollapalooza Brasil) de março de 2017. Com imagens de Lucci Antunes, Camila de Oliveira e Alexandre Giglio (Minuto Indie).



O universo dos sonhos começa a ganhar terreno em “Sonhando” com camadas do post-rock logo em sua introdução. O crescimento da canção se dá de maneira gradual começando com os vocais de Victor e a guitarra sustentando a leveza desse sonho, conforme vai passando os detalhes dos outros instrumentos começam a ganhar corpo.

A mistura dos sonhos do casal – como já comentamos antes – ganha texturas e diálogos que parecem de fato acontecerem em outro plano. É legal observar os elementos da construção da canção a cada nova ouvida, o corpo psicodélico através dos loops e a guitarra alá Flaming Lips ajudam com que cheguemos ao ponto mais “tenso” do diálogo. A música te convida para essa conexão paralela tão profunda e espiritual.

“Amor de Chumbo” vem na sequência e fala sobre a maneira que temos de demonstrar afeto que muitas vezes pode cutucar feridas. Por mais puro e inocente que achamos que estamos sendo, o conflito acaba existindo e por consequência ferindo. O interessante é pela primeira vez no disco mostrar as facetas de interpretação em criar personas para dialogar, uma personalidade mais calma e fria e outra mais quente e feroz. Isso é transmitido através das transições da faixa que deixam tudo um tanto quanto obscuro, ardente e perigoso.

Chegamos a metade do disco com “trancado” esta que passeia novamente pelo campo dos sonhos. De uma forma ainda mais sombria, caustica, explosiva e desconcertante. E nessa faixa que notamos pela primeira vez a influência de outro projeto de Victor, o Godasadog este que ele toca junto com Adam. Com o eletrônico se fundindo a elementos de trip-hop através de uma narrativa não linear.

A narrativa do imaginário está presente em “Céu de Pedra” mas ao invés de ser um “sonho” a narrativa é mais com os pés no chão. É sobre um não-romance, daqueles que cansamos de colecionar na juventude mas que temos a plena convicção que não alcançarão voos. A perspectiva de certa forma tem um tom um tanto quanto feminino, delicado e reflexivo.

“Dança de Doido” é uma canção que me chamou a atenção por alguns pontos. O primeiro é por ela ter uma linguagem muito moderna conseguindo alcançar do fã de Mac Demarco, Glass Animals a fãs de novos e ótimos nomes da nova MPB. O segundo é pelas rimas e métricas que parecem ter como base o rap e o funk. E o terceiro é o modo como a parceria agregou, algo que vejo como difícil pois a lógica do sonho não é tão fácil de ser compreendida no primeiro momento.

Um trecho fica na cabeça “Inseguro custei aprender / Que o corpo é a anarquia encarnada / No final não sobra nada / Então deixa eu te conduzir nessa / Dança lenta de doido”. A matéria e o campo metafísico se fundindo num plano só. O sonho se tornando enfim em algo real.

Chegamos a penúltima canção que de certa forma é mais uma intervenção ou interlúdio, “Fala Prescindível” em que Victor narra sua epopeia dos sonhos a partir da ótica da persona. Cheio de interferências no fundo feito um free jazz e a troca de “canais”.

Toda essa carga emocional claro que ia se materializar da maneira mais caustica e explosiva na potente e visceral “Fogo”. O Hit Perdido do disco e a mais vibrante que consegue te passar várias doses de labaredas e uma intensidade que te deixa atônico. A letra carregada de niilismo e discurso de lugar-de-fala.

A busca para o sentido da vida e de encontrar seu lugar ao sol que dão essa sensação de sufoco, caos e pressão. Como próprio niilismo usado em doses cavalares pode ser uma arma perigosa de questionar fatos em que não existem verdades absolutas. Novamente o caos apocalíptico do Godasadog ganha corpo em seu choque de maneira experimental, vibrante, explosiva com bateria que vai pro lado do jazz, o baixo grooveado e a guitarra post-rock/drone rock.

A expressão no fôlego e na ira consegue te passar sentimentos dúbios. Assim como no seriado de TV Leftovers, temos essa série de entidades que muitos acreditam carregar em sua mente que fazem com que o interlocutor tente fazer uma caça as bruxas em seus pensamentos mais “perigosos” e secretos. Time Bomb. É o disco terminando de maneira explosiva e se despedindo sem te dar tchau. Feito uma tormenta, vem para destruir tudo e fazer com que aos poucos nos reergamos. Assim como no começo do disco, o desfecho não poderia ser outro além de inflamável.


Bratislava - FOGO capa por Penabranca.
A capa de Fogo foi feita por Penabranca.

O terceiro álbum da Bratislava é caustico, magnético, atordoado, furioso, reflexivo, robusto e cheio de sentimentos fortes. Não é um disco fácil para quem não abre a cabeça para o que está acontecendo no hoje. Ele te provoca e por muitas vezes flerta com o pop e o experimental. Tem ousadia de saber a hora de procurar referências no rap, trip-hop, eletrônica e post-rock. Em suas letras tem muitas mensagens que te provocam reflexão, te forçam a prestar a atenção e mostram um poder teatral em transmitir de maneira leve toda imersão que tiveram no momento de compor.

Um disco completamente distinto ao anterior, com conceito e referências que representam outro momento mas que mostram o amadurecer das composições sob um novo viés e temas significativos. Como fazem falta discos que nos façam pensar além do umbigo e de nossa mediocridade humana, mais do que isso que enxergam novas maneiras de contar uma história sem ter um desfecho previsível. Um álbum que vai até o distante e mágico mundo dos sonhos para explicar nosso ardente, explosivo e errático lado humano. Em meia hora ele explode feito uma bomba relógio e é aí que a nossa reflexão se inicia.

Para entender mais e saber sobre a série de acontecimentos que tem acontecido com a banda ao longo desses 8 anos de história conversei com Victor Meira. O papo rendeu até playlist interessante no perfil do Hits Perdidos no Spotify.

[Hits Perdidos] Os discos da Bratislava sempre carregam conceitos e narrativas muito fortes. Qual seria o foco dessa vez?

Victor Meira: “O disco tem algumas temáticas recorrentes. O Sonho é a temática mais presente, abordada de diferentes formas em Sonhando, Trancado, Dança de Doido e Fala Prescindível. Outras temáticas abordadas são o Lugar de Fala, o Niilismo e os relacionamentos amorosos que nos machucam.”

[Hits Perdidos] O desastre natural de Mariana (MG) que aconteceu no dia 05/11/2015 ganhou uma narrativa forte e cheia de emoção em “Enterro”. No próprio clipe o sentimento de união é exaltado logo nos primeiros segundos. Como toda essa tragédia afetou e inspirou vocês?

Victor Meira: “Escrevi “Enterro” por empatia, pra somar esforços na difusão do ocorrido. Lembro que quando li o noticiário em 2015 fiquei atônito, muito sensibilizado. Houve pronunciamento de diversas pessoas e entidades na época, do Governo Federal ao Cruzeiro Futebol Clube, da Igreja Católica ao Pearl Jam (que doou US$33 mil para ajudar na causa). Continuei acompanhando o desenrolar dos acontecimentos e escrevi a música cerca de 1 ano após o acidente, época em que saíram algumas notícias sobre a situação atual da cidade de Bento Rodrigues, em processo de reconstrução. Acho que é uma história que deve ser contada e relembrada sempre, pela gravidade dos danos causados.”

Participações Bratislava
Aloizio e Gustavo Bertoni (Scalene) participaram do disco. – Foto: Divulgação

[Hits Perdidos] Queria que comentassem sobre a participação do Gustavo Bertoni (Scalene) e o clipe que conta com imagens na Casa Ray Ban Lollapalooza.

Victor Meira: “Chamei o Gustavo pra participar depois de uma jam que rolou no estúdio Family Mob. Nessa feita ele cantou um som do Far From Alaska, emulando a voz da Emmily, bem gritada, e eu fiquei assombrado com o quanto aquilo era bonito. Enxerguei a voz dele encaixando como uma luva nesse tema de Enterro e fiz o convite. Uma honra poder compartilhar nosso som com um cara tão talentoso.

O clipe foi feito com imagens dos shows que fizemos nos dias 24 e 26 de março. Pensamos que a letra da música é clara o suficiente pra dispensar um apoio imagético óbvio, como mostrar cenas da destruição na cidade de Mariana, sabe? Então deixamos a interpretação da banda passar o sentimento de angústia e indignação pela tragédia.”



[Hits Perdidos] Falando em Lollapalooza como foi a passagem pelo mega festival e a recepção do público?

Victor Meira: “Foi um dia inesquecível. Tocar naquele palco, com aquela potência, pra aquele público… As músicas crescem, as mensagens perfuram mais. Foi um show incrível e um marco na nossa trajetória. Na semana seguinte eu encontrei o Teago (Maglore) no Z Palco, ele comentou comigo “bem que podia ter todo ano um show desse pra gente, né?”, haha. Quer dizer, a vida segue, ter tocado no Lolla fez com que mais gente, principalmente uma galera mais jovem, conhecesse a banda, se conectasse com os sons. E continuamos estrada!”

[Hits Perdidos] Já que tocamos no tema de grandes festivais, o que acham que falta para que eles tratem os artistas independentes de melhor maneira?

Victor Meira: “É uma boa pergunta. Fomos muito bem tratados, sabe? O horário no qual tocamos era condizente com a representatividade que a Bratislava tem em comparação aos outros artistas que se apresentaram. Pô, tocamos praticamente no mesmo horário que a Céu, que é uma cantora grande, famosa. Talvez uma parada de logística que já melhoraria muito as coisas seria mudar o esquema de horários, fazer no modelo de festivais como o Bananada, que começam umas 18h com os primeiros shows e vai até de madrugada. Acho que colar no festival às 12:30, sol a pino, é pouco convidativo/interessante para o público.”


Gianesi
Os sonhos são peça fundamental na narrativa explosiva do álbum. – Foto: Rodrigo Gianesi

[Hits Perdidos] Voltando ao disco, tem uma canção com uma história incrível e diferente por trás. Até pela narrativa do cruzamento dos sonhos do casal. Gostaria que contasse um pouco sobre a composição e a construção.

Victor Meira: “A narrativa parte de uma falsa memória. Me peguei com essa ideia fixa na mente, de cruzamento de sonhos, de os sonhos serem um resultado do que se vive durante o dia e dessa possibilidade de interseção dos sonhos, caso um casal viva uma realidade extremamente similar por um período de tempo. Então lembrei que eu tinha lido isso em “Rayuela”, livro do escritor franco-argentino Julio Cortázar, quando o li em 2010.

A terceira e última parte do livro se chama “Capítulos Prescindíveis” (daí o nome da faixa) e na verdade se trata de uma série de ideias sem muita conexão entre si (a narrativa central do livro acaba no desfecho da segunda parte, caso você leia o livro de forma linear). E nesse capítulo, dois personagens contam mais ou menos o que conto na gravação – eu incorporando o papel do homem do casal. Meu processo criativo foi longo e intenso. Transcrevi o capítulo original, quebrei em versos, fiz gravações, mexi de diversas formas. Até que, de tanta familiaridade com o texto, resolvi gravar espontaneamente alguns takes, sem roteiro. O que a gente ouve no disco é um desses takes. Gravei na casa do Ian Fonseca (Supercolisor), um pouco bêbado e muito concentrado.

Nos shows da turnê do novo disco iremos apresentá-la, e a cada show eu vou contar do coração, sem roteiro. É uma história íntima, uma falsa-memória que já não difiro de uma memória real.”

[Hits Perdidos] O álbum foi gravado no Family Mob. Como foi o processo e a experiência?

Victor Meira: “Foi incrível. O Family Mob é um dos lugares em São Paulo em que mais gostamos de estar. Tem uma energia muito positiva lá. E gravamos com um cara muito especial e talentoso, que se envolveu de mente e alma na gravação, o Hugo Silva. Foi a experiência mais gostosa de gravação que já tivemos.”

[Hits Perdidos]  “Amor de Chumbo” parece ter dois momentos, duas atmosferas algo meio Yin Yang de sentimentos. Como foi essa construção?  Realmente ocorre a transição na narrativa na metade da música ou é apenas uma “virada”?

Victor Meira
: “A maior transição da música tá na virada para o último tema, quando eu entro cantando “queeeero ver, sentir me derreter”. A música é sobre afetos ácidos, nossas maneiras brutais e demonstrar carinho e afeto. Porque, veja, “afeto” é “afetar”, mexer, cutucar, ferir. É uma intensão boa, mas na maioria das vezes envolve dor, trauma, pesar. E esse tipo de afeto rola normalmente com casais ou amigos que já possuem muita intimidade – talvez o rumo inevitável de qualquer relação. Mas a gente aprende a viver e lidar com isso, a transformar esse ácido em algo precioso e saboroso. A transição no final é sobre isso: um momento de entrega, de encontro de venenos, ácidos e líquidos em cópula, em tesão, em explosão criativa e vitalícia.” 

[Hits Perdidos] Um dos comentários que ouvi falar é que se tratava de um álbum com narrativa feminina, e isso parece acontecer em “Céu de Pedra”. Como enxergam esse tipo de interpretação/recepção das pessoas?Victor Meira: “Fico muito feliz com esse tipo de percepção. “Céu de Pedra” é uma história triste, um não-romance ou um romance natimorto. É sobre um amor platônico, calculadamente platônico.”

[Hits Perdidos] A faixa “Dança de Doido” conta com a parceria do Aloizio. Como rolou o convite e como fluiu?

Victor Meira: “O Aloizio é um grande amigo que conheci por meio de outro grande amigo, Beto Mejía. Admiro muito a música dele e há tempos queríamos fazer coisas juntos. O convite veio dessa afinidade e dessa admiração.”


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“Fogo”, faixa título, é a canção com maior carga emocional do álbum. – Foto: Rodrigo Gianesi

[Hits Perdidos] “Fogo” é a canção mais forte do disco, e tem o discurso mais afiado. Me lembrando um pouco o outro projeto paralelo do Victor, Godasadog, mas com linhas de jazz e experimentalismo. De uma forma ou outra o projeto paralelo inspirou? Como foi incorporar mais de uma persona para dar vida a composição?

Victor Meira: “Com certeza, os projetos paralelos se afetam, se misturam e se influenciam. “Fogo” é uma faixa extremamente intensa, desde o início instrumental explosivo e cheio de camadas até a letra carregada de niilismo e discurso de lugar-de-fala.

O núcleo da primeira parte encontra clareza nos versos “A sensação de que nada faz sentido me assalta mas não me intimida – na real isso só me motiva”, base de uma filosofia calcada na nossa construção de um sentido próprio (ou de um tesão) para a vida – meu modo de ver as coisas.

Na segunda parte, depois que eu declaro estar falando com o fogo, entro num devaneio sobre o meu lugar no mundo. Meu lugar social e o que eu represento. Uma amiga minha, Lia D’Amico, uma vez falou pra mim que o mero fato de eu ser homem, branco e hétero, por si só, é uma violência para com o mundo. Pesado, né? Guardei com carinho esse ponto de vista. Na letra de Fogo levanto algumas questões sobre a importância, relevância e presença de um cara como eu no mundo, enojado pelo que o meu estereótipo representa.”

[Hits Perdidos]  Falando sobre influências no campo musical. O que andaram ouvindo?

Victor Meira: “Essa pergunta é muito cabulosa. Acho que é quase impossível respondê-la hoje em dia. Ouvimos muita coisa, cara. Mesmo mantendo e amando o costume de ouvir álbuns inteiros (ao invés de playlists), tanta coisa passa pelo nosso ouvido todos os dias, com a aba Discover do Spotify, com o garimpo de sites como o HominisCanidae, com todo disco foda que é lançado todos os dias. Vivemos uma época de fluxo desenfreado e pouca retenção. Até por isso decidimos lançar um disco mais curto e preciso, 8 faixas, 30 minutos – reflexo dos costumes de hoje. 

Mas não vou te deixar sem resposta. De cabeça, o que ouvi bastante nos últimos tempos foi Noname, Bill Laurance, Viva Belgrado, Deep Sea Diver, Kanye West, Pedropiedra, Anderson .Paak, Touché Amoré, Luiza Lian, Glass Animals, Stella-viva, Brad Mehldau, Kendrick Lamar, Pretend, Stage Kids e Jeff Parker, considerando os últimos releases de todos eles.” 

Playlist Especial de Lançamento de Fogo


Playlist Bratislava

Para fechar pedi para que eles montassem uma playlist no Spotify com canções que inspiraram direta e indiretamente o novo álbum e influências. O resultado foi bastante interessante e com novas referências para muitos. Afinal de contas a arte de pesquisar também faz parte do processo criativo de um artistas e tudo se complementa.

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